Na pele de Feliciana: sentada aos pés do proclamador, resiste a um país que não a vê

Segundo o Índice de Pobreza Multidimensional da ONU de 2023, cerca de 42% dos 1,3 milhões de habitantes de Timor-Leste vivem em situação de vulnerabilidade e mais de 24% sobrevivem com menos de 2,15 dólares por dia /Foto: Diligente

Aos 72 anos, Feliciana Mendonça senta-se todos os dias junto à estátua do proclamador da independência para vender folhas de bétel e nozes de areca. Viúva, vítima de tragédias familiares e de agressões por parte da equipa de gestão do mercado de Díli, resiste ao sol e ao cansaço para alimentar a família e manter alguma dignidade.

Quase todos os dias, Feliciana Mendonça senta-se em silêncio em frente à estátua do proclamador da independência, Francisco Xavier do Amaral, para lutar pela sua sobrevivência. Apesar de já ter sido agredida pela equipa de gestão do mercado, esta viúva de 72 anos nunca desistiu de sustentar a sua família.

Segundo o Índice de Pobreza Multidimensional da ONU de 2023, cerca de 42% dos 1,3 milhões de habitantes de Timor-Leste vivem em situação de vulnerabilidade e mais de 24% sobrevivem com menos de 2,15 dólares por dia.

O caso de Feliciana não é único: muitos timorenses, sobretudo idosos, mulheres e vendedores informais, enfrentam diariamente a exclusão social e económica num país onde a pobreza ainda dita o destino de muitos.

Sentada humildemente à beira da estrada, Feliciana exibe um rosto vincado, cabelos brancos e um corpo sem forças. Sobre o passeio por onde todos passam apressados, estende uma lona velha de cerca de 50×50 cm para vender o que pode: noz de areca seca, folhas de bétel, tabaco timorense, banana frita e óleo de cobra.

Não tem banco, nem sombra. A sua única proteção é o muro do Ministério dos Transportes e Comunicações, onde se encosta para tentar aliviar o corpo aquecido pelo sol. Muitas vezes, sente tonturas e fraqueza, mas esta mãe de quatro filhos não desiste da sua luta diária.

Há mais de dez anos que Feliciana sobrevive com este negócio, apesar de ser duro e pouco rentável. Sorridente e generosa, tornou-se uma figura familiar para quem por ali passa. Às vezes, recebe caridade de alguns transeuntes, embora essa nunca tenha sido a sua intenção.

A estátua de Francisco Xavier do Amaral é, para ela, um silencioso testemunho de resistência. Foi ali, naquele mesmo passeio, que sofreu agressões por parte da equipa de gestão do mercado do Município de Díli, que lhe apreendeu os produtos — a sua única fonte de rendimento.

Natural de Aileu, vive atualmente em Caicoli com o seu filho mais novo. Casou duas vezes, mas já não se recorda em que anos perdeu os maridos. Do primeiro casamento teve três filhos, dos quais dois faleceram — um num incêndio em Caicoli e uma filha pouco depois de nascer. Do segundo casamento nasceu outro filho, que já tem família, mas ainda não encontrou trabalho.

Sem ninguém que a possa sustentar, Feliciana assume todas as responsabilidades. Sai de casa às cinco da manhã e regressa apenas ao final da tarde. “Os meus filhos não trabalham. Sou eu quem vem vender aqui para sustentar as necessidades da casa. Se o meu primeiro filho não tivesse morrido, ele nunca me deixaria vender à beira da estrada como agora”, contou, com a voz a tremer.

Recorda, com dor, o acidente que lhe tirou o filho mais velho. Há 12 anos, ele vendia gasolina e um balde com um furo provocou um derrame até à cozinha, originando um incêndio. “O fogo queimou todo o meu corpo e a cabeça, mas mesmo assim consegui correr. O meu filho ficou lá dentro. Os vizinhos vieram ajudar a levar-me ao hospital, mas não o conseguiram salvar.”

Fala do filho com orgulho. “Era trabalhador. Quando nos visitava e via que não tínhamos sal ou arroz, ia buscar e deixava na cozinha. O resto do dinheiro, colocava na minha carteira sem eu dar por isso.”

Desde a morte do filho e dos maridos, Feliciana foi obrigada a montar o seu pequeno negócio à beira da estrada. “Já sou idosa e não tenho forças para andar muito. Se me obrigarem a sair daqui, onde vou ganhar a vida? Quem me dá dinheiro para comprar arroz, sal e óleo para comer?”, pergunta, enquanto rega cuidadosamente as folhas de bétel para que não murchem.

Antes, vendia em Audian, mas foi recusada pelos colegas de venda quando pediu para partilhar o espaço junto a uma loja chinesa. “Ninguém me deu lugar. Trouxe os meus produtos para aqui, mas o coração está sempre inquieto, com medo de que me prendam.”

Feliciana relembra um episódio de humilhação: no ano passado, a equipa de gestão municipal apreendeu todos os seus produtos e proibiu-a de voltar a vender no passeio. “Levaram tudo — noz de areca, folhas de bétel, óleo de cobra e as bananas fritas — e meteram dentro do carro. Fiquei sentada, a olhar, com paciência. Se levam para o Estado, tudo bem. Mas se for para uso próprio, cuidado, porque não se deve roubar o que outros vendem aqui com esforço.”

Parte dos produtos não eram dela. O óleo de cobra e as bananas fritas pertencem a vizinhos que lhos entregam para vender à beira da estrada. “Depois de tudo vendido, dão-me um dólar, como pagamento pelo meu cansaço.”

Cada noz de areca custa 50 centavos. As folhas de bétel embrulhadas em folha de bananeira também custam 50 centavos. As folhas mastigáveis com borracha custam 25. O óleo de cobra, em frascos de bebidas energéticas, vende-se a cinco dólares. As bananas fritas, a 50 centavos.

Questionada sobre a razão de não produzir os próprios produtos, responde: “Já não tenho força. As bananas e o óleo têm de ser comprados, e eu não tenho dinheiro. Além disso, como sou idosa, se fritar as bananas pode nem ficar bom para os outros comerem. Por isso, prefiro vender só a noz e o bétel.”

Mesmo que ninguém compre, continua ali sentada, sem perder a esperança. “Às vezes, só faço um dólar por dia. Com esse dinheiro, recarrego a eletricidade ou compro hortaliças para o jantar.”

O que mais a entristece é o preço do arroz. “Muitas vezes, não consigo comprar um saco, porque está caro. Compro o arroz avulso. Às vezes, comemos só arroz sem mais nada. Paciência.”

Atualmente, recebe 240 dólares do apoio a idosos, de três em três meses. Mas esse dinheiro, diz, mal dura um mês. “Tenho de pagar a escola dos meus netos e cobrir as necessidades do dia a dia.”

Em Timor-Leste, considera-se que a terceira idade começa aos 60 anos. De acordo com os dados do censo de 2022, o país tem uma população de 1,3 milhões de habitantes, dos quais 75 mil têm 60 anos ou mais, sendo 34,8 mil homens e 40,2 mil mulheres. A partir de 2024, os idosos (com 60 anos ou mais) começaram a receber uma pensão de velhice no valor de 60 dólares por mês para os que têm entre 60 e 69 anos, 80 dólares para os que têm entre 70 e 79 anos, e 100 dólares para os que têm 80 anos ou mais.

Muitos pensam que Feliciana é pedinte. Um dia, um estrangeiro aproximou-se e deixou moedas à sua frente. “Fiquei na dúvida. Não estou aqui a pedir. Mas ele disse que podia aceitar. Eram dois dólares. Fiquei contente.”

Confessa que sempre reza por quem compra os seus produtos. “Antes de dormir, peço a Deus para proteger quem me ajuda. É o mínimo que posso fazer.”

Quando lhe perguntaram por que escolheu sentar-se precisamente ali, em frente à estátua do proclamador, respondeu com um sorriso: “É para que o avô Xavier veja que ainda há muitos timorenses a sofrer. Peço-lhe todos os dias que os meus produtos sejam comprados depressa, para eu poder comprar comida. Viver aqui em Díli é difícil.”

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