David Araújo perdeu a visão devido a uma doença e enfrentou inúmeras dificuldades para aceder à educação durante a infância. Hoje, sobrevive vendendo recargas de telemóvel e cigarros. Apesar dos obstáculos, chegou a aprender braille, mas foi forçado a abandonar os estudos devido às responsabilidades que carrega.
Numa manhã de quinta-feira, por volta das 10h, sentado à beira da estrada em Becora, David Araújo partilhou a sua história, enquanto o barulho do trânsito e os gritos das pessoas que passavam ao lado compunham o cenário. Com 32 anos, é o mais velho de três irmãos e lembra-se de ter tido uma infância normal. “Nasci como qualquer outra criança, sem qualquer problema de saúde”, recorda com tristeza.
Mas tudo mudou quando tinha apenas cinco anos. Uma febre intensa e infeções nos olhos preocuparam os pais, que o levaram ao Hospital de Toko Baru (atual Hospital Nacional Guido Valadares). Apesar do tratamento, a sua visão nunca recuperou por completo.
“Os médicos receitaram um medicamento para os meus olhos e disseram que, com o tempo, a minha visão melhoraria. Mas, na realidade, um ano depois, já quase não conseguia ver”, lembra.
Quando os pais voltaram ao hospital, receberam a notícia que temiam: David iria perder completamente a visão. O diagnóstico foi um choque. “Disseram-lhes que já era tarde demais, que a demora em procurar o tratamento adequado comprometeu a minha recuperação”, conta, num tom carregado de mágoa.
A família, porém, não desistiu. Procuraram curandeiros, foram a casas sagradas pedir perdão, mas nada resultou. “O meu pai ficou frustrado, sentia-se impotente”, recorda.
Ainda se lembra de brincar com os irmãos e os vizinhos, de reconhecer os seus rostos. Mas, em 1999, pediu aos pais que lhe explicassem o que tinha acontecido. “Foi aí que me contaram tudo”, diz.
Os estudos nunca fizeram parte do seu quotidiano. Os pais trabalhavam na agricultura, em Manleuana, Díli, e não conseguiam acompanhá-lo na escola. “Antigamente, aquele terreno era cheio de arrozais e hortas. Hoje, está coberto de casas e prédios. Os meus pais cultivavam arroz, hortaliças, milho, entre outros produtos, para garantir o estudo dos meus irmãos, mas não tinham tempo para me orientar”, explica.
Uma batalha diária para sobreviver
Atualmente, David vende recargas de telemóvel das três operadoras — Timor Telecom, Telkomsel e Telemor — além de cigarros, para sustentar a família. Mora num quarto arrendado em Becora, por 40 dólares mensais, com a esposa e um filho. Os outros dois filhos vivem com os avós na montanha, porque o casal não tem condições para os manter. Enquanto isso, a mulher está grávida do quarto filho.
A insegurança alimentar é uma realidade dura em Timor-Leste. O Índice Global da Fome de 2022 classificou o país na 110.ª posição entre 121 países analisados, revelando um nível grave de fome no Sudeste Asiático. A pobreza afeta a alimentação, sobretudo das crianças, e as dificuldades estruturais, como o acesso limitado a alimentos nutritivos e os desafios na agricultura, agravam ainda mais a situação.
David sabe que a maioria da população timorense depende da agricultura para sobreviver. “Como eu não posso trabalhar no campo, depois da pandemia decidi abrir este pequeno negócio para sustentar a minha família”, conta.
Reconhece que tem um pequeno privilégio: recebe um subsídio trimestral do governo para pessoas com deficiência. Mas 180 dólares não chegam para cobrir as despesas familiares, incluindo as propinas dos filhos.
As dificuldades do dia a dia
O dia de trabalho de David começa cedo, às 6h, e só termina às 18h, de segunda a sexta-feira. É um trabalho árduo, mas necessário. Com a ajuda da esposa, que o avisa sobre os horários, ele desloca-se até à estrada em frente ao Centro de Formação de Língua Coreana, onde passa o dia a vender.
Com o primeiro subsídio que recebeu, investiu no negócio: comprou um armário de vidro por 60 dólares para organizar os produtos, gastou 100 dólares em cigarros e usou os 20 dólares restantes para comprar arroz e alguns legumes.
Apesar de não ver, aprendeu a distinguir os produtos de forma engenhosa. “As recargas da Telemor são diferentes das outras duas. A da Timor Telecom é mais fina do que a da Telkomsel. Nos cigarros, as marcas também são fáceis de diferenciar pelo formato e textura das embalagens”, explica.
As moedas são fáceis de contar pelo tato, mas as notas são um desafio. “Há pessoas que se aproveitam. Uma vez, dois jovens compraram dois maços de cigarros e disseram que me deram 10 dólares. Devolvi-lhes 8 dólares. Mais tarde, a minha mulher contou o dinheiro e percebeu que só me tinham dado 5 dólares. Mas pronto, o que posso fazer? São as dificuldades da vida”, lamenta.
Ainda assim, há dias bons. “Às vezes consigo ganhar até 50 dólares num dia. Mas isso ainda é pouco para cobrir todas as despesas da família”, admite.
O direito à educação: um sonho adiado
O governo criou várias políticas para apoiar pessoas com deficiência, incluindo subsídios e legislação que garante o direito à educação. A Lei N.º 14/2008 estabelece que todos os cidadãos devem ter as mesmas oportunidades de aprendizagem. O Decreto-Lei N.º 6/2013 reforça essa ideia, promovendo a erradicação do analfabetismo e o ensino inclusivo.
Na prática, porém, a realidade é bem diferente. A falta de infraestruturas escolares adaptadas, recursos específicos e professores qualificados impede que muitos consigam estudar.
Em 2023, David inscreveu-se na East Timor Blind Union (ETBU) para aprender braille. Conseguiu ler e compreender textos, mas não pôde continuar os estudos. “Se eu estudasse, a minha família passaria fome. Por isso, preferi trabalhar para dar aos meus filhos a oportunidade que eu nunca tive”, explica.
Apesar das dificuldades, David tem um grande sonho: construir uma casa para a esposa e os filhos. “Mas, na minha situação, parece impossível”, admite.
Antes de nos despedirmos, recorda uma conversa recente com um amigo de infância. O colega, que estudou no Centro de Formação de Língua Coreana, contou-lhe as suas experiências. David sorriu e disse: “Se eu não tivesse este problema, talvez também tivesse aprendido coreano e ido trabalhar para a Coreia. Não para ficar rico, mas para dar uma vida melhor à minha família.” E, pela primeira vez na conversa, soltou uma gargalhada.
O que dizem os dados?
De acordo com os dados da Asosiasaun Halibur Defisiensia Matan Timor-Leste (AHDMTL), a associação reúne atualmente cerca de 100 pessoas com deficiência visual. No entanto, os censos de 2015 registaram um número significativamente maior, com um total de 14.828 pessoas com deficiência visual. Já os censos de 2022 não apresentam dados específicos sobre essa população, dificultando a análise comparativa entre os diferentes períodos.
Ainda segundo a AHDMTL, apenas 20 pessoas com deficiência visual frequentam o ensino superior, sendo 11 homens e 9 mulheres. No ensino recorrente, destinado àqueles que não puderam estudar desde cedo ou interromperam os estudos, há apenas 17 beneficiários. Estes números refletem os desafios significativos que a comunidade com deficiência visual enfrenta no acesso à educação em Timor-Leste.
Segundo o censo de 2022, Timor-Leste tem 17.061 pessoas com deficiência, sendo 8.517 homens e 8.544 mulheres, num total de aproximadamente 1,3 milhões de habitantes. Até ao final de 2023, cerca de oito mil dessas pessoas recebiam um subsídio.