“A minha família quis obrigar-me a casar, porque desconfiou que eu mantinha uma relação íntima com o meu namorado”. Aida, 17 anos, divide os seus dias entre a Escola Secundária Geral 10 de Dezembro, onde é finalista, e os espaços públicos, onde vende café e cigarros para sobreviver, enquanto tenta adiar o casamento que a família quer impor.
O relógio marca 08h15. Em frente ao Palácio do Governo, o mar está calmo e o vento sopra suavemente, trazendo uma leve sensação de frio. Estudantes, funcionários e vendedores ambulantes movimentam-se com a pressa habitual de quem tem um dia de trabalho pela frente. No meio da multidão, está uma estudante de uniforme. Carrega um termo de água quente numa mão e, na outra, uma pequena caixa de plástico com copos de papel, café, cappuccino, açúcar e leite condensado (Enaak). Caminha com cuidado, até encontrar um pouco de sombra debaixo de uma árvore.
Senta-se e começa a organizar os seus produtos, sempre atenta a quem por ali passa. De seguida, abre a mochila e tira uns maços de tabaco, empilhados com a ajuda de um elástico. Levanta-se, dá uns passos em frente, cabeça bem levantada, e começa a mostrar às pessoas os maços de tabaco que tem na mão, interpelando-as timidamente.
Aida (nome fictício), nasceu em Pante Macassar há 17 anos, no Oé-cusse. Mudou-se para Díli com a família, mas hoje já não partilham o mesmo teto. Mora em Beto Tasi e, sem que fizesse por isso, vê-se obrigada a acordar bem cedo, a vestir o uniforme escolar e a procurar uma praça ou a berma de uma estrada para vender café e cigarros. Ao meio-dia, compra um pacote de arroz, de 50 centavos, para almoçar, e segue diretamente para as aulas. “Tenho de vender cigarros, porque já formei família e preciso de dinheiro para pagar a escola e outras necessidades”, explica.
A jovem aceita partilhar um pouco do seu passado e conta que a história do casamento não é por vontade própria, mas sim por imposição da família. “Sentia-me muito triste em casa, porque estava sempre a ser repreendida pelos meus pais. Um dia, fui com o meu namorado visitar a sua família, em Tasi Tolu. Passámos lá o dia e, como já era tarde, os meus pais foram à minha procura. Quando chegaram, viram-me vestida com a camisa do meu namorado e começaram logo a desconfiar de que nós já teríamos tido relações sexuais. Tentámos explicar que não tínhamos dormido juntos, mas eles não acreditaram. Desde então, a minha família pressiona-nos para casar o mais rápido possível”, conta, num tom pesado.
Naquele momento, Aida tinha 16 anos. Os seus primos e tios terão ido a casa do namorado e agrediram violentamente o casal, deixando-os a sangrar. “A minha família achou que ele [o namorado] me tinha raptado. O pior foi dizerem que já tínhamos tido relações íntimas. Mas isso não aconteceu. Havia muita gente naquela casa. Não estávamos a sós”, revela a jovem.
Após as agressões, Aida e o namorado ponderaram apresentar queixa à polícia, mas mudaram de ideias. Afinal, os agressores eram os próprios tios. “Eles bateram-nos e dissemos que aquilo era crime. O meu tio só dizia: ‘se quiserem apresentar queixa à polícia, então vão’. Mas decidimos não fazer, porque eram os nossos tios, e nós, como sobrinhos, não podíamos contrariar”, afirma.
A família controla o “felizes para sempre”
O casamento forçado continua a ser uma realidade em Timor-Leste. Embora não existam dados concretos sobre o número de jovens obrigados pelas famílias a casar, na sociedade timorense, de um modo geral, as pessoas casam cedo. Segundo um estudo de 2021 da Plan International, 24% dos jovens timorenses com 24 anos já têm filhos e 29% dos que têm 18 anos já estão casados.
O namorado de Aida tem agora 20 anos. Terminou o secundário no ano passado e ainda não conseguiu um emprego estável. O namoro começou em 2023, quando os dois frequentavam a Escola Secundária Geral 10 de Dezembro. Apesar de serem jovens, de não terem filhos, nem um casamento oficializado, os dois já são vistos como um casal. “Por enquanto, queremos apenas namorar. Casar, só depois de eu terminar os estudos e de termos um emprego fixo. Mas a minha família não aceita isso”, confessa.
O ambiente familiar mudou drasticamente e Aida foi expulsa de casa, com a própria família a acusá-la de ter tido relações sexuais com o namorado. A estudante teve de procurar outro lugar para viver. “Os meus pais já não me querem mais. Tive de sair de casa. Falei, então, com o meu namorado e ele mandou-me ir viver com um tio, que ainda é nosso vizinho, em Beto. Esse meu tio compreende a minha situação e aceitou receber-me”, recorda.
Aida confessa que a sua família ainda não aceita que ela viva com o seu parceiro. “Os meus tios estão à espera que a família do meu namorado venha primeiro conversar [com os tios] e só depois é que eu posso ir viver com o meu namorado”. A jovem acrescenta que as famílias já planeiam realizar, em agosto deste ano, uma reunião cultural para formalizar o casamento.
A (de)pressão familiar
Aida é a única filha do primeiro casamento da mãe. Os pais divorciaram-se quando ela ainda era pequena. Mais tarde, a mãe casou com outro homem, com quem teve três filhos. “A minha mãe e o meu pai adotivo não gostam de mim, nem do meu namorado, e não sabemos o motivo. O meu pai adotivo está sempre a reclamar com a minha mãe por minha causa e isso deixa-a irritada comigo”, diz, com um ar indignado.
A jovem vai mais longe e afirma ter sido alvo de pressões e maus-tratos por parte da mãe e do padrasto. A pressão, explica, era intensificada pela relação tóxica do casal, que deixava a mãe num estado depressivo. “A minha mãe chegou a pegar numa corda para se suicidar. Também agarrou numa faca para se esfaquear, só porque eu voltei tarde da escola, mesmo que lhe tenha explicado que aquele era o horário normal”. É com desespero no olhar que confessa: “ninguém me quer ouvir. Sinto-me sozinha e com peso na consciência”.
Coragem para uma nova jornada
Excluída do agregado familiar, Aida passou a ser livre e independente. A mãe e o pai já não querem pagar a escola, nem dar dinheiro para transportes ou para outras necessidades. A liberdade, porém, não a desvia do objetivo de concluir os estudos. “Eu não posso abandonar a escola, tenho de terminar. Por isso, conversei com o meu namorado e começámos os dois a vender cigarros e café na beira da estrada. Assim, conseguimos cobrir as nossas despesas”, assegura.
De manhã cedo, antes de sair de casa, ajuda nos trabalhos domésticos, na casa do tio: lava a loiça e limpa a casa. Depois, toma banho, veste o uniforme e sai para vender os produtos. Na mochila, leva sempre a camisa da escola, cadernos, lápis e, claro, os cigarros para vender.
“Não tenho medo de vender nas ruas, porque esta é a minha vida agora. Sou uma filha que foi expulsa de casa”, diz, com um leve sorriso nos lábios. A coragem, conta, “está sempre presente” e, quando começa a faltar, são os colegas da escola que lhe dão apoio.
Os produtos que vende são comprados pelo seu parceiro, que chegou a trabalhar na construção civil, em Bidau. “Com o pouco dinheiro que temos, compramos os cigarros para fazer este pequeno negócio. Assim, o dinheiro continua a circular nas nossas mãos. Caso contrário, se surgisse uma emergência, onde iríamos buscar dinheiro? Ainda mais agora, que a família já não quer saber de nós”.
Fazem turnos para vender nas ruas – “eu vendo de manhã, até ao meio-dia, e ele à tarde, até à meia-noite” – e tentam combater o cansaço com motivação. “Se não vendermos, quem vai dar dinheiro para comprar cadernos, lápis, tirar fotocópias e para outras necessidades? Os meus pais dizem que já formei uma casa. Agora tenho de encontrar meios para não passar fome”, desabafa.
Em frente ao Palácio do Governo há muitos jovens a vender cigarros e café. As vendas são incertas e tudo “depende da sorte. Às vezes, das oito da manhã até ao meio-dia, só consigo cinco ganhar dólares. Mesmo que seja pouco, eu agradeço sempre”.
É com alguma tristeza que olha para a rotina de outros jovens, que apenas “colocam o uniforme e seguem diretamente para as aulas”. É nesse momento que o sonho de ser médica se sobrepõe ao cansaço e ao desânimo perante a vida. Aida garante que, “depois de terminar o secundário, quero descansar um ano para procurar dinheiro e só depois é que vou voltar a estudar”.
Embora reconheça que a medicina seja uma área que exige muito empenho “e dinheiro para pagar a formação”, a jovem garante que vai estudar com dedicação para alcançar o seu sonho. “Tenho de lutar para ter um futuro melhor”.
Impactos do casamento precoce
A Plan International destaca que o casamento precoce é uma barreira que leva muitos jovens, tanto raparigas como rapazes, a abandonarem a escola. A organização acrescenta que a situação pode resultar “em dificuldades no acesso ao mercado de trabalho, menor produtividade, maior vulnerabilidade e no risco de se tornarem vítimas de violência, discriminação e exclusão social, tanto na comunidade, como na sociedade em geral”.
Em 2023, o Parlamento Nacional aprovou a Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Situação de Perigo (Lei n.º 6/2023, de 01 de março), com o objetivo de promover e garantir os direitos das crianças e jovens, bem como assegurar a sua proteção e bem-estar. Esta lei estabelece que as crianças têm o direito de receber proteção especial por parte da família, da comunidade e do Estado, além do direito à proteção social e ao usufruto dos direitos fundamentais consagrados na Convenção sobre os Direitos da Criança.
O Artigo 18.º da Constituição da República Democrática de Timor-Leste (CRDTL) garante, enquanto princípio geral, o direito das crianças a obter proteção especial por parte da família, da comunidade e do Estado.
A CRDTL e o Código Civil referem que o casamento se deve basear no consentimento livre e mútuo dos noivos. Casamentos forçados podem ser considerados ilegais, especialmente se envolverem menores de idade.
Para o psicólogo timorense, Ângelo Aparício, quando uma pessoa ainda não está devidamente preparada para formar uma família, pode vir a evidenciar sintomas de frustração, ansiedade e perda de controlo emocional. O especialista acrescenta que o casamento precoce pode “ferir emocionalmente os casais”, levando-os a sentir que perderam muitas oportunidades durante a sua juventude.
O psicólogo defende a inclusão de disciplinas que abordem a saúde reprodutiva e o planeamento familiar no currículo escolar, a partir do terceiro ciclo do ensino básico, sem esquecer a responsabilidade parental no acompanhamento do percurso escolar dos filhos. “Devem ser aplicadas sanções rigorosas aos pais ou tutores que não apoiem a educação dos filhos até ao ensino secundário ou que permitam o casamento precoce”, reforça, alertando para a urgência de uma lei que estabeleça os “21 anos, ou mais, como idade mínima para casar”.
O Governo e as organizações da sociedade civil vão divulgando planos, ações de sensibilização e intervenções na comunidade para falar de direitos das mulheres e das crianças. A realidade, porém, mostra que ainda há um longo caminho a percorrer e que, tanto a sociedade, como as próprias famílias, continuam a permitir (e a silenciar) situações de perigo e de vulnerabilidade que envolvem crianças e jovens. A história de Aida espelha a realidade de muitas crianças e jovens timorenses, muitas delas abafadas pela “cultura” e por valores que as fazem viver no medo, no silêncio e na solidão.