A cada 8 de março, multiplicam-se os discursos sobre igualdade e direitos das mulheres em Timor-Leste. Mas a realidade é outra: mulheres perseguidas, assediadas, violadas e silenciadas por um sistema que não as protege. Entre o medo, a impunidade e a indiferença, continuam a lutar para serem ouvidas.
“Acordei confusa. O carro tinha parado e senti mãos a puxarem-me para fora. Não reconhecia o lugar. Quando olhei à volta, percebi: não era o bar onde os meus amigos estavam. Estávamos num motel.”
A noite tinha começado como tantas outras. Um grupo de amigos, um bar, conversas animadas e alguma bebida à mistura. Entre o grupo, dois homens juntaram-se à conversa. Eram conhecidos, mas nada mais do que isso. Quando chegou o momento de decidir para onde ir a seguir, a jovem, já cansada e com algum álcool no corpo, aceitou a boleia que lhe ofereceram. A maioria dos seus amigos estava de mota, e ir de carro parecia uma opção segura.
Durante a viagem – que não deveria demorar mais de 20 minutos –, adormeceu. Quando abriu os olhos, percebeu que o carro tinha parado. Ainda meio atordoada, foi ajudada a sair. Mas, em vez de estar no bar combinado, estava num motel com quartos pagos à hora.
“O choque foi imediato, mas ainda não percebia bem o que estava a acontecer. Eles seguraram-me pelos braços e levaram-me para um quarto. Deitaram-me na cama e perguntei: ‘O que estamos aqui a fazer?’ Foi então que um deles se debruçou sobre mim, tentou beijar-me e acariciar-me o pescoço.”
Percebeu, naquele instante, que não tinha sido um erro inocente. Eles tinham planeado tudo. “Afastei-o e disse que queria ir para casa. Ele riu-se, ignorou o que eu disse e tentou agarrar-me com mais força. Foi aí que entrei em pânico. Comecei a gritar e a dar pontapés. Empurrei-o com toda a força que tinha. O outro apenas observava. Fiz tudo o que pude para os afastar e, no fim, consegui.”
Os dois desistiram. Saíram do quarto, deixando-a sozinha. A jovem ficou ali, imóvel, em estado de choque. Sem telemóvel, sem ninguém a quem pedir ajuda, sem conseguir pensar no que fazer. O corpo estava exausto, e a mente, um caos. Entre o desespero e o medo, acabou por adormecer.
Só quando o sol começou a entrar pela janela teve coragem para sair. Com passos trémulos, procurou uma saída. Na rua, avistou um táxi azul e conseguiu voltar para casa.
Foi uma violência. Foi um crime. E, até hoje, pergunto-me: quantas mulheres já passaram pelo mesmo? Quantas tiveram o mesmo medo que eu tive?”
“Nunca contei a ninguém. Nunca fui à polícia. Passei dias, semanas, meses a tentar esquecer, a convencer-me de que talvez não tivesse sido tão grave assim. Mas foi. Foi uma violência. Foi um crime. E, até hoje, pergunto-me: quantas mulheres já passaram pelo mesmo? Quantas tiveram o mesmo medo que eu tive?”
“Quando entrei na microlete, só pensava em chegar a tempo ao exame. Sentei-me ao lado de um homem mais velho, com cerca de 45 anos. A viagem seguiu normalmente, ou pelo menos assim pensava. Nem percebi que, por baixo dos sacos que levávamos, a mão dele estava na minha coxa.”
Maria da Cruz (nome fictício) apercebeu-se do abuso quando se levantou para sair. Assim que olhou para baixo, o choque paralisou-a. “Vi a mão dele em mim. O meu corpo congelou por um segundo, depois gritei. Ele não disse nada. Ninguém disse nada. Chorei o caminho todo até à escola. Quando cheguei, já não conseguia pensar em mais nada. Falhei o exame. O meu dia, a minha semana, o meu mês já não eram os mesmos.”
Mas não foi a única vez que sentiu o medo de ser mulher em Timor-Leste. “Voltava para o trabalho e decidi passar por um atalho. Quando olhei para trás, vi um homem a seguir-me. No início, tentei acalmar-me, pensar que não era nada. Mas ele não abrandava. Não mudava de direção. O coração começou a bater mais forte.”
Maria tentou manter a calma. Pegou no telemóvel e fingiu estar ao telefone, dizendo em voz alta a sua localização. O homem aproximou-se ainda mais. “Perguntou-me para onde ia, qual era o meu nome, o meu número de telefone. Não respondi. Acelerei o passo. Mudei de caminho. Mas ele ainda estava lá.”
Depois de quase uma hora a tentar despistá-lo, conseguiu regressar ao escritório. Mas quando olhou pela janela, a realidade gelou-lhe o sangue: o homem ainda estava lá. “Foi nesse dia que percebi que não podia confiar em ninguém. Desde então, vivo sempre com medo.”
A jovem, consumida pelo trauma, fechou-se dentro de casa. O mundo lá fora, onde os seus violadores continuam livres, já não lhe pertence. Não sai. Não estuda. Não trabalha.
Em 2023, uma jovem de 17 anos foi violada por sete homens em Díli. Sete agressores. Sete criminosos. Nenhum preso. “Ela conhecia-os. Viviam todos no mesmo bairro. Disseram-lhe que iam a uma festa, mas levaram-na para uma casa vazia. E aconteceu.”
Os pais da vítima recusaram-se a apresentar queixa. Disseram que denunciar o crime seria uma vergonha para a família. “Chamámos a polícia, mas a família não quis avançar com o caso. Disseram que era melhor esquecer”, contou a prima da vítima.
A jovem, consumida pelo trauma, fechou-se dentro de casa. O mundo lá fora, onde os seus violadores continuam livres, já não lhe pertence. Não sai. Não estuda. Não trabalha.
Organizações de apoio tentaram ajudá-la, oferecendo assistência psicológica e jurídica gratuita. Mas os pais continuam a impedir qualquer ação legal. Os agressores seguem a vida normalmente. Ela ficou com a sentença do silêncio.
“Vivemos num país de pessoas importantes (ema boot) e pessoas pequenas (ema ki’ik), e esses abusos acontecem dentro dessa ‘hierarquia’. O mais forte ataca o mais fraco, que, por medo de represálias, medo de perder o emprego, medo da vergonha e da exposição pública, medo das reações da família, fica em silêncio.”
Afonsina (nome fictício) faz o mesmo percurso todos os dias. Um quilómetro de estrada. Um caminho estreito entre casas e prédios. Mas, durante duas semanas, esse trajeto tornou-se um pesadelo.
“A primeira vez vi-o de longe. Estava a urinar contra uma parede. Fiquei com um aperto no peito. Quando me aproximei, ele virou-se para mim. As calças ainda estavam abertas.”
Tentou ignorá-lo. Apressou o passo, fingiu que não via nada. Mas chegou ao trabalho a tremer. Dias depois, encontrou o mesmo homem. Mas, desta vez, ele não estava distraído.
“Olhou-me nos olhos. Fez um som para chamar a minha atenção: ‘shhhtt’. Virei-me e percebi: estava outra vez exposto.” O pânico transformou-se em raiva. “Gritei: ‘És maluco?’ Peguei em pedras para lhe atirar. Ele não se mexeu. Peguei no telemóvel e disse que ia filmá-lo. Foi aí que fugiu.”
Desde então, Afonsina não sai à rua sem o telemóvel na mão. Não por hábito, mas por sobrevivência.
A mulher que foi levada para um motel naquela noite ainda sente o peso do que aconteceu. Não se trata apenas do medo que ficou, mas da perceção de que a violência contra as mulheres em Timor-Leste é muitas vezes ignorada, tolerada e até normalizada.
Ela conhecia os agressores. Não eram estranhos, já tinham estado juntos em grupo algumas vezes. Mas isso não significava que houvesse uma relação de confiança. “Sabia quem eram, mas não éramos próximos. E nunca pensei que fossem capazes de algo assim”, confessou.
Depois do que aconteceu, o trauma ficou, mas também uma visão mais clara sobre o problema. Para ela, esta situação revelou muito sobre a mentalidade enraizada na sociedade timorense. “O assédio sexual está normalizado. As pessoas sabem que acontece, assistem a episódios e acabam por não fazer nada. Porquê? Porque, na maioria dos casos, existe uma relação de poder. Vivemos num país de pessoas importantes (ema boot) e pessoas pequenas (ema ki’ik), e esses abusos acontecem dentro dessa ‘hierarquia’. O mais forte ataca o mais fraco, que, por medo de represálias, medo de perder o emprego, medo da vergonha e da exposição pública, medo das reações da família, fica em silêncio.”
A jovem sente que essa impunidade se reflete em todos os setores da sociedade. “No setor público, isto acontece constantemente. Toda a gente sabe que há assédio e tentativas de violação, e ninguém faz nada. Está normalizado. É quase como se ninguém acreditasse que uma pessoa importante pudesse fazer isso com maldade. Mas fazem. E, no meio disto tudo, nós, mulheres, percebemos que a nossa posição na sociedade timorense ainda está muito pouco consolidada”, desabafou.
O medo tornou-se parte da sua rotina. Depois daquela noite, passou a ter dificuldade em confiar nas pessoas e fez mudanças no seu dia a dia para evitar possíveis riscos. “Hoje sou mais cautelosa. Mas não devia ser assim. Eu não devia ter de mudar a minha vida por causa do que me fizeram.”
Apesar de tudo, nunca denunciou os agressores. “E não foi por medo deles”, garantiu. Para ela, o maior obstáculo foi outro: “Não queria a exposição pública, não queria envolver a minha família, não queria passar pelo julgamento social. No fundo, acabei por fazer o que tantas vítimas fazem: ficar em silêncio.”
Ela acredita que os seus agressores precisam de ser responsabilizados, mas vê o problema de uma forma mais ampla. “Não quero vingança, quero que estas pessoas sejam confrontadas com o que fizeram e, mais do que sofrerem algum tipo de punição, recebam tratamento. São pessoas doentes.”
Em Timor-Leste, reconhece que há algumas organizações que prestam apoio a vítimas de violência sexual. ONG’s, centros de acolhimento, serviços de apoio jurídico e psicológico. Mas tudo isso ainda é insuficiente. “O apoio ainda é limitado, especialmente nas áreas rurais. Muitas vítimas não sabem onde procurar ajuda, não têm proteção e, pior ainda, têm medo de serem rejeitadas pela própria comunidade. Quando as autoridades falham, as vítimas sentem-se completamente sozinhas”, explicou.
Quando questionada sobre o que deveria mudar para que outras mulheres e raparigas se sentissem mais seguras, a resposta foi imediata: leis mais fortes e aplicação rigorosa. “As leis existem, mas precisam de ser aplicadas de forma justa e eficaz. Se continuarmos a permitir que os agressores fiquem impunes, nada vai mudar.”
Além disso, acredita que a mudança deve começar cedo. “A educação sobre direitos e igualdade de género devia ser promovida logo na infância. Não podemos esperar que os homens mudem quando já são adultos. Precisamos de ensiná-los desde pequenos que a violência contra mulheres não é aceitável.”
Para além das leis e da educação, há outra necessidade urgente: apoio real às vítimas. “É preciso reforçar os serviços de apoio. Precisamos de casas de abrigo, linhas de denúncia eficazes, assistência psicológica gratuita. As mulheres não podem continuar a enfrentar isto sozinhas.”
Não procurou apoio psicológico ou jurídico depois do que aconteceu. “Não porque não existam entidades que prestam esse apoio, mas porque, naquele momento, só queria esquecer.”
No entanto, deixou um apelo a outras mulheres que possam estar a passar pelo mesmo. “Se estás a viver algo assim, lembra-te: não estás sozinha. Tens o direito de ser ouvida e protegida. A culpa nunca é tua. Ninguém merece sofrer qualquer tipo de violência. Procura ajuda, seja junto de amigos, familiares ou organizações que te possam apoiar. Há pessoas que se preocupam e querem ajudar.”
Por fim, dirigiu-se à sociedade e às autoridades. “A violação, o abuso e o assédio sexual são crimes. Não podem ser ignorados ou tratados com desleixo. A sociedade tem de parar de culpar as vítimas e começar a responsabilizar os agressores. E mesmo que seja apenas uma tentativa, este tipo de situações deve ser levado a tribunal. Se não houver punição, a violência vai continuar. Criar um ambiente onde as mulheres e raparigas se sintam seguras devia ser uma prioridade para todos.”
“A sociedade tem de parar de culpar as vítimas e começar a responsabilizar os agressores. E mesmo que seja apenas uma tentativa, este tipo de situações deve ser levado a tribunal. Se não houver punição, a violência vai continuar. Criar um ambiente onde as mulheres e raparigas se sintam seguras devia ser uma prioridade para todos.”
Justiça lenta e impunidade: quando o sistema falha as vítimas
A diretora do Programa de Monitorização do Sistema Judicial (JSMP), Ana Paula, revelou que a maioria dos casos acompanhados pela organização nos tribunais de Timor-Leste envolve violência doméstica. No entanto, a morosidade dos julgamentos e as penas brandas para os agressores continuam a ser um problema grave.
“Muitas vítimas apresentam queixa, mas os processos são constantemente adiados. E, quando finalmente há uma decisão, os agressores recebem penas leves, o que deixa as vítimas frustradas e desprotegidas”, afirmou Ana Paula.
Para a diretora do JSMP, a violência psicológica é uma das formas de abuso mais devastadoras, muitas vezes ignorada pelo sistema. “Se uma pessoa sofre violência sexual, o impacto psicológico é imediato. A agressão física pode passar, mas as consequências emocionais ficam para sempre”, alertou.
Ana Paula sublinha ainda que, apesar de muitas pessoas quererem recorrer à justiça formal, a falta de confiança no sistema é crescente. “Os constantes adiamentos e a incerteza sobre o desfecho dos casos fazem com que muitos desistam. Isto não é justo. Se um julgamento vai ser adiado, pelo menos deveria haver uma notificação prévia, para que as vítimas não percam tempo, dinheiro e energia”, explicou.
A frustração com o sistema judicial tem levado algumas vítimas a procurar justiça tradicional, onde, segundo o JSMP, frequentemente há um tratamento igual entre agressor e vítima, como se a culpa fosse partilhada.
A juíza Francisca Marques reconhece que a lentidão dos processos judiciais tem levado os cidadãos a recorrerem a sistemas informais de resolução de conflitos. Apesar de não haver leis que impeçam essa prática, ela admite que há diversos fatores que dificultam o funcionamento dos tribunais formais.
“Faltam juízes, procuradores e, muitas vezes, há ausências de partes envolvidas nos processos. Há casos em que arguidos, vítimas ou representantes do Ministério Público não comparecem, atrasando ainda mais os julgamentos. Além disso, um procurador pode ter de acompanhar vários casos ao mesmo tempo, o que prejudica o andamento de todos os processos”, explicou a magistrada.
“O problema não está só na aplicação da lei, mas no medo que as mulheres ainda sentem para levar os casos a tribunal. O governo deveria disponibilizar psicólogos para apoiar as vítimas, especialmente as mulheres”, sugeriu.
Outro problema identificado é a falta de clareza na comunicação das decisões judiciais. “Muitas vítimas e arguidos não compreendem o que lhes é dito nos tribunais. Mas os juízes não têm o papel de explicar detalhadamente. Esse trabalho cabe aos advogados, defensores públicos e procuradores. O tribunal apenas lê a decisão, usando linguagem simples e acessível”, esclareceu Francisca Marques.
Timor-Leste já ratificou diversas normas para proteger os direitos das mulheres, mas a juíza admite que ainda falta sensibilização para incentivar as vítimas a denunciar. “O problema não está só na aplicação da lei, mas no medo que as mulheres ainda sentem para levar os casos a tribunal. O governo deveria disponibilizar psicólogos para apoiar as vítimas, especialmente as mulheres”, sugeriu.
Nos casos de violência doméstica, muitas vezes aplica-se apenas uma pena suspensa, o que significa que o agressor não cumpre pena de prisão. Francisca Marques defende que cada caso deve ser avaliado individualmente. “Não podemos generalizar. Primeiro, analisamos a situação e avaliamos as circunstâncias. Se o casal já se reconciliou, por que motivo deveríamos prender essa pessoa? O objetivo da justiça não é apenas punir, mas também prevenir”, justificou.
“O problema está nas bases culturais que sustentam estas desigualdades. Podemos ter projetos de prevenção e proteção, mas se não mudarmos a forma como a sociedade encara o poder, os papéis de género e a empatia social, a violência e a opressão continuarão a ser reproduzidas”
O impacto psicológico da violência de género
Para além das consequências físicas e sociais, a violência de género deixa marcas profundas na saúde mental das vítimas. O psicólogo Alessandro Boarccaech alerta que muitas mulheres que passam por situações de violência sexual ou de género desenvolvem perturbações como depressão, ansiedade e stress pós-traumático. Além disso, vivem constantemente com medo, carregam sentimentos de vergonha e culpa e veem a sua autoestima deteriorar-se.
A falta de acesso a serviços de saúde mental agrava ainda mais o sofrimento das vítimas, segundo o psicólogo. “O estigma social e as dificuldades para denunciar abusos fazem com que muitas mulheres se sintam isoladas e sem apoio, o que pode levar a consequências emocionais devastadoras”, explicou.
A cultura patriarcal enraizada na sociedade timorense é outro fator que dificulta a mudança. Boarccaech considera que, em contextos patriarcais, a desigualdade de género é vista como algo natural e, por isso, a violência contra as mulheres é muitas vezes tratada como um assunto privado ou justificada dentro das dinâmicas de poder existentes. “O medo de romper com as tradições e enfrentar o julgamento social faz com que muitas vítimas permaneçam em silêncio, perpetuando um ciclo de impunidade”, sublinhou.
Estudos realizados pelo psicólogo sobre a perceção das mulheres na sociedade timorense indicam que, na mentalidade coletiva, o sucesso feminino está frequentemente ligado à aprovação de uma figura masculina. “Para uma mulher alcançar destaque, muitas vezes precisa do apoio de um homem influente, geralmente um familiar. São raras as exceções em que as mulheres são reconhecidas pelo seu próprio mérito, e essas exceções acabam por confirmar a regra”, afirmou.
Num dos seus estudos, Boarccaech analisou o caso de uma jovem de uma aldeia no município de Díli, que trabalhava, estudava e não aceitava ordens passivamente. Os homens da sua comunidade não a viam como alguém “para casar”, mas apenas “para brincar”. O motivo? “Diziam que ela tinha ‘boca grande’, ou seja, pensava por si própria e não se submetia à autoridade masculina. O ‘erro’ dela foi simplesmente procurar autonomia num contexto que resiste à independência feminina”, relatou o psicólogo, sublinhando como desafiar as normas patriarcais pode ser socialmente punido.
Para Boarccaech, combater a violência de género exige mais do que campanhas de sensibilização ou programas de apoio às vítimas. “A violência de género, a masculinidade tóxica e a misoginia não são fenómenos isolados, mas parte de um sistema ideológico enraizado que influencia todas as relações sociais”, explicou. Embora existam muitos programas dedicados à igualdade de género e à inclusão social em Timor-Leste, esses esforços nem sempre são eficazes, pois enfrentam barreiras culturais profundas.
O problema está nas bases culturais que sustentam estas desigualdades. Podemos ter projetos de prevenção e proteção, mas se não mudarmos a forma como a sociedade encara o poder, os papéis de género e a empatia social, a violência e a opressão continuarão a ser reproduzidas”, afirmou o psicólogo. Para ele, sem uma mudança estrutural profunda, qualquer progresso será apenas pontual e insuficiente para transformar a realidade das mulheres timorenses.
“Fala-se muito de igualdade, mas as mulheres continuam a ter medo de sair à noite porque são vistas como objetos sexuais.”
O que dizem as organizações feministas?
Emília Moniz, membro da organização Feminista Revolucionária (FERA), defende que, apesar de Timor-Leste ter um compromisso formal com a igualdade de género através do seu Plano de Ação Nacional, a implementação das leis continua a ser fraca e inconsistente. “As entidades não querem desafiar as normas sociais, fazem uma advocacia muito branda e não levam a sério a questão da violência baseada no género”, critica.
Recentemente, a Secretaria de Estado da Igualdade e o Ministério da Educação condenaram publicamente um caso de assédio sexual numa escola secundária em Díli. No entanto, para Emília, essa condenação foi uma exceção, não a regra. “Isto só acontece em alguns casos. Quando os abusos são cometidos por pessoas influentes e com poder, o silêncio impera”, lamenta.
A ativista sublinha que o acesso à justiça em Timor-Leste não é um direito garantido para todos, pois ainda depende de condições económicas e da infraestrutura disponível. Para muitas mulheres que vivem em áreas rurais, denunciar um crime pode ser um risco ainda maior. “As vítimas percebem que os mecanismos de assistência existentes nem sempre as protegem. Pelo contrário, podem colocá-las em ainda mais perigo”, explica.
“Muitas vezes, as pessoas acham que somos loucas quando denunciamos um homem poderoso que assediou uma mulher. Ou dizem que ‘é normal’. Não, não é normal. E pior ainda é ver diretores de escolas a cometerem violência sexual contra alunas”
O medo de represálias e a ineficiência do sistema judicial fazem com que muitas mulheres optem pelo silêncio. “Muitas vítimas denunciam, mas os processos arrastam-se durante meses ou anos. O pior é que, enquanto esperam por justiça, podem acabar por reencontrar o agressor no dia seguinte. Como é que podem sentir-se seguras assim?”, questiona.
Para Emília Moniz, o debate sobre violência de género não pode excluir a comunidade LGBTIQA+, que enfrenta ainda mais dificuldades no acesso à justiça. “Estas pessoas sofrem abusos e violações e, muitas vezes, nem sequer recebem assistência legal”, denuncia.
A ativista defende que é essencial continuar a denunciar e a lutar contra a normalização da violência. “Nós denunciamos regularmente nas redes sociais, deixamos claro que não toleramos este tipo de comportamento. Mas quando a sociedade não reage, quando não há condenação pública, as vítimas sentem-se sozinhas. E quando sentem que não há ninguém do seu lado, acabam por se calar”, alerta.
A FERA tem promovido debates sobre feminismo para demonstrar que a opressão contra as mulheres não é um problema isolado, mas sim estrutural. “Muitas vezes, as pessoas acham que somos loucas quando denunciamos um homem poderoso que assediou uma mulher. Ou dizem que ‘é normal’. Não, não é normal. E pior ainda é ver diretores de escolas a cometerem violência sexual contra alunas”, denuncia.
Emília desafia a sociedade timorense a questionar os valores culturais que continuam a restringir a liberdade das mulheres. “Para acabar com a exploração, precisamos de discutir e mostrar que os valores culturais não são sagrados nem imutáveis. Eles podem – e devem – ser alterados.”
A resistência à mudança perpetua a desigualdade. “Dizem que querem mulheres no desenvolvimento do país, mas mantêm normas tradicionais que as impedem de decidir sobre os seus próprios corpos. Como podem as mulheres crescer se continuam a ter medo de sair à noite, porque são vistas como objetos sexuais?”, questiona a ativista.
Nos últimos anos, a presença feminina na política e na economia tem aumentado, mas muitas vezes apenas como estatística. “As mulheres estão lá, mas continuam a ser vistas como figuras secundárias. As decisões ainda são dominadas pelos homens. A inclusão das mulheres não pode ser só para cumprir números”, frisa.
Neste Dia Internacional da Mulher, a FERA deixa um apelo: que as pessoas não se limitem a gestos simbólicos e discursos vazios. “O que precisamos é de justiça social. Justiça para as empregadas domésticas, para as vendedoras ambulantes, para as mulheres que enfrentam despejos, para as trabalhadoras do sexo e para todas aquelas que vivem em situações de vulnerabilidade”, sublinha Emília Moniz. “Chega de discursos bonitos. O que precisamos são ações concretas.”
A cada 8 de março, políticos e figuras públicas sobem ao palco para falar sobre igualdade de género e empoderamento feminino. Os discursos enchem-se de palavras como “respeito”, “direitos”, “independência económica” e “justiça”. Fala-se da importância de garantir que as mulheres não dependam financeiramente dos homens, que tenham acesso a oportunidades iguais e que possam viver sem medo da violência. Mas, no dia seguinte, tudo continua igual.
Em Timor-Leste, ser mulher continua a significar enfrentar desafios diários que vão muito além das dificuldades económicas. Significa viver com o medo constante do assédio e da violência, significa lutar contra um sistema que desacredita as vítimas e protege os agressores, significa enfrentar a impunidade e o silêncio cúmplice da sociedade.
Os números não mentem. De acordo com dados da ONU de 2021, uma em cada três mulheres no mundo foi vítima de violência física ou sexual praticada pelo marido. Em Timor-Leste, um estudo do programa Nabilan, da Asia Foundation, revelou que 59% das mulheres timorenses já sofreram violência doméstica pelo menos uma vez na vida. E, na maioria dos casos, o agressor era o próprio parceiro.
Falam de leis. De planos nacionais para a igualdade de género. De estratégias para combater a violência. Mas se o sistema não protege as mulheres, se a justiça continua lenta e falha, se as vítimas continuam a ser silenciadas e os criminosos seguem impunes, o que valem estas promessas?
No Dia Internacional da Mulher, as mulheres não querem apenas discursos. Querem ações concretas. Querem um país onde as mulheres possam denunciar sem medo, onde os tribunais sejam rápidos e eficazes, onde a sociedade deixe de fechar os olhos à violência.
Já li, muito obrigado.
Em resume ” várias vezes em TL os pais que que foram decididos futuras das suas filhas, por isso essas causas não querem ir para polícias a fazerem queiças e pior preferem a resolver como famílias.
Ver como Uma vergonha preferem a receber os búfalos e dinheiro, do que proteger os direitos das suas filhas.