Massacre na igreja de Liquiçá: vinte e seis anos depois, as feridas continuam abertas

“Se queremos alcançar a independência, temos de resistir até à morte.” / Foto: DR

Passaram 26 anos desde o massacre na igreja de Liquiçá e, ainda hoje, os sobreviventes e familiares das vítimas continuam a exigir reconhecimento por parte do Estado. O Centro Nacional Chega (CNC) tem vindo a empenhar-se na promoção da reconciliação entre vítimas e perpetradores.

“Estava a segurar o meu filho mais velho e corri para tentar sair pela janela. Mas havia cinco membros armados das milícias à espera lá fora. Assim que dei um passo, um deles golpeou-me no pescoço com uma catana. Caí no chão, mas continuei a segurar o meu filho com força. Respirei enquanto o sangue jorrava intensamente e a saliva me escorria da boca. Chorei, porque sabia que a minha vida estava a chegar ao fim”, recorda José Nunes Serão, um dos sobreviventes, brutalmente agredido pelo grupo pró-integração indonésia durante o massacre ocorrido na igreja de São João de Brito, em Liquiçá, no dia 6 de abril de 1999.

Durante a ocupação indonésia, José Nunes Serão foi alvo constante de ameaças, terror e violência por estar envolvido em atividades clandestinas. Sentindo-se inseguro, decidiu refugiar-se com a família na igreja de Liquiçá, acreditando que aquele espaço sagrado seria um lugar seguro, livre de violência.

“Quando a população começou a refugiar-se na igreja, os soldados do quartel militar (Kodim) dispararam tiros como aviso para impedir que mais pessoas entrassem. No entanto, a população continuou a correr para o interior, na esperança de se proteger. Acreditávamos que a igreja nos salvaria das milícias”, contou. Segundo o seu relato, cerca de duas mil pessoas estavam refugiadas na igreja.

Na noite de 5 de abril, antes do ataque, membros da milícia Besi Merah Putih subiram às árvores e aos muros em redor da igreja, com o objetivo de intimidar os refugiados. “Eles gritavam: ‘Entrem aí! Amanhã à tarde, onde é que vocês vão? Estaremos à vossa espera. Amanhã vocês vão ver!’”, relatou.

Esta ameaça levou algumas pessoas a quererem organizar uma reação contra as milícias, mas o padre Rafael proibiu qualquer forma de resistência. “O padre Rafael avisou-nos que a igreja era um lugar sagrado, não um campo de batalha, e que ninguém devia lutar ali dentro. Quem quisesse lutar, devia sair. Então abandonámos as nossas catanas, lanças, facões e paus”, contou José Nunes.

Ele e outros procuraram formas de escapar. José sugeriu aos amigos que se disfarçassem com roupas de mulher, para que as milícias os confundissem. A proposta foi recusada.  “Responderam-me: ‘Se queremos conseguir a independência, temos de resistir até à morte’. Essas palavras encorajaram-nos a estar prontos para morrer pela autodeterminação.”

Na manhã de 6 de abril de 1999, o líder da milícia Besi Merah Putih, Eurico Guterres, apareceu com quatro elementos do seu grupo e pediu ao padre Rafael que ordenasse à população que abandonasse a igreja e voltasse para casa. O padre recusou-se, afirmando que essa decisão cabia à Igreja. “Eurico disse: ‘Se o padre não autorizar a saída, damos um prazo de 15 minutos. Se ninguém sair, paciência, teremos de invadir’”, relatou José.

Dez minutos depois, tropas indonésias dispararam para sinalizar às milícias que podiam entrar. O ataque começou com armas brancas – catanas, lanças, espadas – mas também com bombas e armas de fogo. Muitos tentaram fugir, mas a violência continuava também fora da igreja.

“Gritámos ‘rende-te, rende-te!’, mas ninguém se importou. As milícias entraram pelas traseiras e começaram a esfaquear e a matar os homens lá dentro. Vi colegas já mortos e comecei a correr com o meu filho nos braços. Quando tentei sair pela janela, golpearam-me no pescoço.”

José caiu no chão. Uma milícia tentou levar o filho, mas a criança recusou-se a abandonar o pai. “Se o meu filho tivesse sido levado, teria morrido ali mesmo. Mas ele ficou comigo. Foi isso que me salvou.” Acrescenta que as milícias procuravam sobretudo homens e jovens. Mulheres e crianças foram deixadas para trás.

Permaneceu no chão durante alguns minutos, até que um membro das milícias correu na sua direção para o atacar novamente, mas foi impedido por outro: “Disse-lhe: ‘Não lhe batas mais, o pescoço já está quase cortado, ele não vai sobreviver.’ Então deixaram-me”. Conseguiu fugir para casa de um familiar, perto da rádio comunitária Tokodede, em Liquiçá. Recebeu os primeiros socorros e continuou o tratamento no hospital de Lahane, em Díli.

Outro sobrevivente, Manuel Sanches Ramos, foi atingido na cabeça e na mão por membros da milícia Besi Merah Putih, ficando com deficiência física até hoje, o que compromete a sua capacidade de sustentar a família.

Segundo o seu testemunho, antes do massacre, na manhã de 4 de abril, as milícias pró-autonomia já ameaçavam os suspeitos de apoiarem a resistência. A situação agravou-se, com vigilância apertada sobre a população. Manuel refugiou-se na residência do padre Rafael.

“Quando tentava fugir pela estrada de baixo, um soldado indonésio capturou-me. Um quis matar-me, mas o soldado impediu-o e mandou-me fugir. Quando cheguei à frente da igreja, caí nas mãos das milícias. Golpearam-me com uma catana. Tentei defender-me com a mão, mas quase a cortaram.”

Conseguiu escapar pela estrada, mas um membro das milícias gritou: “Acabem com ele hoje mesmo!”. Foi novamente atacado, atingido na cabeça e por pouco não foi esfaqueado pelas costas.

“O sangue corria e já não tinha forças, mas continuei a fugir. Subi para um jardim, tentei alcançar o cruzamento, mas dois membros das milícias apanharam-me outra vez e levaram-me de volta para casa do padre Rafael.” Foi atirado para o chão. Tentou procurar o irmão, mas foi ameaçado por um militar.  “Deitei-me e vi os corpos dos meus colegas mortos, outros feridos. Um soldado ainda me agrediu nas costas. Até hoje isso impede-me de andar normalmente”, lamentou.

O massacre na igreja de Liquiçá é considerado um dos mais violentos em Timor-Leste. Até hoje não se sabe o número exato de mortos. Os militares indonésios e os membros das milícias retiraram os corpos e terão descartado os restos mortais em locais secretos.

Segundo o Relatório Chega!, estima-se que entre 60 a 100 pessoas tenham morrido, embora outras fontes apontem para cerca de 200 vítimas.

“Não precisamos de dinheiro, basta entregar um certificado e já nos sentimos valorizados” /Foto: DR

A reconciliação

Eliza da Silva dos Santos contou que o massacre de Liquiçá lhe tirou o marido, cujo paradeiro do corpo continua desconhecido. “Quando falamos de reconciliação, é preciso que aqueles que mataram os nossos familiares reconheçam os seus atos e nos mostrem onde foram enterrados os seus corpos. Só assim estaremos prontos para aceitar, e isso pode ajudar a curar a nossa dor”, declarou.

A viúva apelou ao Governo para que reconheça os sobreviventes como vítimas do massacre ocorrido na igreja de Liquiçá. “Nós, familiares das vítimas, precisamos muito do reconhecimento por parte do Presidente da República. Em datas importantes, é fundamental que se reconheçam os sobreviventes ou as vítimas, para que possam recuperar a sua dignidade. Não precisamos de dinheiro — basta que nos entreguem um certificado e já nos sentimos valorizados”, afirmou.

Pediu ainda ao Governo que continue a prestar atenção às condições das vítimas e que atribua bolsas de estudo aos seus filhos, para que, no futuro, possam contribuir para o desenvolvimento do país.

Leovogildo Hornai, sobrevivente do massacre na igreja de Liquiçá, afirmou que a reconciliação é essencial, mas que é necessário aproximar as pessoas para que se possa alcançar um entendimento mútuo. “As famílias e os jovens estão prontos para colaborar. Somos como irmãos, como uma família — não há problema em continuar a colaborar”, declarou.

O jovem da resistência apelou ao Governo para que tome uma decisão sobre a construção de um monumento em memória do massacre na igreja de Liquiçá, de forma a que as pessoas possam acender velas e prestar homenagem aos mártires durante a comemoração dessa data histórica.

O Governo tem vindo a envidar esforços para promover a reconciliação entre as vítimas e os perpetradores. O vice-primeiro-ministro, Mariano Assanami Sabino, afirmou que a reconciliação é essencial para a construção da paz e do Estado, sublinhando que chegou o momento de ultrapassar os termos “milícia” e “otonomi”, e avançar para uma verdadeira nação unida.

“A reconciliação deve começar na base, para que possamos recuperar a nossa relação. Durante o conflito, foram outras forças que usaram timorenses contra timorenses. Todos nós fomos vítimas desse processo”, declarou Assanami, durante a cerimónia de comemoração dos 26 anos do massacre na Igreja de Liquiçá, sob o lema “A memorização é um caminho de unidade para valorizar e dignificar os heróis da pátria”, realizada naquela cidade.

O governante reforçou que o Estado tem a responsabilidade de garantir justiça social para todos os sobreviventes, de forma a assegurar a sustentabilidade da paz. “Tem de haver justiça social, compensações ou outras formas de apoio aos sobreviventes. O Conselho Nacional dos Veteranos e o Centro Nacional Chega (CNC) devem procurar todos os caminhos possíveis para que a reconciliação venha do coração, e não apenas por motivos políticos”, afirmou.

O diretor executivo do CNC, Hugo Fernandes, destacou que a reconciliação é o caminho certo para pôr fim ao ódio e à vingança, mas exige um processo delicado, com aproximação cuidadosa entre vítimas e perpetradores. Sublinhou que muitos dos autores dos crimes ainda não estão prontos para confessar ou expressar arrependimento, e que também as vítimas devem estar dispostas a aceitar os perpetradores como parte desse processo.

“O nosso trabalho é procurar essa aproximação entre autores e vítimas, de forma a obter consenso de ambas as partes. Só assim será possível alcançar um perdão verdadeiro e uma reconciliação real. Para isso, é essencial que haja arrependimento genuíno e aceitação mútua”, disse.

No entanto, Hugo Fernandes frisou que a reconciliação não será possível enquanto o Estado não assumir a responsabilidade de garantir tratamento e apoio adequados às vítimas. O CNC está atualmente a preparar uma lei de reparação, com o objetivo de prestar assistência aos sobreviventes e às famílias dos mártires.

“As recomendações dos sobreviventes sobre monumentos, museus e reconhecimento estão a ser integradas num processo de reparação. O Governo, com o apoio do CNC, já iniciou a construção de uma casa destinada aos sobreviventes do massacre de Liquiçá”, informou.

O diretor acrescentou que o CNC estabeleceu uma parceria com o Fundo de Desenvolvimento do Capital Humano, para garantir bolsas de estudo aos filhos dos mártires, possibilitando que estes possam prosseguir os seus estudos nas universidades timorenses. Apelou ao coordenador dos sobreviventes do massacre na igreja de Liquiçá para registar os filhos dos mártires e garantir o acesso a essa oportunidade.

Acrescentou ainda que o CNC aprovou recentemente uma lei que permitirá ao Governo conceder reconhecimento oficial às vítimas, através da entrega de certificados. “Estamos agora a trabalhar no registo e verificação das vítimas que devem ser reconhecidas oficialmente pelo Estado. O Governo vai atribuir certificados, não apoio financeiro. O mais importante é que as famílias                                                                                                           possam guardar este reconhecimento como prova de que os seus pais ou mães participaram na luta pela liberdade.”

Hugo Fernandes informou ainda que foi criada uma equipa do Grupo de Trabalho do Processo de Reconciliação Timorense (PRT), com o objetivo de unificar esforços para promover a reconciliação entre os timorenses que vivem em Timor-Leste e aqueles que se encontram na Indonésia.

Este grupo integra organizações da resistência, organizações juvenis, sociedade civil e instituições do Estado, incluindo a Provedoria dos Direitos Humanos e Justiça, o G7+, entre outras entidades.

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