Lia-Na’in: justiça tradicional em Timor-Leste, entre valores culturais e quadros legais modernos

O Tara Bandu é um símbolo e uma lei costumeira que mostra que algo não pode ser feito / Foto: DR

A justiça tradicional em Timor-Leste mantém-se viva através dos lia-na’in, na resolução de conflitos na comunidade com base em costumes, tradições orais e heranças ancestrais.

Timor-Leste é um país marcado pelas tradições orais e por heranças que moldam a cultura e os costumes dos povos. Os lia-na’in são “guardiões culturais” que desempenham um papel importante na resolução de problemas a nível comunitário. Atuam como mediadores em questões do quotidiano: quando morre alguém, nas negociações ou trocas (comerciais, de bens, etc.), e nos conflitos familiares. Em Timor-Leste, a presença dos lia-na’in é considerada importante para a convivência dos cidadãos. À medida que o número de membros de uma família ou de uma comunidade aumenta, torna-se necessária a existência de uma figura que atue como porta-voz, mediando todas as partes e gerindo situações de conflito.

O antropólogo timorense Josh Trindade afirma que é importante distinguir entre o papel dos lia-na’in e o dos líderes tradicionais. Na estrutura tradicional da sociedade timorense, segundo Josh, existem: o liurai, conhecido como o líder político; o dato, que é o líder espiritual (responsável pelos rituais); e o lia-na’in, que tem uma função própria e não é menos importante que os outros. O antropólogo refere que “os lia-na’in não são líderes tradicionais no sentido político ou espiritual. Todos têm as suas próprias ‘guerras’ ou responsabilidades”.

Os lia-na’in acabam por ter um papel importante na transmissão cultural. Como explica Josh Trindade, têm a missão de ensinar valores, tradições e hábitos culturais às gerações mais jovens, para que compreendam os vários modos de vida, à luz dos valores ancestrais. “Os lia-na’in têm também a responsabilidade de ensinar as crianças e as novas gerações acerca do seu próprio papel na comunidade e do modo de vida, para que os mais novos possam seguir os seus passos. Porém, a preservação cultural não é apenas responsabilidade dos lia-na’in. Isso faz parte de todos os membros da sociedade timorense, em que cada pessoa trabalha para a conservação dos valores culturais da sua respetiva área”, explicou.

A nível das aldeias, os lia-na’in não só têm responsabilidades culturais, como também desempenham um papel importante na resolução de conflitos, incluindo casos que envolvem atos criminosos, sejam eles de carácter público ou semipúblico. A chamada justiça informal é vista, em Timor-Leste, como uma alternativa ao sistema de justiça formal, mais burocrático e distante da comunidade.

Manuel da Silva, um lia-nain da casa tradicional de Letisi, no município de Viqueque, com 10 anos de experiência, apresentou a sua visão sobre os valores e as limitações do direito consuetudinário, ou costumeiro. Antes da existência do direito formal, Timor-Leste já se regia pelo direito informal (consuetudinário), que resolvia os problemas da comunidade, com base em regras herdadas das gerações anteriores. A prática tem-se mantido até aos dias de hoje, e os lia-na’in continuam a aplicar o sistema costumeiro, com base na lei tradicional, no respeito pela liberdade de expressão e nas crenças da comunidade. “O nosso direito consuetudinário também é aplicado em casos de violência doméstica ou assédio sexual. Se houver provas, o agressor receberá sanções, como multas ou pagamento em dinheiro à vítima”, acrescentou.

No caso das vítimas, Manuel explicou que têm sempre a liberdade de escolher entre a via formal e a via informal da justiça. “Acho que a justiça formal é a melhor escola. E podem fazê-lo. Não forçamos ninguém e respeitamos os direitos das vítimas”, acrescentou.

Apesar de ser a solução para muitos problemas da comunidade, os lia-na’in reconhecem que há limitações no sistema tradicional. Nesses casos, recorre-se à justiça formal. “Resolver problemas não é fácil. Se houver violência, a decisão está sempre do lado da vítima. Se a situação for difícil de solucionar, entregamos o caso ao sistema formal”, disse Manuel.

Entre a justiça e os acordos familiares

O caso de “Jacinta” (nome fictício) ilustra uma realidade que acontece com frequência em Timor-Leste, sobretudo em casos de violência doméstica contra mulheres. Jacinta admitiu ter sofrido violência verbal e física, com um grande impacto na sua saúde mental, levando-a a separar-se do marido. “Decidi separar-me dele. No entanto, antes disso, juntámos os lia-na’in e as famílias para uma reunião. Perguntaram o que tinha acontecido e eu disse que não queria continuar o casamento. Todo ouviram e respeitaram a minha decisão”, explicou Jacinta.

A jovem mãe disse que o sistema costumeiro oferece espaço para discussão e que os lia-na’in funcionam como mediadores. Se não houver uma solução nestas reuniões, o último recurso será um acordo informal. Jacinta sublinhou que “não há sanções neste contexto, apenas acordos informais. Temos vivido separados e não podemos voltar a estar juntos. Ainda assim, como temos filhos, não tenho a certeza quanto ao futuro desse acordo. Ele deverá continuar a ser controlador e, pessoas com esta tendência, estão sempre a ameaçar”.

Jacinta queria recorrer ao sistema formal, mas enfrentou obstáculos como processos burocráticos, prazos longos e desconfiança por parte das famílias. Optou, por isso, pelo sistema tradicional, por ser mais rápido, apesar das falhas e de o considerar injusto. “Não tenho experiência com o sistema formal. Mas os abusos de que fui vítima deixaram marcas e precisam de ser levados à justiça. É importante recorrer à justiça formal, especialmente pela segurança das crianças”, disse.

Por outro lado, Jacinta contou que o seu irmão agrediu fisicamente a mulher. Mais uma vez, o problema não foi levado ao tribunal e o caso foi resolvido pelos lia-na’in. Decidiram sancionar o marido e a mulher com uma multa simbólica de um tais. “Quando aquilo aconteceu, a mulher pegou nas roupas do marido e levou-as à casa da irmã dele. Os lia-na’in consideraram desrespeitosas as ações da mulher perante a cunhada, e ordenaram o casal a oferecer um tais à irmã do marido”, acrescentou.

A resolução de problemas através do direito costumeiro em Timor-Leste está dependente da cultura de cada tribo. Neste caso, são da tribo Bunak, em que a mulher é considerada líder e guardiã da Casa Sagrada.

Ainda assim, apesar de a justiça informal ser a solução para os problemas da maioria da população timorense, a violência continua a apresentar números preocupantes. Como referiu Jacinta, as famílias, incluindo as vítimas, perdem coragem de denunciar os casos à polícia, por acharem que vai prejudicar as relações familiares, sobretudo a vida e o futuro das crianças. “Mesmo que o caso pudesse ser classificado como crime público, a família não procurou assistência jurídica, porque não queriam expor as crianças ao sofrimento de um processo judicial e prejudicar as relações familiares”, confessou.

Entre a riqueza cultural e a justiça moderna

As discussões sobre a justiça tradicional em Timor-Leste têm realçado a tensão entre os fortes valores culturais e um sistema jurídico moderno, regido pela legislação nacional e pelos princípios dos direitos humanos. Os lia-na’in, como guardiões da tradição, continuam a resolver os conflitos locais de acordo com os costumes, mas os especialistas têm-se referido à justiça informal como manifestamente insuficiente perante crimes mais graves, como a violência doméstica e o assédio sexual.

O Ministro da Justiça, Sérgio Hornai, afirmou que o processo de avaliação, com recomendações sobre a justiça tradicional, está bem encaminhado para ser considerado parte do sistema de justiça nacional. Salientou que os direitos consuetudinários devem ser respeitados, mas que esse sistema precisa de ser ajustado à legislação nacional para evitar a violação dos princípios da igualdade de género e da proteção legal. “Não devemos conceder poderes ilimitados que possam ser abusados. Os Lia-na’in devem saber que podem decidir de acordo com os costumes, sem contrariar o princípio da igualdade”, disse o Ministro.

O jurista Sérgio Quintas defende a ideia de harmonizar a justiça tradicional com o sistema jurídico nacional, sem atropelar princípios legais, promovendo sinergias entre cultura e lei.

“A justiça tradicional deve permanecer, porque há valores que estão presentes na nossa sociedade desde os nossos antepassados. Os problemas semipúblicos, como danos ou crimes menores, podem ser resolvidos localmente, uma vez que os tribunais formais são caros e distantes das aldeias”, referiu.

O jurista considera que se devem distinguir “crimes semipúblicos, que podem, em princípio, ser resolvidos pelos lia-na’in e pela família”, de crimes públicos, como o homicídio e a violência sexual contra crianças, que as autoridades comunitárias não podem resolver. Esses crimes, reforça, “devem ser julgados nos tribunais formais”.

Sérgio sugere ainda que as autoridades locais, a igreja e o Governo assumam um papel ativo na educação da população, principalmente na partilha de informações que permitam distinguir a justiça formal da informal e que a segunda nem sempre pode ser usada.

O que diz a sociedade civil sobre direito costumeiro

A responsável da Rede Feto, Zélia Fernandes, afirmou que conflitos a nível familiar ou social podem ser resolvidos dentro da própria comunidade. “Mas, quando a ação se configura um crime, a sua resolução já não está no âmbito comunitário e deve seguir o processo legal. Não devemos generalizar e dizendo que todos os problemas podem ser resolvidos no suco. Mesmo que o problema pareça pequeno, as suas consequências podem ser graves para a vida das vítimas. Não podemos apenas tentar encobrir isto com a vergonha, oferecendo búfalos e tais, comprando vinho e porco para convivermos juntos e o problema fica resolvido. Não é assim tão simples”, declarou.

“Não devemos esperar que algo aconteça para depois agirmos. Pelo menos, as pessoas precisam de aprender a avaliar os casos que podem ser resolvidos na comunidade e os que devem seguir o processo legal”.

A presidente da Rede Feto afirmou que a Fokupers, uma das organizações fundadoras da Rede Feto, oferece apoio às vítimas, tanto sob a forma de assistência jurídica, como na preparação para o processo judicial, sobretudo em casos de violência doméstica e violência sexual.

“Alguns casos chegaram aos tribunais, mas há vítimas que querem retirar as suas queixas para que possam ser resolvidas de forma amigável, familiar ou cultural. Não apoiamos estas formas de resolução. Em vez disso, encaminhamos as vítimas para instituições como a ALFeLa ou o JSMP, para que possam denunciar o caso ao Ministério Público”, explicou.

Zélia enfatizou ainda que a formação para lia-na’in tem sido discutida, porque o sistema de justiça tradicional vem de um passado muito distante da realidade atual. “É difícil mudar. Mas este processo de mudança deve começar em cada pessoa e, lentamente, passar de uma família para a outra”, sugeriu.

Para que a justiça tradicional não continue a ser um espaço que permite a desvalorização de casos de violência, a representante da sociedade civil aponta o caminho da educação cívica e das ações de sensibilização junto das comunidades.

“Quando ouvimos a frase ‘as mulheres são deusas’, não significa que as mulheres tenham de aceitar o assédio em espaços públicos. Esta frase tem outro significado, que remete para o facto de serem consideradas fonte de vida ou dadoras de vida. Por isso, devem ser respeitadas e valorizadas. As mulheres são promotoras da paz, gestoras e educadoras. Mas, em casos de violência, as vítimas são sempre as mulheres”, concluiu.

Para Cesário César, ativista de direitos humanos, em linha com o Código de Processo Penal, a denúncia de crimes públicos não depende da vítima, “por isso, o lia-na’in não deve interromper no processo legal”.

“Podem conseguir [os lia-na’in] resolver pacificamente a questão entre o agressor e a vítima, mas o processo não deve ser interrompido. Se obstruírem o processo legal, eles próprios podem ser categorizados como autores de crime”, disse.

O ativista aconselha a população timorense a recorrer à justiça formal, “nem que para isso recorram a organizações não governamentais”. Algumas ONG têm atuado no acompanhamento e na assistência legal de pessoas vulneráveis.

“Se encontrarmos um caso que tenha de ser resolvido pela justiça formal, sobretudo crimes públicos, mas recearmos que o processo seja lento, podemos recorrer a organizações como a ALFeLa para o apoio jurídico”, explicou.

Há ainda um aspeto que César apontou como falha ao longo das várias Legislaturas. A falta de literacia jurídica deve-se, para o ativista, à fraca divulgação e explicação da Constituição da RDTL e das convenções internacionais ratificadas por Timor-Leste, além das leis aprovadas pelo Governo e pelo Parlamento Nacional.

“Mesmo a Constituição e as leis, muitas pessoas não as leem. O público não conhece o seu conteúdo. Portanto, o Ministério da Justiça precisa de divulgar a Lei a todos os níveis da sociedade, especialmente através do currículo escolar. Através das escolas, é possível ensinar às crianças, desde cedo, o que é a Lei”.

A (longa) reforma do sistema judicial

Já distante no tempo, em 2017, foi publicado o estudo “Os Tribunais em Timor-Leste: Desafios a um sistema judicial em construção”, com a coordenação de Jorge Graça e Conceição Gomes. O estudo foi solicitado, na altura, pela Comissão para a Reforma Legislativa e do Sector da Justiça. Entretanto, em 2023 foi criado um novo Grupo de Trabalho para a Reforma do Setor da Justiça, já com o IX Governo. Em 2024 foram publicados o estudo “Para uma justiça melhor – Análise e recomendações para melhorar o sector da justiça em Timor-Leste” e o plano de ação para melhorar o setor da justiça em Timor-Leste, com o nome “Roteiro para uma justiça melhor”. Além disso, foram assinados protocolos para garantir o reforço da formação de magistrados e defensores públicos, através do Centro de Formação Jurídica e Judiciária.

Somam-se os estudos e os relatórios. A instabilidade política, como se pode comprovar com a reformulação de equipas a acompanhar as várias mudanças de Governo, também não tem ajudado. Ainda assim, retomando as palavras de Cesário César, o setor da justiça pode ser reformulado, mas as pessoas continuam a não conhecer a Lei e, por isso, os lia-na’in continuam a justificar a sua existência, tanto em situações mais leves, como em crimes graves, como a violência física e sexual. As leis existem, mas, nas palavras do ativista, “muitas pessoas não as leem. O público não conhece o seu conteúdo”.

No referido estudo de 2017, foram realizadas dezenas de entrevistas e, no que consideram ser “barreiras no acesso aos tribunais judiciais em Timor-Leste”, existe uma perceção clara de que a “procura potencial dos tribunais judiciais, por falta de conhecimento, de confiança no sistema judicial e por dificuldades de acesso (por contraposição à facilidade de acesso à justiça informal), não se transforma em procura efetiva”. É referido ainda, numa das entrevistas, que “as pessoas já não se contentam com a justiça informal, mas o problema é que há uma dificuldade no acesso à justiça formal”.

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