Essência do crime e filosofia da penalização

Em Timor-Leste, o Estado só pensa em penalizar os suspeitos, mas ainda não é sério em reabilitar ou restaurar a condição da vítima e da sociedade que, por direito, é uma parte do crime (locus delicti)/Foto:Diligente

A reação ao roubo do telemóvel cometido por alguns jovens, há três semanas, gerou uma grande discussão pública. Alguns argumentam que o crime ocorreu devido à má educação familiar, ao desinteresse em procurar emprego e outros fatores. Acredita-se que ao resolver a causa do crime, automaticamente o crime também será resolvido ou eliminado. No entanto, essa presunção é um pouco perigosa. Este pensamento é semelhante à armadilha do funcionalismo biológico. Quando (se) cortarmos a raiz de uma árvore, automaticamente o tronco e os galhos morrem.

Se analisarmos bem, esse pensamento é difícil de implementar nas ciências sociais, porque a relação de causalidade não é tão rigorosa como nas ciências biológicas (exatas). Nas ciências sociais, um sintoma pode surgir de cinco causas diferentes. Por isso, aplicar o pensamento do funcionalismo biológico em casos sociais, especialmente casos criminais, pode criar saltos lógicos que dificilmente podem ajudar a resolver o crime corretamente.

Quando usamos uma lógica similar para medir as ciências sociais, o resultado pode ser diferente, porque a formulação dedutivo-nomológica “se…, então” na lógica das ciências exatas é diferente de “se…, então” na lógica legal. Nas ciências sociais (incluindo o direito), essa diferença está precisamente no “se/então”. Portanto, é difícil concluir que José roubou devido à fraca educação familiar ou que Lúcia cometeu corrupção devido à ganância e outros fatores. Em crimes ou casos legais, o objeto do crime pode ser o mesmo, mas a causa pode ser diferente de um caso para outro. Para evitar cair na generalização, Julius Stone argumenta que é necessário individualizar os casos criminais. Segundo Stone, cada caso criminal é sempre único. Os casos podem parecer semelhantes, mas na verdade não são. Não são parecidos no contexto da causa do crime, na motivação que levou a pessoa a cometê-lo, no histórico do autor e outros fatores. Segundo o pensamento de Julius Stone, a generalização de qualquer caso não ajudará o Estado de Direito a estabelecer a verdade para trazer justiça a todos os envolvidos.

Filosofia da Penalização

Apesar de as causas dos crimes não serem as mesmas, não significa que o Estado possa negligenciar um crime sem aplicar a penalização que ele merece. O Estado deve adotar uma política para prevenir e combater o crime de maneira justa. A abordagem principal que o Estado escolhe é a penalização.

De acordo com a perspetiva do legalismo, aplicar a pena a um crime é um mandamento da lei. Cada crime e as suas sanções estão formulados no código penal ou em outras leis específicas relacionadas com o crime. O trabalho do aplicador da lei é implementar apenas o que a lei determina. Na tradição continental, os aplicadores da lei aderem ao princípio de que a “lei é como está escrita no livro”. Por isso, os legalistas acreditam que a justiça está completamente formulada nas leis. Para eles, o juiz ou outro aplicador da lei deve apenas seguir o que está escrito e isso automaticamente trará justiça para todas as partes.

Diferente do legalismo, o grupo progressista considera que penalizar ou libertar alguém que cometeu um crime não é apenas porque a lei o diz, mas para trazer justiça a todas as partes. Para alcançar isso, o aplicador da lei deve entender não apenas o que está escrito, mas também o objetivo da penalização. Os objetivos da penalização são:

  1. Precisamos penalizar um crime para prevenir que as pessoas pratiquem justiça com as próprias mãos. Um crime sem a penalização adequada pode abrir a oportunidade para que a vítima e a sociedade tomem medidas por conta própria para procurar justiça. Esta prática contradiz a cultura do Estado de Direito moderno, dos direitos humanos e do princípio da presunção de inocência. Em muitos casos, a justiça com as próprias mãos atinge principalmente os pobres e os marginalizados. No entanto, diante de um criminoso influente, evitamos praticar justiça com as próprias mãos ou falar de forma dura contra ele.
  2. No interesse da vítima, o Estado precisa penalizar o crime. Não é justo que quem comete um crime não receba a penalização merecida enquanto, ao mesmo tempo, a vítima permance com o sofrimento causado pelo crime. Cada crime gera uma vítima. O crime deixa uma ferida na vítima que o Estado deve curar. A causa do crime que gera conflito social na sociedade precisa de ser restaurada, e os culpados devem receber a penalização adequada. O direito é um instrumento para proteger todos, e a penalização é uma forma de proteger a vítima.

Em Timor-Leste, o Estado só pensa em penalizar os suspeitos, mas ainda não é sério em reabilitar ou restaurar a condição da vítima e da sociedade que, por direito, é uma parte do crime (locus delicti).

  1. A penalização é necessária para prevenir outros crimes semelhantes. No contexto da prevenção, a penalização é importante para que as pessoas se lembrem de que cometer um crime traz sempre consequências muito amargas. É importante que assim seja e está alinhado com o princípio do direito penal de que não se deve deixar passar um crime sem a penalização que ele merece. Precisamos do efeito dissuasor. Nesse contexto, vale o princípio de que se penaliza alguém que rouba uma cabra, não apenas porque ele roubou a cabra, mas para que outros não percam mais cabras no futuro. Essa analogia baseia-se no fundamento do direito penal de que a prevenção é a política prioritária. Entretanto, a penalização (repressão) é o último recurso do direito penal.
  2. A penalização é importante para o interesse do suspeito. Por que é necessário penalizar o suspeito? Essa é uma questão fundamental do objetivo da penalização. Quando um suspeito comete um crime, vive em uma condição que o desvia do caminho humano (fora dos trilhos da humanidade). Em outras palavras, o crime faz  a sua vida parecer-se à de um animal. Portanto, o Estado tem o dever de tomar medidas imediatas para tratar a humanidade do suspeito através de uma penalização justa. Segundo Hegel, se o Estado não aplicar a pena, estará a tratar o suspeito como um animal. Assim, a penalização é uma forma de o Estado respeitar a dignidade do suspeito como ser humano. Nesse contexto, o objetivo da penalização deve ser reintegrar o indivíduo na sociedade de maneira adequada (leia-se: conceito de reintegração). Com esse objetivo, a pena deve ser aplicada com cuidado para não ameaçar a humanidade do suspeito. Nesse caso, vale o princípio da proporcionalidade de que para crimes simples não se deve aplicar penas severas. Da mesma forma, os corruptores que gozam de todos os direitos não devem receber indulto do Presidente. Não se pode, por compaixão ou por não gostar do suspeito (como um traço psicológico), aplicar uma pena mais leve ou mais pesada do que a merecida pelo crime cometido. O Estado de Direito deve optar claramente por defender valores morais (justiça) em vez de traços psicológicos que facilmente nos levam a gostar ou desgostar. Pois, gostar ou não gostar pode tornar-se apenas um instrumento para canalizar os nossos desejos sobre os suspeitos e pode prejudicar os que realmente precisam de proteção contra um crime.

Observando os objetivos da penalização descritos acima, penalizar ou libertar alguém não é apenas porque a lei o exige, mas pelo interesse do direito e da justiça, e pelo interesse humano das partes envolvidas. Portanto, os aplicadores da lei devem ser criativos na interpretação da mesma para poder trazer justiça para todos. Não se pode, em nome do legalismo, deixar que as vítimas ou os suspeitos vivam sem a devida humanidade. Ser um robô da lei pode ser bom, não há risco para os aplicadores da lei (operadores jurídicos), mas não é justo para levar todas as partes à justiça.

Vendo a constituição e o direito, Timor-Leste não opta pelo lex talionis (olho por olho) ou penaliza alguém por desejo de vingança. Quanto à penalização, Timor-Leste adota uma política de penalização mínima, alinhada com o que Hegel estabeleceu, de que a penalização deve reintegrar o culpado na sociedade como uma pessoa melhor no futuro. Por isso, não optamos pela pena de morte ou prisão perpétua. Com a nossa infraestrutura no sistema judiciário penal, estamos preparados para reintegrar os suspeitos como boas pessoas? Essa questão precisa de ser respondida com outras pesquisas. Mas, querendo ou não, como um Estado de Direito moderno, Timor-Leste deve criar condições para prevenir qualquer crime de forma eficaz. Pois, um Estado de Direito bem-sucedido mede-se pela ausência de crimes e por não haver necessidade de aplicar penas a ninguém.

 

Armindo Moniz Amaral, 32 anos, nasceu em Covalima. Formou-se em Direito pela Universidade Católica Widya Mandira e obteve mestrado e doutorado em Direito pela Universidade Diponegoro – ambas instituições na Indonésia. Atualmente é professor de Filosofia do Direito no Instituto Superior de Filosofia e Teologia Dom Jaime Garcia Goulart (ISFIT), em Díli, e formador voluntário do grupo progressista Vila-Verde.

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