Alguns dos programas que a cientista da computação desenvolve para o acompanhamento da saúde infantil são o Baby Step, que monitoriza o desenvolvimento do bebé até aos 5 anos, e o Include All, que facilita a interação de crianças neurodiversas.
Julie A. Kientz foi distinguida com o prémio Inovator Under 35 (Inovador com menos de 35 anos) da Revista do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT Technology Review, em inglês), em 2013. O seu trabalho mostra como a tecnologia moderniza o setor de saúde, tornando-o mais acessível para todas as pessoas, independentemente da sua área de atuação.
Especialista na interação entre humanos e tecnologia, a cientista foca-se em como a tecnologia pode ser usada para apoiar as pessoas no seu dia a dia.
Um dos programas que desenvolveu, o Baby Step, recolhe dados sobre o desenvolvimento das crianças, que podem ser utilizados por médicos e terapeutas. Além disso, ajuda os pais na terapia de filhos com autismo.
Na conferência internacional Sci-Tech EXPO 2024, intitulada “Ciência, Tecnologia e Inovação: Caminho para Transformação e Desenvolvimento Sustentável em Timor-Leste”, realizada de 14 a 16 de agosto, em Díli, Julie Kientz destacou como a tecnologia centrada no ser humano pode ajudar os pais a monitorizar o desenvolvimento dos filhos e controlar o uso dos dispositivos eletrónicos, como os telemóveis.
Doutorada em Ciência da Computação pelo Instituto de Tecnologia da Geórgia, nos Estados Unidos de América (EUA), em 2008, Kientz é atualmente docente na Universidade de Washington, trabalhando nas áreas de Interação Humano-Computador, Informática em Saúde, Computação Ubíqua e Design de Interação com Crianças.
Da sua experiência em informática de saúde, quais são as regiões globais com recursos limitados que poderiam aplicar esses conceitos?
A abordagem do design centrado no ser humano envolve encontrar, conversar e cocriar soluções com as pessoas que precisam dessas inovações. O objetivo é projetar soluções adaptadas às suas realidades, empoderando o paciente, que é o especialista na sua própria experiência de vida, assumindo a responsabilidade e envolvendo-se na sua saúde.
Desenvolveu tecnologias para os pais monitorizarem o progresso do desenvolvimento dos filhos. Como foram essas ferramentas recebidas pelas famílias e quais são os fatores-chave para garantir que sejam úteis no dia a dia?
Sim, uma das coisas que aprendemos através da pesquisa com os utilizadores foi que, através de design centrado no ser humano, percebemos que os pais ficam muito preocupados com a possibilidade de algo estar errado com o seu filho. Então, em vez de nos focarmos no que pode correr mal, tentamos celebrar as conquistas das crianças e lembrar que cada uma tem o seu ritmo. Não precisa de ser um design sofisticado ou um site elegante que nunca usaram. Ferramentas simples, como mensagens de texto, podem ser mais eficazes do que designs sofisticados.
E estas ferramentas são para crianças até que idade?
Desde o nascimento até aos cinco anos.
Quais características ou abordagens considerou mais eficazes para ajudar as famílias a gerir o uso de dispositivos eletrónicos?
É importante envolver as crianças no processo. Se os pais simplesmente impõem regras, isso não funciona tão bem. Quando as regras são criadas em conjunto e aplicadas tanto aos pais como aos filhos, o resultado é mais positivo. Se os pais proibirem as crianças de usar o telemóvel, mas eles usam, vai correr mal. As crianças não gostam de hipocrisia. É como quando eu digo, “faça o que eu digo, não o que eu faço.” Portanto, empoderar as crianças para que participem na tomada de decisões sobre o que querem fazer e articular as razões para isso é uma abordagem colaborativa.
No contexto da educação inclusiva, como poderiam as tecnologias que desenvolveu para apoiar crianças neurodiversas ser adaptadas ao ambiente educacional em Timor-Leste?
Um dos nossos projetos chama-se Include All e incentiva a colaboração entre crianças neurodiversas através de atividades partilhadas com outras crianças, pais e professores. Trata-se de uma aplicação para tirar fotos, selfies. A ferramenta incentiva-os a fazer perguntas uns aos outros sobre si mesmos e a encontrar as suas semelhanças. Por exemplo, “Gostas de amarelo? Eu também gosto de amarelo. Quais são algumas coisas amarelas sobre as quais podemos falar?” Então, isso incentiva-os a responder e a tirar uma fotografia juntos. Por exemplo, “Encontre algo amarelo e segure-o juntos”. A câmara realmente garante que ambas as crianças estejam na foto. Se não detetar dois rostos, não tirará a foto.
Uma criança a usar o dispositivo sozinha e ignorando todos à sua volta não é o ideal para a aprendizagem, mas, quando os filhos, pais e professores usam os dispositivos juntos, é muito diferente. Riem e negoceiam a resolução de problemas juntos. No caso de um professor e uma criança, o professor pode explicar conteúdos. Há magia quando a tecnologia é usada em conjunto.
Quais considerações seriam necessárias para adaptar essas ferramentas para uso em Timor-Leste, particularmente nas áreas rurais ou de baixos recursos?
Muitas ferramentas para monitorização parental não são muito boas, como aquelas que bloqueiam os filhos das suas aplicações ou têm limites de tempo, porque isso não ensina as crianças a auto-regular-se e a aprender a reconhecer quando já estiveram demasiado tempo nos dispositivos. Em termos de desenvolvimento, é melhor quando uma criança pode decidir. O mais importante é conversar sobre o assunto. Envolver os pais em conversas sobre o uso responsável da tecnologia também é essencial.
Atualmente, está envolvida no Instituto de Inteligência Artificial para Educação Excecional. Como vê o papel da inteligência artificial na transformação da educação para crianças com desafios de processamento de fala e linguagem?
Sim, estamos a considerar duas abordagens principais com esse instituto. A primeira é relacionada com a triagem. Neste momento, nem todas as crianças que apresentam um atraso na fala são identificadas ou recebem acompanhamento adequado. Essas crianças precisam de trabalhar com terapeutas da fala, que são especialistas em ensinar competências de pronúncia e articulação, e em garantir que as crianças sejam compreendidas. Contudo, muitas das crianças que precisam desse apoio não estão a ser triadas. Assim, o nosso primeiro objetivo é usar a IA para monitorizar as salas de aula de educação inicial e identificar crianças que possam necessitar de um acompanhamento adicional.
Uma vez identificadas e diagnosticadas com atraso na fala, a segunda abordagem visa apoiar a terapia, facilitando o trabalho dos terapeutas. A terapia da fala é muito repetitiva e requer prática constante, o que pode ser cansativo e difícil para os pais como para os terapeutas. No entanto, a tecnologia pode assumir essa parte repetitiva, permitindo que as crianças pratiquem de forma autónoma com um recurso que nunca se cansa. Desta forma, o terapeuta da fala pode concentrar-se em aspetos mais complexos e desafiadores do tratamento.
Além disso, a IA pode ser utilizada de forma personalizada. Por exemplo, se uma criança adora futebol, a IA pode transformar os sons que a criança precisa de praticar em palavras relacionadas com futebol. Isto torna a prática mais interessante e envolvente, porque está ligada a algo de que a criança gosta.
Como líder na sua área, como aborda tópicos complexos e multidisciplinares de forma a ressoar com diferentes níveis de familiaridade com o assunto?
Tento sempre fundamentar as discussões em questões que sejam relevantes para as pessoas. Estou motivada não pela tecnologia em si, mas pelas necessidades que ela pode resolver. A maioria das pessoas consegue identificar necessidades comuns, como um pai que quer saber se o seu filho está a desenvolver-se bem, ou alguém que se preocupa com o tempo que o filho passa em frente a ecrãs. A partir daí, podemos falar sobre como abordar essas necessidades de várias maneiras, sendo que as melhores soluções surgem quando consideramos o problema de forma ampla, em vez de forçar uma única solução tecnológica.
Estou também aberta à ideia de que muitas situações não precisam de tecnologia, mesmo sendo eu uma cientista de computação. Há tantas coisas podem ser resolvidas sem recurso à tecnologia. Algo que me incomoda, por exemplo, é a pressão para introduzir tecnologia em todos os aspetos do ensino, pelo menos nos Estados Unidos. Há uma tendência para colocar tecnologia em tudo, o que pode dificultar a atualização. Muitos professores fazem um trabalho incrível apenas com papel. Criam as suas próprias folhas de trabalho, adaptam as suas aulas e não precisam de depender de um programador para fazer isso. Por isso, devemos estar abertos a diferentes soluções e reconhecer que nem todas precisam de ser tecnológicas. O importante é identificar qual é a necessidade e qual é a melhor forma de a atender.