A nomeação de Afonso Carmona para presidir ao Tribunal de Recurso, considerada inconstitucional pelo próprio Tribunal, já provocou preocupação internacional. A União Internacional de Juízes de Língua Portuguesa alertou para riscos à ordem constitucional, enquanto a AJAR classifica a situação como um “golpe do Estado”. O Presidente da República continua a rejeitar o acórdão e insiste que “os juízes são da FRETILIN”.
A polémica em torno da nomeação de Afonso Carmona para presidente do Tribunal de Recurso continua a gerar reações dentro e fora de Timor-Leste. Na semana passada, a União Internacional de Juízes de Língua Portuguesa (UIJLP) expressou publicamente a sua “profunda preocupação” com a situação da justiça no país.
A UIJLP reúne as associações nacionais de juízes de Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste. O foco da preocupação recai sobre o incumprimento do acórdão do Tribunal de Recurso, proferido em julho deste ano, que declarou inconstitucional a alteração legislativa que permitiu a nomeação de um juiz de direito para o cargo de presidente do Tribunal.
Na nota pública de 19 de novembro de 2025, a UIJLP sublinha que “o cumprimento das decisões judiciais é requisito fundamental para a manutenção da ordem constitucional e para a credibilidade das instituições democráticas”.
Em agosto, o Tribunal de Recurso reafirmou a inconstitucionalidade da alteração à Lei da Organização Judiciária que possibilitou a nomeação de Afonso Carmona. A Constituição determina que o presidente do Supremo Tribunal de Justiça — ainda inexistente em Timor-Leste e atualmente substituído pelo Tribunal de Recurso — deve ser escolhido entre os juízes do próprio Tribunal. Carmona, porém, é juiz do Tribunal de Primeira Instância, não integrando o Tribunal de Recurso.
Para o diretor da AJAR, José Luís Oliveira, o incumprimento da decisão judicial constitui um “golpe do Estado” no setor da justiça. “O poder que Carmona está a exercer não se baseia na Constituição, pois a nomeação do Presidente da República assentou numa norma entretanto declarada inconstitucional”, afirmou.
Recordou ainda que o presidente do Tribunal de Recurso tem o dever de aplicar a lei: “Fez o contrário. Segundo o artigo 120.º da CRDTL, os tribunais não podem aplicar normas contrárias à Constituição ou aos princípios nela consagrados.”
José Luís Oliveira considerou também que o Chefe de Estado não está a cumprir o compromisso de “cumprir e fazer cumprir a Constituição”. “Se não nos basearmos na lei, isso é poder absoluto. A democracia morre, porque é o poder que prevalece.”
Face à manutenção de Carmona no cargo, a UIJLP “incita as autoridades de Timor-Leste a observarem rigorosamente a Constituição e a respeitarem as decisões dos tribunais, promovendo a imediata regularização da situação e a cessação de quaisquer atos que contrariem o ordenamento jurídico vigente”.
No entanto, o Presidente da República, José Ramos-Horta, disse desconhecer a preocupação da UIJLP, apesar de esta ter sido noticiada pela agência Lusa há uma semana. Questionado repetidamente sobre se irá cumprir o acórdão e nomear outro presidente para o Tribunal, Horta recusou responder diretamente e limitou-se a repetir: “é a gente da FRETILIN que está no Tribunal” — argumento que tem reiterado perante críticas e pedidos de esclarecimento.
O acórdão do Tribunal de Recurso, com força obrigatória geral, vincula todos os órgãos de soberania, incluindo o Presidente da República e os próprios tribunais, que têm o dever constitucional de o acatar.
Perante esta situação, a deputada do Partido de Libertação Popular (PLP), Maria Angelina Lopes Sarmento, insistiu que o foco deve estar no “conteúdo, na preocupação e no que foi discutido na fiscalização abstrata”. Recordou que os partidos da oposição alertam, desde a publicação do acórdão, para a necessidade de o cumprir e que chegaram a solicitar uma aclaração ao Tribunal sobre os efeitos jurídicos da decisão — pedido que nunca obteve resposta.
A deputada classificou o incumprimento como um “ato criminoso” e revelou que já foi apresentada queixa ao Ministério Público no mês passado. Acrescentou ainda que Timor-Leste deve prestar atenção à posição da associação de juízes da CPLP, dada a proximidade política e jurídica com os restantes países-membros.
Maria Angelina Sarmento alertou ainda para possíveis tensões internas no Tribunal de Recurso, caso Carmona continue no cargo: “Pode enfrentar resistência dos próprios juízes na participação em decisões futuras. Vai destruir ou desmoralizar os juízes para trabalharem de forma profissional e com alta integridade, porque há interferências políticas neste processo.”
Confrontado com as críticas e com a preocupação expressa internacionalmente, Afonso Carmona disse não poder comentar o caso, afirmando que “só o Presidente da República pode reagir”, por ter sido ele quem o nomeou. Perante novos pedidos de esclarecimento sobre o cumprimento do acórdão ou sobre o pedido de aclaração, recusou dar entrevista e afastou-se, aludindo à falta de poder para resolver a situação.


