Após a falha de energia no Hospital Nacional Guido Valadares (HNGV), que gerou grande indignação pública, técnicos e especialistas questionam as justificações do diretor do hospital. Afinal, as mortes dos recém-nascidos poderiam ter sido evitadas?
Na noite de sábado, 1 de março, por volta das 22h00, a eletricidade falhou no HNGV. Pouco depois, um vídeo começou a circular nas redes sociais, mostrando médicos e profissionais de saúde a utilizar as lanternas dos telemóveis para cuidar de bebés ligados a máquinas de suporte de vida. A situação gerou uma onda de críticas no Facebook, com utilizadores a alegarem que dois recém-nascidos morreram devido ao corte de eletricidade.
O diretor dos Serviços de Apoio Diagnóstico e Terapêutico do HNGV, Vidal Lopes, reconheceu a falha elétrica entre as 22h00 e as 23h40, mas negou que a interrupção tenha causado diretamente a morte das crianças.
“As duas crianças faleceram devido a condições clínicas críticas. Uma morreu no dia 2 de março, às 00h14, por uma infeção do sistema nervoso central que afetou o cérebro. A outra faleceu às 2h da madrugada devido a atresia facial (má formação congénita)”, explicou Vidal Lopes.
Segundo o diretor, após a falha da eletricidade fornecida pela Eletricidade de Timor-Leste (EDTL), o Automatic Transfer Switch (ATS) do hospital não foi ativado corretamente, devido a um problema técnico que afetou outros componentes. Técnicos do HNGV e da EDTL tiveram de fazer uma ligação manual para restabelecer a energia.
Questionado sobre se a falha elétrica teve impacto na sobrevivência dos bebés, Vidal Lopes afirmou que, mesmo que a energia não tivesse falhado, a probabilidade de salvar as crianças era muito reduzida.
“Todas as máquinas do HNGV estão preparadas para garantir a vida dos pacientes. Esses equipamentos possuem baterias internas que garantem o funcionamento entre duas a seis horas após um corte de energia”, justificou.
No entanto, uma técnica especializada no funcionamento de equipamentos hospitalares, que preferiu não se identificar, explicou que alguns dos aparelhos utilizados na unidade neonatal, como incubadoras, ventiladores e CPAP (pressão positiva contínua nas vias aéreas), necessitam de energia elétrica para operar corretamente.
“As incubadoras não possuem baterias internas. Dependem completamente da eletricidade e, em Timor-Leste, ainda não temos unidades com baterias de reserva”, explicou.
A técnica acrescentou que o CPAP e os ventiladores possuem baterias internas, mas, no país, esses equipamentos ainda não estão disponíveis. “Mesmo que tivéssemos baterias carregadas, o tempo de autonomia não ultrapassaria uma hora”, alertou.
A crítica de Mari Alkatiri
O ex-primeiro-ministro Mari Alkatiri visitou o hospital no dia 3 de março e questionou a explicação do diretor do HNGV. “Isto não é justificação. Se as baterias internas garantem a continuidade do funcionamento, como se explica que algumas crianças tenham morrido e outras não? O próprio diretor sabe que esta não é uma justificação aceitável”, afirmou Alkatiri.
O ex-governante também apontou falhas estruturais graves no hospital, referindo que problemas como este são recorrentes devido à falta de manutenção adequada.
“Visitei o hospital para alertar para a necessidade de medidas mais eficazes. Deveria haver um sistema de backup que ativasse automaticamente, mas informaram-me que o gerador falhou porque a empresa responsável pela manutenção ainda não foi paga. Quem assume a responsabilidade por isso?”, questionou.
Mari Alkatiri também denunciou a falta de equipamentos essenciais nos hospitais, como máquinas de diálise, fundamentais para o tratamento de pacientes com insuficiência renal. “Ainda me lembro que há anos esta situação já tinha ocorrido. Mandei técnicos de Oé-Cusse para tentar recuperar os equipamentos aqui no hospital central”, lembrou.
Outro problema identificado pelo ex-primeiro-ministro foi a falha do ST-SCAN, um equipamento de diagnóstico crucial para referenciar pacientes para tratamento no exterior. “O ST-SCAN não está a funcionar a 100% ou, pior, não funciona de todo. Estes são equipamentos essenciais para o diagnóstico e não podem estar inoperacionais”, criticou.
Em relação à falta de incubadoras e ventiladores para bebés prematuros, Alkatiri observou que o hospital tem vários equipamentos, mas questionou a sua funcionalidade. “Não sei se todos funcionam, mas precisamos de mais, porque há muitos bebés prematuros e gémeos que necessitam de suporte adequado”, alertou.
PDHJ questiona justificações oficiais e alerta para responsabilização do Estado
O Provedor dos Direitos Humanos e Justiça (PDHJ), Virgílio da Silva Guterres, considera que a morte do recém-nascido no Hospital Nacional Guido Valadares (HNGV) pode ser vista como uma coincidência, pois ocorreu durante uma falha de energia. No entanto, destaca que essa interpretação depende da perceção de cada pessoa.
“A morte do bebé neste momento específico pode ser considerada uma coincidência, mas o conceito de coincidência é subjetivo. O hospital alega que o óbito não está diretamente relacionado com a falha elétrica, mas é difícil validar essa posição, uma vez que o bebé estava numa incubadora e dependia de eletricidade para sobreviver. O impacto da falha de energia é, portanto, direto”, afirmou Guterres.
A PDHJ alerta o Governo para a urgência de evitar que novas vidas sejam perdidas nos hospitais devido a falhas técnicas ou administrativas. “Esta é uma oportunidade para reforçar que o Governo deve dar a máxima atenção a esta questão. Não podemos permitir que mais vidas se percam nos hospitais devido a negligência. Se isso acontecer, pode ser legalmente classificado como homicídio por negligência, já que a responsabilidade existe e a falha decorreu de omissão ou descuido”, frisou.
Virgílio Guterres sublinha ainda que, se for provado que houve negligência no caso ocorrido no HNGV, o Estado pode ser responsabilizado. “Se este for um caso de homicídio negligente, o Estado deve responder tanto administrativa como criminalmente, uma vez que tem responsabilidades diretas na gestão hospitalar”, enfatizou.
A PDHJ está atualmente a fiscalizar a situação e revela que ainda não recebeu relatórios específicos sobre as condições na unidade neonatal do HNGV. No entanto, há relatos diretos de falta de medicamentos nos hospitais, da não renovação de contratos de profissionais de saúde e de mulheres a darem à luz à porta dos centros de saúde, por falta de condições adequadas. “Continuamos a monitorizar regularmente os centros de saúde, hospitais e até mesmo as prisões”, concluiu Guterres.
O Diligente contactou a Eletricidade de Timor-Leste (EDTL) para obter esclarecimentos sobre a falha de energia ocorrida no Hospital Nacional Guido Valadares (HNGV) na noite de 1 de março. No entanto, até ao momento da publicação desta reportagem, não recebeu qualquer resposta oficial por parte da empresa.
O Diligente também tentou entrar em contacto com os pais dos bebés falecidos para obter o seu testemunho sobre o sucedido. No entanto, num dos casos, os progenitores recusaram-se a prestar declarações, e no outro, não foi possível estabelecer qualquer contacto com a família.
A falha de energia no HNGV e as suas potenciais consequências expuseram, mais uma vez, fragilidades graves no setor da saúde em Timor-Leste. A falta de um sistema eficiente de backup elétrico, a insuficiência de equipamentos essenciais e a má gestão de recursos continuam a colocar em risco a vida dos pacientes.