Contrariando o direito constitucional de acesso gratuito à justiça, defensores públicos cobram alegadamente pelos seus serviços e negligenciam processos. Especialistas e autoridades exigem reformas para garantir a proteção dos mais vulneráveis e restaurar a confiança no sistema judicial. Defensoria Pública sublinha, no entanto, esforços para a assistência aos cidadãos.
O acesso à justiça é um direito fundamental dos cidadãos, garantido pelo artigo 26.º da Constituição de Timor-Leste. O número um deste artigo assegura que todas as pessoas têm o direito de aceder ao tribunal para defender os seus direitos e interesses protegidos por lei. O número dois garante que ninguém pode ser impedido de obter justiça devido à falta de recursos financeiros.
Em 2008, o Decreto-Lei n.º 38/2008, de 3 de setembro consagrou o primeiro Estatuto da Defensoria Pública com o objetivo de garantir que os cidadãos, sobretudo os financeiramente vulneráveis, tenham acesso à justiça. O artigo 5.º do Estatuto da Defensoria Pública especifica a gratuitidade dos serviços: “Os serviços prestados pela Defensoria Pública são gratuitos, não podendo ser cobrados quaisquer valores ou quantias pela sua prestação.”
O papel essencial dos advogados e defensores públicos, de acordo com o artigo 135.º da Constituição, é contribuir para a boa administração da justiça, protegendo os direitos e interesses legítimos dos cidadãos.
No entanto, na prática, segundo alguns cidadãos, a realidade é bem diferente. O Diligente ouviu relatos de cobranças por parte dos defensores públicos e de falta de empenho na resolução dos processos, deixando os cidadãos ainda mais vulneráveis perante o sistema judicial.
A família de Neolanda Fernandes terá sido uma das vítimas. Em 2023, o defensor público Eustáquio Guterres terá cobrado um total de oito mil dólares americanos ao sogro por assistência num processo de disputa de terras, valor que incluía verbas para fotocópias de documentos.
“O defensor público pediu dinheiro diretamente ao meu sogro, dizendo que uma parte da quantia seria usada para subornar o defensor da parte contrária, de modo a resolver o caso”, afirmou Neolanda.
Quando questionado sobre o andamento do processo, o defensor terá respondido de forma desdenhosa: “Se não ganhar o processo, é melhor eu ir trabalhar para a montanha”. Não só perdeu como não terá informado a família e não apresentou recurso, o que levou ao despejo destas pessoas em maio de 2024, sem qualquer aviso prévio.
Em janeiro de 2024, o tribunal pronunciou-se contra o pedido de Neolanda. O defensor público teria de apresentar recurso no prazo de 30 dias, mas, como a família veio mais tarde a saber, não o fez. “Pior do que perdermos o caso é o defensor público não nos informar desta situação”, lamenta Neolanda.
Em maio de 2024, o tribunal, acompanhado por oficiais de justiça e membros da polícia, chegou a casa do seu sogro e deu apenas 30 minutos para que saíssem e esvaziassem a habitação. Neolanda queixa-se de não terem recebido qualquer comunicação do defensor. “A atitude do defensor público deixou o meu sogro doente. Ele não queria que a polícia o forçasse a sair de um lugar onde estava há muitos anos, sem ter em conta os seus direitos”, relatou.
Neolanda explicou que, em 1970, um primo do seu sogro, que na altura se mudou para a Austrália, lhe deixou a casa para residir e cuidar. Passados 39 anos, o proprietário regressou para retomar a posse, e o seu sogro solicitou que o proprietário o compensasse pelos gastos já efetuados. No entanto, o defensor público que acompanhava o caso não terá seguido as orientações do cliente. “Fez parecer que queríamos ser os donos desta casa, sem ouvir aquilo que realmente estávamos a pedir”, sublinhou Neolanda.
Foi só após o despejo da casa que o defensor público terá informado a família e oferecido um terreno seu, oferta que o sogro recusou, insistindo, no entanto, que Eustáquio Guterres lhe devolvesse o dinheiro. “O defensor público já devolveu três mil, mas ainda faltam cinco mil. Quando tentamos contactá-lo, o número estava fora de serviço”, contou Neolanda.
No que respeita à cobrança indevida, Neolanda e a sua família terão apresentado o caso à Defensora Pública-Geral Adjunta, Olga Barreto Nunes, na própria Defensoria Pública, em Kintal Boot, mas até ao momento não houve qualquer ação concreta por parte da instituição. “Fui conversar com a Adjunta e, apesar de receosa, ela reconheceu que os defensores públicos agem assim e que algumas pessoas já apresentaram queixas semelhantes”, contou Neolanda.
De acordo com o artigo 79.º do Estatuto da Defensoria Pública, relativo à escala de sanções, os defensores públicos estão sujeitos às seguintes sanções, por ordem de gravidade: advertência, repreensão registada, multa, transferência compulsória, suspensão do exercício, inatividade, aposentação compulsória e demissão.
O defensor público Eustáquio Guterres explicou ao Diligente que ele e o sogro de Neolanda foram colegas e amigos no passado, negando, contudo, ter efetuado qualquer cobrança ilegal ao cliente. “No âmbito do recurso, enquanto a decisão ainda não tinha sido emitida, o Sr. Amaro entregou-me dinheiro, mas foi algo casual. Assim que saiu a decisão (do tribunal), informei imediatamente o Sr. Amaro de que não estava envolvido. Esclareci-lhe que não fiz qualquer cobrança”, afirmou o defensor.
O Diligente questionou Eustáquio Guterres sobre as provas apresentadas pela família, que alega que ele terá pedido dinheiro. O defensor optou por não comentar diretamente. “Sobre isso, o que posso dizer? Fica assim. Podem publicar a notícia, sem problema. Mas, com toda a honestidade, seja falso ou verdadeiro, ainda não posso dar uma resposta neste momento”, declarou Eustáquio.
Por sua vez, Neolanda refutou a alegação de que o seu sogro tenha dado o dinheiro por livre e espontânea vontade, afirmando que foi o defensor público quem solicitou a quantia em questão.
O Diligente chegou à fala com a Defensora Pública-Geral Adjunta, que reconheceu que Neolanda procurara a Defensoria Pública para confirmar o facto de o defensor público não ter apresentado o recurso.
No que respeita às alegadas cobranças ilegais, a Defensora Pública-Geral Adjunta preferiu não se pronunciar.
Segundo Neolanda, as cobranças ilegais têm ocorrido com frequência, mas as vítimas não têm coragem de denunciar. Por isso, está agora a reunir provas para apresentar uma queixa ao Ministério da Justiça e às entidades competentes, para que sejam tomadas as medidas necessárias contra os defensores públicos que não trabalham de forma profissional.
Anoi (nome fictício) diz também ter sido vítima de uma cobrança. Em 2022, solicitou a assistência de um defensor público para mediar a recuperação de um empréstimo de dois mil dólares americanos. O defensor público terá exigido 100 dólares para carregar o telemóvel, sob o pretexto de acelerar o processo, mas terá posteriormente ignorado o processo, deixando-a sem solução.
“Ligou-me a pedir 100 dólares, que não poderia receber no seu local de trabalho. Fui entregar a quantia que me pediu”, contou.
Anoi sabia que os defensores públicos devem dar assistência gratuita aos cidadãos, mas achou que deveria pagar para garantir que o seu processo fosse tratado com seriedade. “Caso contrário, o defensor público iria ignorar o meu caso e eu ficaria sem assistência”, desabafou.
Com o passar do tempo, tentou entrar em contacto com o defensor público, mas este não respondia. “Comecei a ficar preocupada, então pedi ao meu marido para o procurar, mas diziam sempre que ele estava ocupado, embora estivesse no escritório”, contou. Tentou obter informações cinco vezes por mês junto da Defensoria Pública, mas nunca conseguiu falar com o defensor.
Segundo Anoi, o defensor público acabou por ignorar o processo e ela ficou sem os 100 dólares: “Esse dinheiro foi supostamente usado para contactar a pessoa que me devia o dinheiro, mas o defensor nunca fez esse contacto até que essa pessoa faleceu e o caso acabou sem solução”.
A negligência do defensor fez com que Anoi perdesse o valor total do empréstimo de dois mil dólares americanos, além dos 100 dólares que este cobrou: “O defensor público não percebe que, mesmo em processos civis que não são urgentes, os direitos do cidadão devem ser protegidos, mas isso não aconteceu”.
A Defensoria Pública foi criada para dar assistência a pessoas em situação de vulnerabilidade, mas, para Anoi, a realidade é que muitas pessoas com recursos económicos limitados não conseguem obter atendimento adequado ou assistência legal de qualidade por parte dos defensores públicos. Defende também que a “irresponsabilidade” de muitos destes profissionais está a levar outros cidadãos a preferirem contratar advogados privados, em vez de recorrerem à Defensoria Pública.
Confiança na justiça abalada
A alegada negligência dos defensores públicos timorenses estende-se a outros cidadãos. Segundo uma monitorização da Provedoria dos Direito Humanos e Justiça (PDHJ) realizada nas prisões, os reclusos queixam-se da falta de uma assistência digna por parte dos defensores públicos, sobretudo quando uma decisão de primeira instância já foi tomada.
“Os presos querem recorrer, mas os defensores públicos dizem que já não precisam de o fazer, deixando-os cumprir as penas com esta incerteza”, afirma o Provedor dos Direitos Humanos e Justiça, Virgílio Guterres.
Embora admita que o número de defensores públicos seja insuficiente, para o Provedor há falta de compromisso destes profissionais. Dá o exemplo daqueles que tiveram problemas com a Secretaria de Estado dos Assuntos da Toponímia e Organização Urbana. “Como no caso dos despejos. As pessoas apresentaram queixa à PDHJ e solicitámos apoio de um defensor público, mas até agora não recebemos resposta ou confirmação da Defensoria Pública para representar as vítimas em tribunal”, conta.
Segundo o Provedor, o Governo precisa de garantir a independência da Defensoria Pública, uma vez que “em alguns casos de cidadãos envolvidos na política do Governo, a instituição não levanta esses casos”.
Sobre as alegadas cobranças ilegais, o Provedor elogia a coragem dos cidadãos que denunciam estas práticas e condena a atuação dos defensores: “A sua obrigação é dar apoio gratuito aos cidadãos, uma vez que o Governo lhes garantiu os salários”. A cobrança destes serviços “viola o estatuto da Defensoria Pública, o código de ética e a consciência desses profissionais”.
Virgílio Guterres considera também as cobranças junto de cidadãos vulneráveis “uma ameaça séria para o sistema de assistência legal, especialmente para aqueles que não têm capacidade financeira para aceder a justiça, resultando em exploração humana”.
O Provedor diz ainda ter solicitado às autoridades, nomeadamente ao Ministério da Justiça, atenção às alegadas irregularidades e defende que o Governo devia rever os estatutos da Defensoria Pública para garantir que a entidade não fique sob a tutela de um ministério e se evitar conflitos de interesses.
Também para o jurista Armindo Moniz, a confirmarem-se, as cobranças constituem um crime: “Essa situação precisa da atenção séria das autoridades competentes. Perante evidências dessa prática, pode até demitir-se o defensor público e contratar outra pessoa”.
O jurista considera que as alegadas práticas dos defensores levam a que os cidadãos percam a confiança na justiça, porque “formalmente, se diz que oferecem assistência de acordo com o que a lei determina, mas, substancialmente, os cidadãos não têm acesso à justiça de maneira justa”.
Armindo Moniz defende que o Grupo de Trabalho para a Reforma do Setor da Justiça em Timor-Leste, liderado por Lúcia Lobato, devia prestar atenção ao trabalho dos defensores e acredita que a atribuição de uma especialidade a estes profissionais, como os processos criminais e cíveis, poderia promover um trabalho mais eficaz.
Defensoria Pública destaca esforços da instituição na assistência aos cidadãos
Sublinhando que os estatutos da Defensoria Pública não permitem que os defensores solicitem ou aceitem qualquer pagamento por parte dos cidadãos, a Defensora Pública-Geral Adjunta insiste na necessidade de apresentação de queixas formais à Inspeção da Defensoria Pública.
No entanto, segundo o Art.º 36.º, n.º 3, alínea a), dos Serviços de Inspeção da Defensoria Pública, compete à Inspeção da Defensoria Pública realizar apenas, nos termos da lei, inspeções, inquéritos e sindicâncias aos serviços da Defensoria Pública, bem como instruir os processos disciplinares, em conformidade com as deliberações do Conselho Superior ou do Defensor Público Geral, assegurando assim a observância das normas e o bom funcionamento dos serviços.
“As vítimas precisam de trazer provas para que possamos iniciar uma investigação e, se necessário, encaminharemos o caso ao Conselho da Defensoria Pública para decisões de acordo com a gravidade da situação”, afirmou. Embora sem especificar que denúncias foram apresentadas, Olga Nunes explicou que há já queixas em fase de investigação.
O atendimento da Defensoria Pública é, segundo a defensora, sempre organizado conforme a urgência de cada processo, não existindo discriminação nos serviços prestados aos clientes.
Questionada sobre a preferência dos cidadãos por advogados privados devido ao descontentamento com a atuação da Defensoria Pública, Olga Nunes desvalorizou a situação: “Muitos clientes ficam satisfeitos porque o processo decorre rapidamente e a decisão lhes é favorável. Contudo, outros podem estar descontentes com a condução do processo ou com o resultado. Isso é natural”.
A defensora destacou também que mais de 90% das ações judiciais no país, criminais ou cíveis, são conduzidas por defensores públicos. “Na Defensoria Pública, trabalhamos de forma incansável. Não procuramos mostrar o nosso trabalho nos meios de comunicação nem fazemos propaganda. O que importa é o resultado e o benefício para o cidadão que procura justiça”, sublinhou.
A Defensora Pública-Geral Adjunta reconheceu ainda que a falta de recursos humanos e as limitações nas condições de trabalho continuam a ser desafios significativos para a instituição. Atualmente, a Defensoria Pública conta em todo o território com apenas 34 profissionais, dos quais 29 estão ativamente a prestar assistência aos cidadãos, enquanto os restantes ocupam cargos na estrutura administrativa.
De acordo com o relatório de assistência da Defensoria Pública de janeiro a setembro de 2024, foram prestadas 1.910 assistências em processos criminais e 501 em cíveis, abrangendo as áreas judiciais de Díli, Baucau, Suai e a Região Administrativa Especial de Oecússe-Ambeno.
Quanto à necessidade de alocar defensores públicos de acordo com as suas especialidades, Olga Barreto Nunes reconheceu que isso é essencial e já faz parte do plano estratégico da instituição. “Por vezes, um defensor acumula casos criminais e cíveis. Pode estar a tratar de um processo cível e, de repente, surge um criminal”, explicou.
Faz-me lembrar o tempo indonesio, o tao famoso “oan roko”.