Casamento precoce em Timor-Leste: desafios, consequências e ações legais para proteger mulheres e crianças

A pesquisa destaca que “rapazes adolescentes e homens jovens que não estão preparados para a parentalidade podem recorrer à violência física” /Foto: Opas/OMS

Em Timor-Leste, o casamento precoce continua a ser uma realidade devastadora, privando muitas jovens de oportunidades e condenando-as a ciclos de pobreza, violência e exclusão. Histórias como a de Ana Maria (nome fictício), uma jovem que engravidou quando tinha 16 anos, revelam as consequências profundas desta prática e a necessidade urgente de políticas para proteger as mulheres e crianças.

Ana Maria, hoje com 18 anos, é natural de Laga, Baucau. Aos 16 anos, engravidou do namorado, um colega de escola quatro anos mais velho. Com medo da reação da família, escondeu a gravidez durante três meses. Quando finalmente revelou a sua condição, a família ficou zangada e dececionada, mas tentou apoiá-la da melhor forma possível.

Enquanto o namorado continuou a estudar, Ana viu-se obrigada a abandonar a escola, receando o julgamento e o bullying dos colegas. Além de lidar com uma gravidez inesperada, enfrentou a indiferença do companheiro e a falta de apoio emocional.

O parto, em março de 2024, foi complicado devido à sua idade. O progenitor manteve-se ausente e, quando o bebé adoeceu, não demonstrou qualquer preocupação. Aos cinco meses, a criança morreu de febre, deixando Ana devastada.

Após a tragédia, o jovem desapareceu. Sozinha, sem apoio da família e sem perspetivas, Ana regressou à sua terra natal. Olhando para trás, admite o arrependimento. “Não quero voltar a passar por aquilo. Vou ter mais cuidado e proteger-me para não me arrepender outra vez.”

Agora, mais consciente das consequências, decidiu retomar os estudos e construir um futuro melhor.

As consequências físicas e psicológicas do casamento precoce

A ONU define casamento infantil como qualquer união antes da maioridade, ou seja, antes dos 17 anos em Timor-Leste, e casamento precoce como aquele que ocorre antes dos 18 anos.

Estudos indicam que o problema é alarmante. Segundo a Plan International (2021), 24% dos jovens timorenses com 24 anos ou menos já têm filhos, e 29% dos jovens com 18 anos já estão casados.  A Organização Mundial de Saúde (OMS) revelou que, a nível mundial, em 2023, a taxa de natalidade entre adolescentes dos 10 aos 14 anos foi de 1,5 por cada 1.000 mulheres.  As complicações na gravidez e no parto são a segunda maior causa de morte entre raparigas dos 15 aos 19 anos a nível mundial.

As mães adolescentes, dos 10 aos 19 anos, enfrentam riscos acrescidos de eclâmpsia, infeções graves e complicações no parto do que as mulheres dos 20 aos 24 anos. Além disso, os bebés têm maior probabilidade de nascer com baixo peso ou prematuramente, como aconteceu com o filho de Ana Maria.

A organização revelou que as complicações relacionadas com a gravidez e o parto são a segunda principal causa de morte entre raparigas dos 15 aos 19 anos em todo o mundo. O estudo “Gravidez na adolescência e casamento precoce em Timor-Leste”, realizado pela UNFPA em 2017, destaca que a taxa de mortalidade entre mães adolescentes é quase o dobro da registada entre mulheres que engravidam entre os 20 e os 24 anos.

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a prevenção da gravidez na adolescência, bem como a redução da mortalidade e morbilidade associadas à gravidez, são fundamentais para melhorar os resultados de saúde ao longo da vida. Além disso, estas medidas são essenciais para o cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) relacionados com a saúde materna e neonatal, contribuindo para o bem-estar das mães e dos bebés e para a redução das desigualdades no acesso a cuidados de saúde.

Casamento precoce e saúde mental: um peso para a juventude

Ângelo Aparício, psicólogo timorense, alerta para os impactos negativos do casamento precoce em pessoas que ainda estão em fase de desenvolvimento, sublinhando que o cérebro humano não atinge a maturidade completa nessa etapa. Esta imaturidade limita a capacidade de autoconhecimento e de controlo emocional.

“Quando estas pessoas decidem constituir família, muitas vezes não estão preparadas para os desafios do ambiente familiar. Isso pode resultar em frustração, ansiedade e perda de controlo emocional, levando à raiva e, em alguns casos, ao consumo de substâncias para aliviar o stress e as emoções intensas”, afirmou.

Aparício acrescenta que a dificuldade em gerir as emoções pode culminar em comportamentos agressivos, tanto físicos como psicológicos, dirigidos ao cônjuge e, frequentemente, às crianças, que acabam por se tornar vítimas dessa violência. Esse contexto gera um ambiente doméstico tenso e prejudicial.

Para o psicólogo, as vítimas do casamento precoce podem sentir ciúmes dos amigos mais jovens, ao refletirem sobre a juventude perdida, o que agrava a insatisfação com a própria vida. O ressentimento alimenta um ciclo de frustração e comparações negativas, reforçando a sensação de que perderam experiências essenciais da adolescência.

Além disso, casar ou ter filhos demasiado cedo leva frequentemente ao abandono dos estudos. Segundo Ângelo Aparício, essa realidade compromete o desenvolvimento cognitivo e a capacidade de tomar decisões mais complexas e informadas. “Isso reflete-se na forma como essas pessoas lidam com as questões familiares, muitas vezes demonstrando comportamentos submissos e receio de expressar as suas opiniões e sentimentos, o que contribui para uma dinâmica familiar opressiva e emocionalmente silenciosa.”

O psicólogo sublinha ainda que mulheres que perdem a oportunidade de estudar têm menos hipóteses de conseguir um emprego com boa remuneração, o que dificulta a sua independência financeira e as torna mais vulneráveis, dependentes do marido ou da família. “Esta realidade perpetua o ciclo da pobreza, uma vez que condições económicas precárias limitam o acesso a melhores oportunidades e a um maior bem-estar financeiro”, alertou.

Para mitigar este problema, defende que o conhecimento sobre saúde reprodutiva e responsabilidade parental deve ser integrado no currículo escolar a partir do terceiro ciclo do ensino básico. “Devem ser aplicadas sanções rigorosas aos pais ou tutores que não apoiem a educação dos filhos até ao ensino secundário ou que permitam o casamento precoce”, reforçou. Além disso, considera fundamental a implementação de uma lei que estabeleça a idade mínima para o casamento nos 21 anos ou mais.

Concluiu com um apelo: “A vida não se resume a crescer, estudar, casar e ter filhos. Há tanto para explorar! Cada um deve procurar o seu propósito, aproveitar a juventude, essa fase de energia e curiosidade, para se conhecer e descobrir a beleza do mundo. Não desperdice esta fase dourada por uma felicidade temporária ou para agradar os outros. Mude a sua mentalidade, transforme os seus comportamentos, sonhe alto e poderá mudar o futuro da sua geração, contribuindo para um Timor-Leste melhor”, incentivou.

Perigo para a integridade física: violência e normas culturais em Timor-Leste

Para além do risco de gravidez precoce, as raparigas também estão expostas à violência física, como alerta a Asia Justice and Rights (AJAR) no seu estudo “Vinte anos depois: A luta contínua das mulheres timorenses para se libertarem da violência”, publicado em 2022. A pesquisa destaca que “rapazes adolescentes e homens jovens que não estão preparados para a parentalidade podem recorrer à violência física”.

A AJAR sublinha que, apesar de terem passado 20 anos desde a restauração da independência e das promessas de igualdade e liberdade, as mulheres e raparigas em Timor-Leste continuam a enfrentar uma verdadeira epidemia de violência, com níveis entre os mais altos do mundo. “No entanto, esta epidemia permanece silenciosa e invisível, com a violência muitas vezes a ter início dentro de casa, onde a maioria das mulheres vive com os seus agressores.”

O relatório também chama a atenção para as normas patriarcais tradicionais que, aliadas às práticas consuetudinárias dominadas pelos homens, têm silenciado mulheres e raparigas em muitas comunidades, criando uma cultura de estigma que dificulta a busca por justiça e apoio.

O estudo de 2016 do programa Nabilan — uma parceria entre os governos de Timor-Leste e da Austrália para combater a violência doméstica contra mulheres e crianças — revela que mais de metade (51%) dos casos de violência baseada no género, cometida por parceiros íntimos, afetam jovens entre os 15 e os 19 anos.

O programa Nabilan aponta ainda que 59% das mulheres relataram ter sofrido violência por parte dos seus parceiros íntimos ao longo da vida, e 47% afirmaram ter vivido esse tipo de abuso recentemente. Além disso, 81% das vítimas descreveram a violência como frequente, e 77% classificaram-na como grave. A pesquisa revelou ainda que 14% das mulheres sofreram violência sexual fora do contexto conjugal, sendo que a maioria conhecia o agressor.

Leis de proteção infantil: avanços e desafios na implementação

Um estudo da UNFPA de 2017 revela que as adolescentes que iniciam a atividade sexual em idade jovem têm maior probabilidade de terem sido pressionadas, coagidas ou forçadas a ter relações sexuais, o que pode resultar numa gravidez indesejada.

A Lei nº 6/2023, sobre a Proteção das Crianças e Jovens em Perigo, aprovada em março de 2023, garante os direitos, o bem-estar e o desenvolvimento integral de crianças e jovens em situação de risco. Esta legislação atribui a responsabilidade pela promoção dos direitos e proteção das crianças e jovens ao Ministério da Solidariedade Social, bem como a outras entidades estatais e serviços de proteção, incluindo as autoridades policiais, o Ministério Público e os Tribunais.

O artigo 5.º da referida lei estabelece que “a intervenção para promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo ocorre quando os pais, o representante legal ou quem detenha a guarda de facto da criança ou jovem põem em risco a sua vida, integridade física ou psíquica, segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento”.

A legislação também determina que as entidades competentes devem intervir “quando o perigo resulte de ação ou omissão de terceiros ou da própria criança ou jovem, e os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto não tomem medidas adequadas para o eliminar”.

As medidas de promoção e proteção previstas incluem apoio aos pais, ao representante legal ou à pessoa que detenha a guarda da criança, apoio à autonomia de vida, acolhimento em famílias ou instituições, bem como a confiança da criança ou jovem a uma pessoa idónea, a uma família de acolhimento ou a uma instituição com vista à adoção.

O artigo 18.º da Constituição da República Democrática de Timor-Leste garante uma proteção especial às crianças, atribuindo à família, à comunidade e ao Estado a responsabilidade de protegê-las contra todas as formas de violência, abuso e exploração sexual.

Além disso, a Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC), ratificada por Timor-Leste em 2003, impõe obrigações significativas para a proteção infantil. O artigo 3.º da Convenção determina que, em todas as decisões que envolvam crianças, o seu interesse superior deve ser a principal consideração. Já o artigo 19.º exige que os Estados Partes adotem todas as medidas necessárias para proteger as crianças contra todas as formas de violência, abuso físico ou psicológico, negligência, maus-tratos ou exploração, incluindo o abuso sexual.

No âmbito penal, o artigo 177.º do Código Penal criminaliza qualquer ato sexual com menores de 14 anos, prevendo uma pena de prisão de 5 a 20 anos. Já os atos sexuais com adolescentes entre os 14 e os 16 anos são punidos pelo artigo 178.º, com penas de prisão até 5 anos.

Apesar da existência destas leis e políticas, que representam um passo importante no combate ao casamento precoce e à violência contra mulheres e crianças em Timor-Leste, a realidade demonstra que muitas vítimas continuam a enfrentar estas situações. Ainda há um longo caminho a percorrer para garantir a implementação efetiva destas medidas e construir uma sociedade onde mulheres e crianças possam viver livres de violência e abuso.

A dificuldade em registar e combater casos de casamento precoce

A assessora jurídica do Instituto Nacional da Defesa dos Direitos da Criança (INDDICA), Hildegardis Wondeng, reconhece que o registo de casos de casamento precoce é um desafio, uma vez que temas como casamento infantil, violência doméstica e abuso sexual contra menores ainda são tabus na sociedade.

“As pessoas não querem denunciar quem obriga crianças a casar. Mesmo que os vizinhos saibam, evitam interferir na vida dos outros e têm receio de testemunhar quando o caso chega às autoridades judiciais”, explicou.

Segundo a assessora, em algumas situações, o casamento precoce ocorre quando os pais descobrem que os filhos estão a ter relações sexuais e os forçam a casar, argumentando que assim preservam a honra da família e “legalizam” a relação dos jovens.

Hildegardis Wondeng relatou ainda que algumas famílias obrigam as filhas a casar com adultos devido a dívidas ou compromissos assumidos com terceiros. Sublinhou que qualquer relação ou casamento com crianças menores de 14 anos é considerado abuso sexual, independentemente do suposto consentimento da criança. “Isso não é negociável perante a lei, porque é crime”, afirmou.

A assessora explicou que certas práticas culturais tradicionais contribuem para o casamento precoce. “Em Atsabe, Ermera, por exemplo, quando os pais percebem que uma menina começa a desenvolver seios, consideram que ela já pode casar e organizam o noivado através das famílias”, partilhou.

Em algumas regiões, o casamento precoce é visto como uma tradição que deve ser mantida. “É crime! Obrigar as crianças a seguir os interesses dos pais. Apelo às comunidades para abandonarem essa prática, pois representa também uma violação dos direitos humanos”, alertou.

Hildegardis Wondeng defende que crianças com menos de 17 anos devem ter a oportunidade de aprender, estudar e expressar-se livremente. Segundo ela, o casamento precoce compromete o futuro destas crianças, levando-as a abandonar a escola e a sofrer de stress e outras consequências emocionais.

A assessora comprometeu-se a intensificar, este ano, o combate às práticas que conduzem ao casamento precoce, reforçando campanhas de sensibilização e socialização.

Ver os comentários para o artigo

Comente ou sugira uma correção

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Open chat
Precisa de ajuda?
Olá 👋
Podemos ajudar?