Amuletos na gravidez: entre a fé ancestral e a medicina moderna em Timor-Leste

“Tomava banho com água quente, porque diziam que ajudava a eliminar o sangue restante do parto e a estimular a produção de leite.”/Foto: IA

Tesouras, pregos, terços, pentes e até espinhas de peixe são usados por grávidas timorenses como proteção espiritual. Herdadas de geração em geração, estas práticas dividem opiniões num país onde o misticismo convive com a ciência médica.

Em Timor-Leste, objetos do quotidiano como pentes, pregos, tesouras e terços assumem um papel simbólico durante a gravidez. Transmitidas de geração em geração, estas crenças persistem como formas de proteção contra espíritos malignos, feitiços e energias negativas. Para muitas mulheres, o uso destes objetos representa não apenas uma prática espiritual, mas também um elo com os antepassados e a preservação da identidade cultural.

Regina Correia, de 63 anos, conta que seguiu fielmente o ritual aprendido com os seus antepassados. “Usava sempre um pente no cabelo. Em ocasiões formais, punha-o na mala. Durante a noite, dormia com ele debaixo da almofada. Diziam que ajudava a garantir um parto seguro.”

Segundo ela, os objetos inicialmente usados eram pentes feitos de corno de búfalo. “Mais tarde, incluíram-se a tesoura e o prego, porque se acreditava que eram objetos ferozes e que os espíritos maus tinham medo de se aproximar.”

“Os nossos avós não sabiam ler nem escrever, então transmitiam estas crenças como forma de proteger as grávidas. E isso foi passando de geração em geração”, explicou.

Na sua casa, as mulheres também evitavam lavar o cabelo durante 40 dias após o parto, pois acreditavam que isso poderia causar coágulos de sangue no cérebro. “Usamos um pano embebido em água quente na barriga e costas para expulsar o frio, evitar doenças e eliminar o resto do sangue.” Acredita que estas práticas são uma herança dos antepassados e uma forma de cuidar com os meios disponíveis. “Antes não havia médicos. Isto era a nossa ciência.”

Benvinda Alves, mãe de uma criança, apesar de usar todos os objetos no início da gravidez, preferiu depois ficar apenas com o terço, por simbolizar o sacrifício de Jesus Cristo. “A tesoura serve para cortar cabelo, papel… O prego serve para unir coisas. Não salvam ninguém. Mas respeito a tradição.”

O seu parceiro, no entanto, reagia com ceticismo. “Dizia que era superstição e que a vida não depende de objetos. Mas eu sentia que devia seguir a orientação da minha mãe.”

Benvinda carregava os objetos numa carteira. “Se não dava para levar todos, levava só o terço. A espinha de peixe só comecei a usar a partir do sexto mês. A tesoura e o terço comecei com um mês. O prego, só uma vez.”

Também contou a história de uma amiga que lhe ofereceu uma espinha de peixe depois de esta ter tido pesadelos ao regressar de um passeio ao mar. “Como eu também fazia exercício físico entre o quinto e oitavo mês de gravidez, ela aconselhou-me a usá-la.”

Questionada se alguma vez teve problemas por não levar os objetos, respondeu que não. “Nunca senti qualquer maldade ou ameaça espiritual.” Mas acredita que as tradições devem ser passadas com equilíbrio. “Quero transmitir as lições positivas às novas gerações, mas com pensamento crítico. Não podemos viver como no passado, em que a vida dependia apenas destas práticas.”

Francisca Soares, também mãe de uma criança, afirmou ter usado tesoura, prego e terço por sugestão de pessoas próximas. Embora tenha recebido conselhos para não seguir essas práticas, acredita que ajudam na proteção. “Às vezes esquecia-me de levar um dos objetos, mas nunca senti nada de negativo.” Defende que os jovens devem aprender a caminhar com o mundo moderno, mas sem desrespeitar as tradições.

Diana Branco optou por não seguir os rituais. “A minha família nunca me obrigou. A família do meu marido insistia. Mas nunca usei pregos ou tesouras.” Para ela, a verdadeira proteção vem da fé. “Só Deus pode proteger. Os objetos não têm poder.”

Mesmo quando lhe pediram para viajar à noite com uma tesoura ou um prego no cabelo, recusou. “Nunca fiz isso”.

Diana também partilhou a sua experiência no pós-parto. “Depois do parto, não usava casaco. Ficava sempre em casa. Quando o bebé fez três semanas, comecei a sair. Uma vez, fui a casa da minha avó e, ao ver que eu não usava casaco, ela ficou preocupada. Pediu-me para o vestir, com medo de que eu apanhasse frio e ficasse doente. Mas continuei sem usar.”

Apesar disso, manteve algumas práticas por iniciativa própria. “A minha avó dizia para não mexer em água fria, mas continuei a lavar a louça”, contou. Nos primeiros dias, seguiu o conselho da mãe e bebia água quente, supostamente para estimular a produção de leite, mas não manteve esse hábito por muito tempo.

Diana revelou ainda que tomou banho com água quente durante um mês, com água praticamente a ferver. Durante uma semana, também seguiu o costume de usar panos embebidos em água muito quente, aplicados na barriga. “A minha mãe, a sogra e a avó insistiram para que o fizesse. Segui o que me disseram, mas não ultrapassei os 30 dias”.

Maria Amaral, mãe de três filhos, contou que só conheceu estas práticas tradicionais depois de casar e se mudar para Timor-Leste. “Na juventude, vivi na Indonésia. Nunca tinha ouvido falar destas crenças relacionadas com o pós-parto. Foi tudo novo para mim”, confessou.

Após o casamento, começou a seguir os rituais transmitidos pelas mulheres mais velhas da família. “Tomava banho com água quente, porque diziam que ajudava a eliminar o sangue restante do parto e a estimular a produção de leite.” Outra prática que adotou foi evitar o consumo de sal durante alguns dias. “Diziam que o sal podia atrasar a cicatrização do colo do útero”.

Maria admitiu que, apesar de não compreender completamente o significado de cada prática, confiava nas mulheres que a orientavam. “Talvez não soubesse os motivos, mas segui o que elas aprenderam com as mais velhas. Cuidaram de mim com esse conhecimento tradicional.”

O olhar da antropologia e a perspetiva médica

Este conhecimento é transmitido oralmente pelas mulheres mais velhas da família — mães, avós, tias — que orientam as mais jovens, preservando práticas socioculturais e reforçando dinâmicas de poder no seio familiar. Alessandro Boarccaech, antropólogo, observa que o valor desses objetos vai além da sua função prática: proporcionam conforto emocional e mantêm os vínculos com crenças e costumes herdados dos antepassados.

A tradição, sublinha Alessandro, não é estática. O terço católico, por exemplo, foi incorporado a esses amuletos protetores, refletindo a influência da cosmovisão cristã na cultura timorense. “A cultura não é algo fixo ou imutável. Está em constante transformação, reinterpretando símbolos, negociando significados, disputando narrativas e criando novas práticas e sentidos.”

O antropólogo reforça que estas crenças não são intrinsecamente boas ou más — fazem parte de um sistema cultural que procura equilíbrio entre o mundo físico e espiritual. Muitas mulheres, explica, combinam os rituais tradicionais com os cuidados médicos modernos, usando os amuletos como complemento emocional e cultural às consultas e exames.

No entanto, Alessandro alerta para os riscos quando o medo do sobrenatural e a desconfiança impedem o acesso a cuidados essenciais como exames pré-natais, vacinação ou tratamento médico. “Há pessoas que, por acreditarem na eficácia dos amuletos ou por receio de represálias espirituais, evitam a medicina convencional e colocam em risco a sua saúde e a dos bebés.”

Para o antropólogo, o caminho passa por garantir que raparigas e rapazes tenham, desde cedo, acesso à educação em saúde e a diferentes formas de saber, de modo a poderem fazer escolhas informadas. “Promover cuidados médicos, acesso à informação, uma sociedade menos punitiva e mais inclusiva, e reforçar a autonomia das mulheres pode criar um ambiente onde tradição e ciência dialogam com respeito, sem pôr em causa os direitos e a saúde das mulheres”, conclui.

Uma médica-geral, que preferiu não ser identificada, explicou que continua a ser comum, em Timor-Leste, ver mulheres grávidas a usarem pregos, tesouras e outros objetos metálicos presos à roupa ou colocados debaixo da almofada.

“As mulheres acreditam que esses objetos protegem a mãe e o bebé contra maus espíritos. No entanto, do ponto de vista médico, não têm qualquer efeito clínico. Não são medicamentos nem substituem cuidados de saúde”, afirmou.

A médica sublinhou que não existe qualquer prova científica sobre o uso de metais durante a gravidez com efeitos protetores para a saúde da mãe ou do bebé. “Não há qualquer investigação científica que comprove os benefícios dessas práticas.”

Apesar de reconhecer o seu valor cultural, a médica deixou um alerta: “Estas crenças fazem parte da identidade de muitas famílias e devem ser tratadas com respeito. No entanto, é essencial que as mulheres grávidas tenham acesso a informação correta e aos cuidados médicos adequados durante a gestação.”

Entre as recomendações fundamentais, a médica destacou a importância das consultas pré-natais regulares, para controlar a pressão arterial, acompanhar o desenvolvimento do feto e prevenir complicações. Acrescentou ainda que as grávidas devem manter uma alimentação equilibrada, evitar o consumo de álcool e tabaco, e não tomar medicamentos sem prescrição médica.

Depois do parto, o corpo da mulher precisa de tempo e cuidados específicos para recuperar, tanto a nível físico como emocional. Em Timor-Leste, muitas mulheres seguem práticas tradicionais como o uso de casaco, o consumo de água quente e os banhos com água fervida. A médica reconhece que, em alguns casos, estas práticas podem ter efeitos benéficos.

“Estas ações são uma forma de demonstrar cuidado e respeito num momento sagrado como o nascimento de uma criança. Algumas práticas tradicionais até contribuem para o bem-estar no pós-parto”, frisou.

O uso do casaco, por exemplo, ajuda a proteger do frio e pode prevenir desconfortos respiratórios. “O mais importante é que a mulher se sinta confortável e protegida. O frio pode causar mal-estar ou facilitar infeções, especialmente num organismo mais vulnerável após o parto.”

Sobre a prática de beber água quente, a médica reconheceu o seu valor simbólico e tradicional, mas sublinhou: “O essencial é manter uma boa hidratação com água limpa, seja quente ou morna. A hidratação é fundamental para a recuperação e para a produção de leite materno.”

Quanto ao banho com água quente, considerou que pode ter efeitos positivos tanto na higiene como no alívio de dores. “Tomar banho com água morna ajuda a relaxar os músculos e favorece a cicatrização. É importante manter a higiene diária para prevenir infeções.”

A médica alertou, no entanto, para o risco de certas práticas culturais prejudicarem a saúde. “Evitar o banho por medo ou restringir alimentos saudáveis por crenças pode atrasar a recuperação.”

Na sua opinião, tradição e medicina não precisam de estar em conflito. “Desde que não prejudiquem a saúde, estas práticas devem ser respeitadas. O mais importante é que as mulheres se sintam cuidadas, informadas e com acesso a apoio médico adequado”, concluiu.

Como sublinham o antropólogo Alessandro Boarccaech e a médica entrevistada, estas práticas tradicionais refletem uma forma de cuidado enraizada na cultura timorense, com valor simbólico e emocional. No entanto, o desafio atual está em garantir que a proteção espiritual e o respeito pelas tradições não impeçam o acesso das mulheres grávidas aos cuidados de saúde modernos. Promover um diálogo equilibrado entre cultura e ciência pode ser o caminho para proteger não só o corpo, mas também a dignidade e os direitos das mulheres timorenses.

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