A proposta do Presidente José Ramos-Horta para a transição do modelo semipresidencialista para um sistema presidencialista abriu um debate sobre governabilidade, equilíbrio de poderes e os mecanismos legais necessários a uma eventual revisão da Constituição. Especialistas, deputados e organizações da sociedade civil analisam os impactos, desafios e riscos que uma mudança desta natureza poderá trazer para Timor-Leste.
O Presidente de Timor-Leste, José Ramos-Horta, defendeu recentemente uma emenda constitucional para adotar o sistema presidencialista, argumentando que é necessária uma “autoridade clara” e sem dualidade no Executivo. Ramos-Horta afirmou que o atual modelo semipresidencialista pode gerar conflitos entre o Presidente da República e o Primeiro-Ministro e que o país está preparado para introduzir algumas alterações, prevendo aplicar o novo modelo já nas eleições de 2028.
Em declarações à Lusa, Ramos-Horta afirmou: “Acredito que devemos fazer uma emenda constitucional e passar para o sistema presidencialista. O Presidente é o executivo, acabou-se isso do dito semipresidencialismo.”
O chefe de Estado sublinhou que a mudança visa garantir estabilidade e evitar conflitos entre órgãos de soberania, como aconteceu no VIII Governo, quando divergências entre o Presidente e o Primeiro-Ministro provocaram instabilidade política.
Constitucionalista explica requisitos e implicações da revisão
Para o constitucionalista Alexandre Corte-Real, Timor-Leste já cumpre os requisitos legais para proceder a uma revisão constitucional. “Depois de entrarmos em 2002, passaram-se mais seis anos e já se podia fazer uma emenda constitucional, uma revisão. Já ultrapassámos esse período — estamos há quase 24 anos independentes. É natural pensar numa revisão constitucional”, afirma.
Corte-Real explica que a Constituição prevê mecanismos claros para alterações, permitindo eliminar ou adicionar artigos desatualizados, como os relativos aos crimes graves de 1999 ou às línguas de trabalho do período transitório. “Os deputados atuais têm a iniciativa para propor emendas, aditamentos ou eliminações de artigos que já não são necessários ou que precisam de atualização”, sublinha. Acrescenta que “a Constituição é rígida: só se consegue alterar com o voto favorável de dois terços do Parlamento, ou seja, pelo menos 43 deputados. Se não houver esse quórum, não se pode avançar”.
Sobre a eventual transição para um sistema presidencialista, Corte-Real refere que, nesse modelo, “o Presidente acumula as funções de chefe de Estado e chefe do Governo, assumindo todas as competências atualmente atribuídas ao primeiro-ministro. Isso tornaria o processo decisório mais rápido e efetivo”. No entanto, alerta que “é essencial haver mecanismos de controlo, como um Tribunal Constitucional, para evitar abusos de poder”.
O constitucionalista reconhece que o semipresidencialismo tem virtudes democráticas. “O semipresidencialismo é bom porque democratiza os poderes, mas tem a desvantagem de o processo de decisão levar mais tempo. No semipresidencialismo, talvez não haja garantia de estabilidade, porque aquilo que o Presidente quer o Primeiro-Ministro pode não aceitar”, explica, recordando exemplos de instabilidade no passado, como no VIII Governo. Sobre a chamada “dualidade” entre Presidente e Parlamento, Corte-Real observa: “Pode haver tensão porque o Parlamento representa o povo e o Presidente é eleito diretamente. Isso pode criar conflitos de competências e atrasos nas decisões”.
O constitucionalista sublinha ainda que qualquer mudança deverá respeitar as garantias da Constituição. “O processo de revisão constitucional exige quórum qualificado e há matérias que são intocáveis, como o princípio republicano, a separação de poderes e a independência nacional”, explica. Quanto à viabilidade política da emenda, Corte-Real acrescenta: “CNRT e PD têm 37 deputados, ou seja, para chegar aos 43 necessários terão de negociar com outras bancadas, como KHUNTO e PLP. A FRETILIN dificilmente apoiará a mudança, porque foi o partido que defendeu o semipresidencialismo na Assembleia Constituinte”.
A partir desta leitura jurídica apresentada por Alexandre Corte-Real, o debate avança agora para o plano político, onde surgem preocupações mais profundas sobre os riscos associados à concentração de poder num único órgão. Entre as vozes críticas destaca-se a do deputado da FRETILIN, David Dias “Mandati”, que alerta para tendências autoritárias caso Timor-Leste avance para um sistema presidencialista.
Deputado alerta para risco de autoritarismo
O deputado David Dias “Mandati” afirmou que o Presidente da República, “como cidadão, tem direito à sua opinião” sobre a proposta de mudança para um sistema presidencialista. No entanto, frisou que o chefe de Estado “deve entender que a nossa superfície é geograficamente pequena e o nosso povo só tem um milhão de pessoas”.
Mandati questionou se Timor-Leste pretende realmente adotar um modelo presidencialista para “criar arquitetura institucional”, sobretudo num contexto em que, segundo o deputado, “hoje em dia já não respeitamos as leis nem a Constituição e fazemos nomeações arbitrárias”.
Para o deputado, a possibilidade de transitar para um sistema presidencialista “concentra o poder numa determinada pessoa”. Reforçou que “o poder absoluto cria corrupção absoluta”, pois “uma pessoa com muito poder começa a abusar dele”.
Apontou ainda exemplos que, na sua perspetiva, ilustram essa tendência: “Por exemplo, agora há abuso de poder. A Constituição reza uma coisa e as pessoas decidem outra. Vamos ver onde isto vai desaguar. Porque outros também não dormem. O Presidente tem todo o direito de emitir a sua opinião, mas nem sempre as opiniões se adequam à realidade de um determinado território.”
Mandati classificou como “problemática” a nomeação para a Presidência do Tribunal de Recurso, afirmando que “esta competência presidencialista muda também esta parte, porque todas essas coisas vão ser controladas pelo Presidente da República”. Considerou ainda que a nomeação é “controversa”, dado que, apesar de o acórdão declarar que é inconstitucional, “há desobediência à lei”. Acrescentou que a pessoa nomeada “assume o cargo e utiliza os recursos do Estado de forma independente”. Para o deputado, “isto já é um indício de tendências autoritárias, porque enquanto ainda mantemos o semipresidencialismo, alguém já procede a nomeações como se estivéssemos num sistema presidencialista”.
Quanto à posição da FRETILIN, Mandati foi claro ao afirmar que o partido defende a manutenção do sistema semipresidencial: “Para um Estado de Direito Democrático, é mais adequado o semipresidencialista, porque há separação de poderes e não pode haver abuso de direitos. Se uma nação for muito grande, pode ser presidencialista, mas um Estado pequeno como o nosso, não há outra forma.”
Quanto ao argumento da alegada dualidade entre Presidente e Parlamento, o deputado refutou: “Não se trata de dualidade, porque cada órgão deve exercer o seu papel. O Parlamento cumpre as suas funções legislativas, e o Presidente exerce funções de controlo. No juramento do Presidente, ele promete cumprir a Constituição e não violá-la, mas na prática isso não acontece.”
Mandati concluiu com um alerta: caso Timor-Leste avance para o sistema presidencialista, “corremos o risco de cair no autoritarismo, com tendência para o abuso de poder”.
O Diligente tentou falar com a deputada do PLP, Maria Angelina Sarmento, mas esta não fez qualquer recomendação dirigida aos grandes partidos de Timor-Leste.
Também procurou ouvir o deputado Patrocínio dos Reis, do CNRT, mas este recusou pronunciar-se, afirmando que cabe à Presidente do Parlamento Nacional falar sobre o assunto.
Sociedade civil defende manutenção do semipresidencialismo
A análise política reflete-se também na sociedade civil. José Pereira, coordenador da Monitorização do Parlamento Nacional do JSMP, reconhece que qualquer sistema político pode ser adotado, mas sublinha que “não há sistema político perfeito”.
Segundo José Pereira, Timor-Leste adota atualmente um sistema semipresidencial. “Se o Presidente tem razões fundamentadas para propor uma possível mudança para o sistema presidencial, é porque estes sistemas políticos surgem sempre de um contexto histórico, de razões específicas e de problemas concretos”, afirmou.
Explicou que, num sistema presidencial, o Chefe de Estado e o Chefe de Governo são a mesma pessoa, sendo eleito apenas um candidato para ambos os cargos, enquanto o poder legislativo permanece independente. Assim, “o Governo não responde ao Parlamento Nacional, porque possui legitimidade própria”.
Em contraste, no sistema semipresidencial timorense, “embora o Chefe de Estado partilhe parcialmente funções do Poder Executivo, o Governo, liderado pelo Primeiro-Ministro, é responsável perante o Parlamento Nacional”.
Sobre o sistema presidencial, José Pereira destacou que o Presidente “escolhe os membros do Governo e tem liberdade para formar o Executivo de acordo com a sua vontade”, podendo também “vetar ou promulgar leis aprovadas pelo Parlamento”. Apesar de reconhecer que o presidencialismo confere ao Presidente um poder mais forte, alertou que “o risco deste sistema é a tendência para surgir um presidente autoritário, com possibilidade de transformar o regime numa ditadura”.
Entre outras desvantagens, sublinhou o risco de impasse político quando o executivo e a maioria parlamentar pertencem a forças políticas divergentes, assim como o facto de que, caso o Presidente cometa uma violação grave, “o único caminho para o afastar é o impeachment”.
Questionado sobre se o sistema semipresidencialista vigente corresponde à realidade do país, o JSMP respondeu afirmativamente: “Uma vantagem deste sistema é que o Governo depende do Parlamento Nacional, porque este representa o povo. Por isso, os programas e o orçamento do Estado devem ser aprovados pelo Parlamento”.
Por estas razões, o JSMP recomenda a manutenção do semipresidencialismo, argumentando que este modelo “garante interdependência entre os poderes executivo e legislativo, permitindo o controlo efetivo dos programas do Governo”.
O debate sobre a mudança do sistema semipresidencial para presidencial em Timor-Leste envolve diferentes perspetivas jurídicas e políticas. Enquanto o constitucionalista Alexandre Corte-Real sublinha que o país cumpre os requisitos legais para uma revisão constitucional e que o presidencialismo poderia acelerar decisões e garantir estabilidade, deputados da Fretilin, como David Dias Mandati, alertam para riscos de concentração de poder e possíveis tendências autoritárias.
A sociedade civil, representada pelo JSMP, recomenda a manutenção do sistema semipresidencial, que considera mais equilibrado e adequado ao país, permitindo maior controlo do Governo pelo Parlamento. O debate terá novos desenvolvimentos no seminário “Perspetivas sobre a Revisão da Constituição da República Democrática de Timor-Leste”, agendado para 3 de dezembro de 2025, no salão do Ministério das Finanças.
A Presidente do Parlamento Nacional, Fernanda Lay, explicou que o objetivo da realização do seminário sobre a revisão constitucional, que terá lugar a 3 de dezembro, no edifício do Ministério das Finanças, é recolher contributos dos partidos políticos, da sociedade civil, do Presidente da República, do Tribunal de Recurso, de ex-membros do Governo, entre outras entidades, para que possam dar feedback sobre os desafios da implementação da Constituição. “Porque há lacunas em alguns artigos, por isso todas estas proveniências devem dar as suas opiniões”, sublinhou.
Questionada sobre a possibilidade de uma alteração à Constituição, a responsável do Parlamento Nacional lembrou que é necessária uma “maioria qualificada” para aprovar qualquer mudança. “Apenas o CNRT não pode fazer nada. A FRETILIN também não. O evento serve para recolher as ideias das diferentes entidades”, afirmou Fernanda Lay.
Sobre o argumento do Presidente da República relativo à proposta de emenda que visa um sistema presidencialista, Fernanda Lay afirmou que o Chefe de Estado está convidado. “Se ele apresentar ideias, isso é muito natural. As ideias existem para provocar discussões que contribuam com boas soluções para o nosso país. A Constituição é a lei-mãe. Se a alterarmos, precisamos de saber o que realmente queremos. Noutros países, há muito cuidado quando se trata de mexer na Constituição.”
Questionada ainda sobre a possibilidade de Timor-Leste vir a adotar um sistema presidencialista, a deputada afirmou não ter uma posição definida. “Não tenho ideia, porque o nosso país é pequeno”, disse.


