Ex-combatentes, representantes da sociedade civil e partidos da oposição acusam o Governo de falhar na resposta às alegadas redes de crime organizado que operam no país. Sustentam que a persistência das atividades criminosas e a sensação de impunidade revelam falta de vontade política. O Executivo garante que a investigação está em andamento e afirma não ter obrigação de divulgar detalhes ao público.
O Coletivo Unidos Podemos (CUP), um grupo que reúne ex-prisioneiros políticos, ex-combatentes da Resistência, patriotas e nacionalistas dentro e fora do país, enviou, no passado dia 14 de novembro, uma carta ao Primeiro-Ministro, Xanana Gusmão, exigindo esclarecimentos urgentes sobre o manifesto tornado público pelo Ministro da Presidência do Conselho de Ministros, Ágio Pereira.
A carta foi igualmente enviada ao Presidente do Parlamento Nacional, a antigos titulares dos órgãos de soberania, a organizações da sociedade civil, a estruturas da Resistência e a confissões religiosas, alertando para a “gravidade extrema” das denúncias, que, segundo o grupo, comprometem seriamente a credibilidade e a soberania do Estado timorense.
Até ao momento, o Primeiro-Ministro, a quem a carta foi dirigida, ainda não respondeu oficialmente ao pedido enviado pelo CUP.
Em entrevista ao Diligente, o coordenador do CUP, Jacinto Alves, afirmou que o grupo representa cidadãos comprometidos com a consolidação da democracia e com a defesa da identidade nacional, exigindo, por isso, total transparência e uma investigação criminal profunda, imparcial e rigorosa.
“Uma investigação que permita identificar autores diretos e instituições eventualmente envolvidas. Só com a responsabilização plena será possível limpar o nome do Estado, construído pelo sacrifício dos seus mártires e heróis”, afirmou.
Segundo Jacinto Alves, as denúncias atingem a imagem e a integridade do Estado e, por isso, não podem ser respondidas apenas com medidas administrativas, como a recente suspensão dos jogos online aprovada pelo Conselho de Ministros.
“Consideramos que a resolução do Conselho de Ministros que suspende os jogos online não é suficiente para enfrentar a gravidade das denúncias feitas pelo senhor Ágio Pereira e também apresentadas pelo Escritório das Nações Unidas sobre Crime e Drogas. Exigimos que o Governo não encerre este caso, mas que o investigue”, destacou.
O grupo defende ainda que as instituições envolvidas devem passar por reformas estruturais, de modo a garantir que situações semelhantes não se repitam. O ex-prisioneiro político sublinha que estes episódios devem servir de lição para os titulares dos órgãos de soberania — Presidente da República, Governo, Parlamento Nacional e Tribunais — no sentido de assegurar que cargos vitais e estratégicos sejam sempre atribuídos a cidadãos de integridade, capacidade e patriotismo comprovados.
“Quando escolhem pessoas arbitrariamente, que não sabem distinguir o interesse do Estado do interesse privado, as consequências são exatamente as que estamos a ver”, alertou.
Jacinto Alves frisou ainda que, caso o Governo não avance com uma investigação profunda às denúncias apresentadas no manifesto de Ágio Pereira, o CUP continuará a exigir respostas até que os autores sejam identificados.
“Se o Estado não quer fazer o seu trabalho de investigação, outros grupos também estão conscientes da necessidade de continuar a exigir responsabilidade. Lutámos por esta terra e não vamos permitir que interesses de alguns destruam a imagem do país”, declarou, com voz firme.
Ágio Pereira denuncia infiltração de redes criminosas no Estado
Em setembro deste ano, o Ministro da Presidência do Conselho de Ministros, Ágio Pereira, publicou um manifesto no qual alerta para a alegada infiltração de redes de crime transnacional dentro das instituições do Estado timorense. O documento chega a afirmar que tais redes terão “comprado sistematicamente as nossas instituições, as nossas leis e procuram agora comprar o nosso Governo”.
Ágio destacou que um grupo de funcionários timorenses teria facilitado a entrada de sindicatos criminosos oriundos do Camboja, Malásia, Macau e Hong Kong, descrevendo-os como “corruptores com malas cheias de dinheiro sujo” que estariam a influenciar estruturas do Estado.
O ministro denuncia ainda que aviões privados teriam aterrado em aeroportos nacionais transportando 11 milhões de dólares em dinheiro físico, alegadamente isentos de inspeções por “decreto oficial”. O manifesto acrescenta que este montante representaria apenas uma parte de um total de 45 milhões de dólares que teriam sido entregues a indivíduos envolvidos com estes grupos.
Segundo Ágio Pereira, funcionários do aeroporto teriam testemunhado diretamente a entrada do dinheiro, enquanto determinados agentes públicos se teriam “gabado” de ganhos ilícitos e até planeado a repartição dos valores caso alcançassem cargos de maior influência.
O documento faz também referência a um alegado alerta emitido pelo UNODC, identificando Timor-Leste como alvo de infiltração estratégica do crime organizado transnacional. O manifesto menciona a existência de redes de jogo ilegal, lavagem de dinheiro, tráfico humano e centros de ciberfraude, alegadamente operando sob proteção institucional.
Ágio Pereira afirmou ainda que estes grupos criminosos não se limitaram a subornar funcionários, mas teriam “capturado” instituições fundamentais do Estado. Entre as situações denunciadas constam sabotagem da extradição de Arnolfo Teves, alegadamente por elementos criminosos dentro do sistema judicial; infiltração de órgãos reguladores, com emissão de licenças fraudulentas para empresas associadas ao crime organizado; criação de enclaves protegidos utilizados para tráfico de pessoas, roubo de identidades e fraudes em larga escala; colocação de operativos com credenciais diplomáticas falsas em níveis elevados da administração pública.
“Isto não é corrupção, isto é conquista através de investimento direto estrangeiro criminoso”, classificou.
Fundasaun Mahein alerta para lentidão e passividade do Governo
O diretor da FM, Nelson Belo, criticou a resposta do Governo de Timor-Leste às denúncias de infiltração do crime organizado em instituições do Estado, destacando a lentidão do sistema judicial e a falta de vontade política para atuar.
“Se fosse noutro país, haveria rapidamente detenções e arguidos de alto nível. Mas, no contexto de Timor-Leste, tudo fica apenas no discurso público”, afirmou.
Belo recordou o caso Ro Haksolok, que se arrasta há mais de dez anos, consumindo elevados recursos do Estado, sem que ninguém tenha sido responsabilizado. Para o diretor da FM, situações como esta evidenciam a falta de seriedade da liderança política atual. “O pior traidor é aquele que sabe que um ato é criminoso, mas ignora o caso”, criticou.
A FM alertou ainda para a perda de confiança dos cidadãos no Governo. “O crime organizado já se tornou sofisticado e preocupa toda a gente. No entanto, ninguém é responsabilizado. O povo e a comunidade internacional podem continuar a confiar pessoalmente em Xanana Gusmão, mas já não confiam no Governo, que ignora o caso do crime organizado”, afirmou.
Belo lamentou a passividade das instituições públicas, que observam os problemas sem agir. “Se Timor-Leste continuar a ser associado a crimes como este, o prestígio do país diminuirá aos olhos do mundo. Em vez de sermos reconhecidos positivamente após a adesão à ASEAN, estamos a ganhar destaque por motivos negativos, como o crescimento do iGaming”, criticou.
Outro ponto grave apontado pela FM é a alegada infiltração do crime organizado dentro das próprias instituições de segurança. “Se o próprio aparelho de segurança estiver comprometido, o país entra numa situação inimaginável”, alertou.
Belo criticou também recentes incidentes envolvendo lideranças da inteligência nacional, que terão transportado material sensível pela fronteira com a Indonésia. “Como podemos combater o crime organizado se a própria liderança dos serviços de inteligência transporta material proibido, como foguetes, para Timor-Leste?”, questionou. Para Belo, este episódio demonstra falhas graves no sistema de proteção de segredos de Estado, justificando uma reforma profunda das instituições, “de cima para baixo”.
O diretor sublinhou que o país vive um período de estagnação institucional e que é necessária uma renovação geracional. “As lideranças precisam de parar com o populismo e orientar-se para uma governação tecnocrática, baseada na lei, nas regras e na competência. Quem deve governar é quem tem capacidade, não quem mobiliza multidões dentro do partido”, disse.
FRETILIN exige investigação independente
Durante o debate do Orçamento Geral do Estado para 2026, a FRETILIN voltou a manifestar preocupação com os indícios apresentados pelo UNODC, que identifica Timor-Leste — e, em particular, a RAEOA — como um ponto de operação de redes criminosas internacionais. O partido considera que estas revelações representam uma ameaça séria à integridade do Estado e à reputação internacional do país.
O deputado Florentino Ximenes “Sinarai” questionou como entidades alegadamente ligadas a organizações mafiosas conseguiram obter licenças legais para operar no território nacional. Para o parlamentar, caso autoridades do Governo central ou da RAEOA tenham facilitado a entrada dessas redes, isso constituiria uma “traição aos princípios sagrados da libertação nacional”.
A FRETILIN classificou a situação como “um escândalo grave”, lembrando que a eventual participação de instituições públicas pode comprometer a imagem externa do país, dificultar o acesso a financiamento e desincentivar investidores. O partido alerta que a colaboração de titulares públicos com interesses mafiosos equivale a uma violação direta da confiança do povo e ameaça transformar Timor-Leste numa “nação percecionada como protetora de sindicatos criminosos”.
O partido exige que o Primeiro-Ministro, Xanana Gusmão, e o Presidente da República, José Ramos-Horta, “autorizem uma investigação independente e transparente, capaz de identificar os autores intelectuais, independentemente da sua influência política ou capacidade financeira”.
Florentino Ximenes acusou ainda que o licenciamento de jogos online em Oé-Cusse contou com coordenação direta da então liderança da RAEOA e do Governo central. Segundo o deputado, o relatório das Nações Unidas refere que pelo menos uma empresa instalada em Oé-Cusse operou em colaboração com um membro do Governo e está associada ao despacho n.º 097/MTA/10/2024, publicado no Jornal da República.
“Caso o Vice-Primeiro-Ministro considere que a divulgação destas informações prejudica a sua imagem, vou apresentar todas as evidências, incluindo o despacho oficial, para demonstrar que o Governo assumiu parte direta do processo de licenciamento”, declarou.
A Fretilin recordou também episódios recentes de movimentações financeiras de grande escala, incluindo os 42 milhões de dólares registados em Maubisse, e alegadas entradas de dinheiro através de voos privados, exigindo esclarecimentos. O partido pediu ainda maior transparência sobre o novo projeto de cartão eleitoral biométrico.
CNRT defende processo judicial e rejeita alarmismo político
Em resposta, o deputado Natalino dos Santos, do CNRT, defendeu que o caso de Oé-Cusse já está sob controlo do sistema judicial. O representante afirmou que seis indivíduos se encontram em prisão preventiva e que o Serviço de Investigação Criminal e a Polícia Científica continuam a identificar outros suspeitos antes de encaminhar o processo ao Ministério Público.
“Não se deve usar este assunto para causar alarmismo. O licenciamento de jogos online foi concedido pelo VIII Governo, e na altura o CNRT, como oposição, criticou a medida. No entanto, o Governo justificou que o objetivo era gerar receitas para o Estado”, afirmou.
O deputado lamentou que partidos que anteriormente autorizaram licenças para jogos online agora critiquem o Governo atual por decisões semelhantes. “Não devemos usar este assunto para ataques políticos. O povo vê que estamos apenas a acusar-nos mutuamente”, disse.
Natalino apelou a que o processo judicial decorra sem interferência política. “O processo judicial está a andar. Mas querem interferir com declarações políticas. Eu compreendo, porque faltam argumentos, mas isso não é problema”, afirmou.
Kalbuady Lay rejeita acusações sobre jogos online em Oé-Cusse
O Vice-Primeiro-Ministro e Ministro do Turismo e Ambiente, Francisco Kalbuady Lay, reagiu de forma contundente às acusações levantadas pela FRETILIN no Parlamento Nacional, negando qualquer ligação a esquemas de jogos online licenciados em Oé-Cusse e classificando as declarações como “difamação, injúria e calúnia públicas”.
“Se existe algum facto que me incrimine, então apresentem queixa no tribunal para que eu responda. Mas atacar o meu nome publicamente sem evidências é difamação”, declarou.
O ministro explicou que, enquanto titular da pasta do Turismo e Ambiente, apenas reportou e coordenou decisões com o Primeiro-Ministro e com o Conselho de Ministros, incluindo a determinação do atual Governo de encerrar todas as operações de jogos online licenciadas durante legislaturas anteriores.
Kalbuady Lay elogiou o ex-Ministro do Comércio, Lucas da Costa, que admitiu ter autorizado licenças relacionadas com jogos online, classificando a sua posição como uma decisão difícil, mas assumida com transparência. “Ele é um gentleman por reconhecer os factos”, disse.
O Vice-Primeiro-Ministro informou ainda que recebeu uma carta das Nações Unidas, através do UNODC, que por duas vezes manifestou intenção de se reunir com o Governo, sobretudo com o próprio Kalbuady Lay e com o Ministro do Interior, Francisco da Costa Guterres.
“Vocês falam da UNODC, mas eles já me enviaram duas cartas, pedindo reuniões para reforçar a cooperação. O funcionamento da UNODC é apenas aqui, o documento que foi divulgado é anónimo. Eles também não querem perder a sua credibilidade. Esta é a carta — e em dezembro iremos encontrar-nos”, afirmou.
Xanana Gusmão garante continuidade das investigações
O Primeiro-Ministro, Xanana Gusmão, afirmou que o processo de investigação sobre as redes criminosas em Timor-Leste continua em curso e que o Governo não tomou qualquer medida destinada a interromper ou condicionar o trabalho das autoridades competentes.
“Como o deputado Sinarai continua sempre a levantar a questão da máfia, quero dizer que demiti o senhor Rogério Lobato, de repente, por causa do problema em Oé-Cusse. Isso é algo que nem vocês sabiam”, declarou.
O Chefe do Governo explicou que, antes de surgir o caso de Oé-Cusse, o Executivo já tinha identificado vários crimes transnacionais, incluindo tráfico humano. Sublinhou, contudo, que, para garantir a segurança das agências responsáveis pelo trabalho investigativo, o Governo não interfere diretamente nas operações.
“Nós apenas resolvemos. Não é o Ministro da Presidência do Conselho de Ministros que prende alguém ou conduz as investigações. Há agências em quem confiamos, e eu valorizo muito o trabalho delas. Atuam de forma discreta e não posso expor publicamente que são elas que estão a investigar”, afirmou.
Xanana Gusmão destacou ainda que o Governo já adotou diversas medidas para combater atividades como o tráfico ilegal e o tráfico humano, reiterando o compromisso do Executivo em enfrentar a criminalidade transnacional de forma estruturada e contínua.


