Timor-Leste debate em “tetunguês” oportunidades de trabalho em língua portuguesa e identidade timorense

O reitor da Universidade da Paz, Adolmando Soares Amaral, lançou o debate sobre a língua portuguesa em Timor-Leste./Foto DR

Declarações polémicas do reitor da UNPAZ lançaram debate nas redes sociais sobre a importância do português no mercado de trabalho. Jovens que aprenderam a língua desmentem falta de oportunidades de trabalho. Já os especialistas lembram o contributo da língua portuguesa para o tétum e para a identidade timorense

“Sabemos português. O que vamos ser nesta nação, se não prepararmos condições? O pior é o Ministro [do Ensino Superior], que disse que devemos aprender a língua portuguesa, mas, depois, para onde vamos trabalhar? O Governo não abre nem 500 vagas anuais e não há empresas portuguesas”. As declarações, feitas num tétum recheado de empréstimos do português ou em “tetunguês”, como muitos chamam ao tétum-praça, são do reitor da Universidade da Paz (UNPAZ), Adolmando Soares Amaral, numa cerimónia de graduação.

O mercado de trabalho não precisa do português, defendeu o reitor. Os empregos, disse, estão nas lojas chinesas ou em países onde se fala inglês, indonésio e coreano. As afirmações motivaram discussões nas redes sociais e dividiram o público. Houve quem defendesse as afirmações do reitor e acrescentasse que o Governo devia acabar com a “dependência de línguas estrangeiras” ou investir apenas no tétum.

O português é realmente uma língua de poucas oportunidades em Timor-Leste? Rosa Tilman, professora e diretora do Instituto Nacional de Linguística, considera que as declarações são erradas e não se baseiam em dados. Segundo a professora, saber português abre portas, como mostra a alta taxa de empregabilidade dos alunos do departamento da Língua Portuguesa da Universidade Nacional de Timor Lorosa’e (UNTL).

Em declarações ao Diligente, o reitor da UNPAZ afirmou que, no seu discurso, apelou aos graduados para aprenderem línguas que os pudessem ajudar a encontrar emprego mais rapidamente, tendo em conta o elevado desemprego no país. Esclareceu que esta recomendação não tinha como objetivo proibir a aprendizagem do português, mas sim destacar que o caminho mais rápido para o mercado de trabalho, atualmente, é trabalhar em empresas que utilizam maioritariamente o inglês ou emigrar para o estrangeiro. Argumentou que os pais dos estudantes fizeram grandes sacrifícios financeiros até que estes se formassem, pelo que agora é o momento de retribuir esse esforço.

Sublinhou: “Nós aprendemos a língua portuguesa, mas não há empresas ou companhias portuguesas que investem em Timor-Leste. Por isso, enquanto preparamos as condições para aprender português e incentivamos os portugueses a estabelecerem indústrias que exijam esta língua, os graduados devem também aprender outras línguas que lhes facilitem o acesso ao emprego”.

Porém, o percurso profissional dos jovens com quem o Diligente falou contraria as declarações do reitor. Para Hornai da Silva Ramos, Marcelo Nunes, Paulo Henriques e Octaviano Gomes, o português representou oportunidades de estudo, trabalho e experiências internacionais.

Aos 26 anos, Hornai  é atualmente professor de Língua Portuguesa na UNTL.  Dois meses depois de se formar, conseguiu o primeiro emprego no colégio de Santo Inácio de Loiola, no Kasait. Mas, para o jovem, o português é mais do que um emprego: “Mudou a minha vida. Apaixonei-me pela literatura, pelos livros, e isso fez-me conhecer autores famosos portugueses”. Com a paixão, vieram os prémios de escrita criativa da Fundação Oriente e a oportunidade de frequentar um curso de língua e cultura na Universidade do Minho, em Portugal.

Paulo Henriques é formador de Tétum Jurídico no Centro de Formação Jurídica e Judiciária e professor convidado do Mestrado em Ensino do Português no Contexto de Timor-Leste da UNTL. Após o mestrado e doutoramento em Portugal, trabalhou como formador e tradutor no Ministério da Justiça e integrou o projeto FOCO.UNTL. “As pessoas podem dizer que a língua portuguesa não tem impacto socioeconómico, mas eu ganhei experiência, ganhei emprego e ganho bem. Tenho boas condições”.

Marcelo Nunes, tradutor e professor de português nas Instituições do Ensino Superior Privadas do Ministério do Ensino Superior, Ciência e Cultura (MESCC), conseguiu trabalho como professor ainda antes de se formar na UNTL em 2012. Desde então, trabalho nunca lhe faltou, nomeadamente em traduções simultâneas em várias conferências e seminários internacionais.

Sem frequentar o ensino superior, Octaviano Gomes, revisor linguístico de conteúdos informativos em português, mudou o rumo da sua vida profissional depois de frequentar um curso de Português para Jornalistas. “A língua foi importante na minha jornada profissional e pessoal. Quando aprofundei as minhas competências nesta língua, evoluí na minha carreira como jornalista, tradutor e revisor linguístico de português”, partilhou.

Aprender português abre portas no país e fora dele. Segundo o linguista britânico David Graddol, no estudo “English Next”, o inglês constitui-se como uma competência básica, tal como a matemática. O linguista argumenta, no entanto, que, num mundo globalizado, dominar o inglês não é suficiente. As empresas esperam mais dos candidatos, exigindo, além de um excelente domínio do inglês, proficiência em outras línguas. O domínio de outros idiomas, como o português, pode oferecer uma vantagem competitiva em mercados específicos.

Para a afirmação do português contribui a demografia. No mundo, 265 milhões de pessoas falam português e estimativas sugerem que o número de falantes poderá atingir os 380 milhões em 2050, ampliando o seu potencial económico. É a língua mais falada no hemisfério sul. Segundo o portal Ethnologe, o português foi a nona língua mais falada em 2022. No entanto, com base no número de falantes nativos, tornou-se na quinta língua mais falada.

Outra preocupação do reitor prende-se com a adesão de Timor-Leste à Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN): “E o que podemos ser no futuro? Se entramos para ASEAN, vamos ver o que vamos ser”, questiona Adolmando Amaral. Um dos objetivos de Timor-Leste na adesão a esta associação é o investimento no país, mas sabe-se que as empresas investem normalmente nas línguas do país onde fazem negócios.

Embora reconheça a importância do inglês para os negócios, um estudo da British Council aponta que a falta de competências linguísticas custa às empresas milhões anualmente devido a erros de comunicação e oportunidades perdidas. Companhias que negligenciam as línguas locais tendem a enfrentar desafios, como a dificuldade em construir confiança, mal-entendidos contratuais e uma baixa aceitação cultural.

Já as que aprendem as línguas dos países-alvo têm maior probabilidade de sucesso. Marcas como Coca-Cola ou a Nestlé localizam campanhas publicitárias e manuais técnicos nas línguas locais. A Harvard Business Review indica que organizações que adotam estratégias multilíngues alcançam mais clientes e têm maior retorno no investimento. Por isso, muitas companhias investem na tradução e formação linguística dos seus profissionais.

O tétum deveria ser a língua escolhida por eventuais empresas, mas ainda falta uma estrutura organizada de ensino do idioma. O português surge assim como opção, como explicou Rui Vaz, diretor de Serviços da Língua do Camões, Instituto da Cooperação e da Língua, nas IX Jornadas Pedagógicas da UNTL. “O português é hoje oferecido em mais de 80 países, no ensino superior e no ensino básico e secundário. Nos dez países da ASEAN, existe já uma capacidade instalada de ensino e aprendizagem da língua, que permitiria reduzir barreiras a este intercâmbio comercial, cultural e económico, a que Timor-Leste terá acesso”.

Segundo o diretor, o Camões tem atualmente leitorados na Tailândia, no Vietname, protocolos de apoio à docência na Indonésia e Malásia e protocolos em negociação em Singapura e nas Filipinas.

As línguas de trabalho e o casamento feliz entre as línguas oficiais

Focando-se no contexto timorense, o linguista timorense Benjamim Corte-Real critica os cidadãos e académicos que “carecem de alcance mental para compreender a visão e a política de curto, médio e longo prazos do Estado timorense”. Defende que o português, pela sua riqueza e estrutura, “abre caminho para facilitar a aprendizagem de mais línguas europeias e de qualquer outra língua”.

O professor sublinha ainda a “generosidade” da Constituição timorense pelo estatuto oficial que dá ao português e tétum, pela existência de línguas de trabalho, o indonésio e o inglês, mas também pela oferta de cursos de inglês e coreano, que permitem aos jovens se candidatarem a vagas de trabalho em outros países.

“O japonês, algum dia, poderá também ser importante para Timor-Leste, tanto quanto o chinês, o alemão, ou francês, o espanhol, dependendo das circunstâncias. Mas isso não é para minar ou corroer o lugar estruturante das nossas línguas oficiais”, sustenta. Destaca também: “Sendo nossa língua oficial, o português não pode ser equiparado com as línguas recorridas por circunstâncias económicas apenas, e que nada têm de profundo na história e na cultura de Timor-Leste”.

Não seria fácil ao reitor lançar críticas em tétum-praça à adoção do português como língua oficial sem o português. Os empréstimos da língua portuguesa são visíveis em tétum, no discurso académico, jornalístico ou científico, mas também no dia a dia dos timorenses.

No entanto, o reitor apontou que a Constituição estabelece o tétum e o português como línguas oficiais, mas defendeu que, no ensino, se deve dar prioridade à língua que facilite melhor a aprendizagem da ciência. Enfatizou: “É tempo de aprender ciência, não de gastar demasiado tempo a aprender uma língua.” Para ele, o foco deve estar no domínio de conteúdos científicos, e não na aprendizagem intensiva de uma língua como o português, que considerou dispensável nesse contexto.

Criticou ainda a ideia de que o português seja indispensável para a ciência, recordando que as grandes descobertas científicas foram feitas em grego e latim. Questionou ainda: “Nos países da Ásia, qual é a língua comum? Na Europa, em África ou no Médio Oriente? Mesmo entre os países de língua oficial portuguesa, não há inovações científicas ou tecnológicas significativas.”

Porém, em contradição com a sua defesa de que não se deve “gastar demasiado tempo a aprender uma língua”, o reitor afirmou que o Governo deve investir em formações intensivas em língua portuguesa. Justificou que é necessário garantir que, daqui a 50 anos, o português não continue a ser uma língua dominada apenas por uma minoria.

Vicente Paulino, professor da UNTL, não tem dúvidas sobre a ligação entre as duas línguas oficiais: “O que há é o dizer diferente, pensar diferente, construção sintática diferente, mas as duas línguas dão-se bem uma com a outra”.

“O desenvolvimento do tétum foi, é e será com o português, porque foi o português que, desde início, suportou o tétum no seu desenvolvimento, a partir do dicionário do tétum-português do Padre Sebastião, do padre Laranjeira e do padre Manuel Mendes”, afirmou.

No entanto, o português está presente no tétum sem que os timorenses se apercebam, diz Benjamim Corte-Real. “E porque nem sequer damos conta disso? Pois, é prova real da naturalidade da coexistência entre o português e o tétum e as línguas locais. O tétum-praça, de que hoje nos orgulhamos falar e escrever, é fruto da longa convivência das duas línguas”.

“A nossa língua tétum-praça é uma espécie única no mundo. Quando cientistas pelo mundo fora se dedicam a salvar espécies raras de flora e fauna em risco de extinção, nós, os timorenses, devemo-nos orgulhar do tétum-praça, que é a nossa típica espécie linguística na ecologia linguística mundial”, defende.

Quanto ao inglês, Corte-Real recorda Geoffrey Hull, segundo o qual, em 200 anos, este idioma acabou por “engolir” 100 línguas aborígenes, mas “os timorenses conviveram com o português durante 450 anos e nenhuma desapareceu, pelo contrário, surgiu, adicionalmente, a versão tétum-praça no panorama linguístico timorense”.

O linguista timorense considera ainda que o indonésio “descaracterizou” o tétum: “Um rasto visível da influência da língua indonésia em Timor é o fenómeno da descaracterização do nosso tétum-praça, falado com base no indonésio, ao nível da tonicidade, musicalidade, pronúncia”. No entanto, atualmente, “graças à reapropriação do português pelos timorenses, o tétum está, pouco a pouco, a regressar ao seu perfil típico de Timor-Leste”.

Contrariando o reitor, que questionou o facto de,  22 anos após a restauração da independência, “apenas um pequeno grupo de timorenses falar português”, Corte-Real acredita que a percentagem oficial de 40% da população timorense que domina o português não reflete a verdadeira dimensão da presença da língua em Timor-Leste: “Gostaria de ver a presença do português em Timor doutra maneira: através da implicitude do português no tétum, como um fator importante. Sob esse ângulo, o português já se expandiu mais do que os 40%”.

Uma identidade timorense que também se constrói em português

Outro debate que surgiu com as declarações do reitor foi o da identidade timorense. Para Vicente Paulino, o facto de a língua não ser utilizada no dia a dia dos timorenses não tem implicações para a sua validade como língua oficial: “A sua essência configura-se na nossa própria construção da realidade social e da produção de ideias. Um falante de tétumusa muitas expressões de língua portuguesa”.

O professor sublinha também que, apesar de ter sido a língua do colonizador, o português foi também historicamente a língua de “autodeterminação, de política diplomática e da clandestina e língua de correspondência entre os guerrilheiros no mato”, assim como de jornais da resistência como o Neon Metin, Funu, Nakroman e Lorico.

Recorrendo também à história, Benjamim Corte-Real, destaca que todos os partidos políticos  em 1974 (UDT, ASDT/ FRETILIN, APODETI, KOTA, TRABALHISTA), a seguir à Revolução dos Cravos, 25 de abril  de 1974, embora com ideários diferentes, convergiram num ponto – o lugar central da língua portuguesa para o território, inclusive a APODETI, que queria a integração na Indonésia”.

Para Vicente Paulino, a língua portuguesa distingue linguisticamente Timor-Leste de países vizinhos como a Indonésia ou a Austrália e permite a afirmação timorense no contexto político internacional.

A afirmação de Timor-Leste é, da mesma forma, uma questão central para Corte-Real: “Afirmação, porque queremos manter a nossa inconfundibilidade, ao colocarmo-nos no mundo: não somos indonésios, nem somos australianos”. E ainda afirmação através da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa “pelos laços especiais de privilégio que só a língua portuguesa confere, numa plataforma multinacional, intercontinental e transoceânica, de solidariedade entre povos que partilham uma história comum, de cooperação e para concertação de políticas globais e para nossa visibilidade na comunidade internacional”.

O debate em “tetunguês” sobre o português revela ainda desconhecimento em Timor-Leste do impacto real da língua portuguesa na comunicação em tétum, na identidade timorense ou do potencial da língua no mercado de trabalho. Mais do que uma herança, o português é outro meio de afirmação do país no mundo. Uma afirmação só possível quando se vê para além do imediato.

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