O projeto-piloto da agência independente de assistência estrangeira do governo dos EUA, Millennium Challenge Corporation (MCC), em coordenação com o governo de Timor-Leste, prevê a construção de uma rede centralizada de saneamento e um sistema de tratamento de águas residuais em Bebonuk, destinado a atender cerca de 10% das necessidades de tratamento de águas em Díli. Prevê-se que o restante deste projeto-piloto fique a cargo do Governo de Timor-Leste.
O projeto, que está planeado para ser implementado numa área densamente povoada de Díli, levantou sérias preocupações, incluindo a potencial expulsão da população local em Bebonuk e impactos ambientais e sociais significativos. O sucesso do projeto dependerá, em última análise, do equilíbrio entre a necessidade de melhorar as infraestruturas hídricas e a proteção do ambiente e dos direitos da população local. O caso destaca ainda a importância de processos legais, transparentes, imparciais e justos na aquisição de terrenos para projetos públicos, bem como a necessidade de mecanismos de compensação adequados.
O projeto-piloto da MCC representa uma interseção complexa de questões de desenvolvimento, económicas, legais e de justiça social. Esta iniciativa, que envolve um financiamento de 400 milhões de dólares, tem como objetivo fornecer água potável a cerca de 10% da população de Díli. Os restantes 90% do financiamento para a capital permanecem dependentes de uma futura intervenção do Governo timorense. No entanto, esta iniciativa levantou preocupações não só pela possibilidade de expulsão de quase 14.000 residentes em Bebonuk (segundo o Censo Habitacional de 2022), mas também pelos potenciais impactos ambientais negativos.
Este projeto-piloto pode estabelecer um precedente para futuras iniciativas governamentais e aquisições de terrenos na capital, sublinhando o delicado equilíbrio entre o desenvolvimento de infraestruturas e os direitos e bem-estar das comunidades locais afetadas. Embora o potencial do projeto para melhorar a saúde pública e o saneamento seja reconhecido, os custos ambientais e sociais são significativos. A deslocação da população da área de Bebonuk pode levar à perda irreparável de património cultural e dos laços comunitários que estão profundamente enraizados nas suas terras ancestrais.
As estações de tratamento de águas, como a proposta pela MCC, apresentam vários riscos ambientais. Um dos principais problemas é o potencial de escassez de água, devido aos elevados volumes necessários para o processo de tratamento. Como apenas uma pequena percentagem da água do mundo é adequada para consumo humano, este processo precisa de ser altamente eficiente para evitar agravar ainda mais a escassez.
Outro risco significativo é a descarga inadequada de águas residuais no ambiente, o que pode levar à contaminação do solo, das águas subterrâneas e das águas superficiais, provocando um efeito em cascata nos ecossistemas locais e na saúde humana. Além disso, o próprio funcionamento das estações pode contribuir para as emissões de gases com efeito de estufa, sendo estimado que estas infraestruturas sejam responsáveis por pelo menos 3% das emissões globais.
A utilização de produtos químicos, como o cloro, representa também um desafio. Embora essenciais para eliminar agentes patogénicos, se não forem geridos corretamente, podem afetar negativamente a vida aquática. A acumulação de lamas de esgoto, um subproduto do processo de tratamento, levanta ainda questões sobre a sua eliminação e o risco de contaminação ambiental.
Do ponto de vista operacional, há ainda a possibilidade de falhas ou interrupções no sistema, que podem resultar no lançamento de águas residuais não tratadas para o ambiente, com impactos imediatos e graves para a população local e para a biodiversidade. Além disso, a construção e operação das estações podem levar à destruição de habitats naturais, especialmente se estiverem localizadas em áreas ecológicas sensíveis. O ruído, os odores e a presença da infraestrutura podem também perturbar a vida selvagem e as comunidades locais.
É essencial que os responsáveis pelo projeto realizem avaliações rigorosas do impacto ambiental e mantenham um diálogo transparente com as comunidades afetadas. A implementação de práticas sustentáveis, como o uso de energias renováveis e uma gestão responsável dos resíduos, pode mitigar alguns destes riscos. Contudo, o sucesso do projeto dependerá de um equilíbrio entre o desenvolvimento e a proteção ambiental e social.
Os desafios ambientais são agravados pela falta de cooperação das autoridades governamentais, o que intensifica a tensão entre o desenvolvimento, a preservação e a justiça social. Projetos de infraestruturas desta magnitude devem envolver as comunidades locais, garantindo um processo transparente e equitativo, bem como compensações justas para os proprietários privados. É fundamental que os direitos constitucionais de propriedade privada sejam respeitados, para evitar conflitos prolongados relacionados com a terra.
A insatisfação com o projeto-piloto da MCC não se limita aos proprietários locais, mas estende-se também aos residentes. Uma das principais preocupações prende-se com a atuação do Governo, através do Ministério da Justiça, que terá violado os princípios e normas previstas na Lei da Expropriação por Utilidade Pública. Esta situação representa um desrespeito pelo direito fundamental à propriedade privada, consagrado na Constituição.
Compete ao Governo e às entidades envolvidas garantir que o interesse público é respeitado, assegurando a legalidade, a justiça, a igualdade, a proporcionalidade, a imparcialidade e a boa-fé. Os princípios e regras estabelecidos no processo de expropriação são fundamentais para a validade dos atos administrativos praticados pelo Ministério da Justiça, podendo afetar diretamente os direitos dos proprietários.
Como afirmado por um grupo significativo de proprietários locais, numa carta dirigida ao Ministro da Justiça, Sérgio Ornai, qualquer tentativa de validar atos administrativos inválidos representaria uma grave distorção do Estado de Direito, passível de ações legais no Tribunal Distrital de Díli.
Outro ponto de discórdia é o valor da compensação oferecida pelo Governo para as terras de Bebonuk, fixado em 90 dólares por metro quadrado, num mercado onde os preços podem atingir até 500 dólares por metro quadrado. Esta diferença gerou forte descontentamento e acusações de abuso de poder, levando a um impasse. O descontentamento foi ainda agravado pela falta de comunicação e de envolvimento dos proprietários no processo de tomada de decisões, o que criou uma perceção generalizada de privação de direitos.
Tais disputas e tensões realçam a importância absoluta de processos legais transparentes, imparciais e justos na aquisição de terrenos para projetos públicos, bem como a necessidade de mecanismos de compensação adequados que sejam percebidos como justos por todas as partes envolvidas. A resolução desta questão será crucial não só para o avanço deste projeto-piloto, mas também para manter a confiança da comunidade nas iniciativas de desenvolvimento do governo, uma vez que existe uma preocupação sobre o precedente que tais ações podem criar para futuros projetos governamentais e aquisições de terras.
Esta opinião é pessoal e não vincula a instituição em que o escritor representa.
Dionísio da Costa Babo Soares é académico e político timorense, doutorado em Antropologia pela Universidade Nacional da Austrália em 2003. Atualmente é o Representante Permanente de Timor-Leste junto da Organização das Nações Unidas. Foi ministro dos Negócios Estrangeiros de 2018 a 2020, para além de outros cargos importantes ao longo da sua carreira.