Timor-Leste, 51 anos depois do 25 de Abril: liberdade conquistada, democracia em construção

“O 25 de Abril foi um movimento de solidariedade. Só podemos ser verdadeiramente felizes quando todos o forem”/Foto:DR

Cinquenta e um anos após a Revolução dos Cravos, a luta pela liberdade e pela democracia continua viva em Timor-Leste. À memória do 25 de Abril juntam-se hoje os desafios de construir uma sociedade mais justa, inclusiva e participativa, onde os ideais de autodeterminação, igualdade e solidariedade possam ser plenamente concretizados.

Hoje, 25 de Abril, assinala-se o 51.º aniversário da Revolução dos Cravos, que pôs fim à ditadura em Portugal e acendeu, em vários cantos do mundo, a esperança de que a liberdade era possível.

Com a revolução de 1974, o povo português saiu das sombras para a luz, unindo-se contra o regime de Salazar que, durante décadas, reprimiu liberdades, impôs um clima de medo e silenciou vozes críticas. Este momento histórico marcou o início de um novo ciclo de democracia, liberdade e igualdade em Portugal, mas os seus efeitos fizeram-se sentir também nas antigas colónias, ao abrir caminho para que as nações sob domínio colonial — entre elas Timor Português (atual Timor-Leste) — pudessem finalmente escolher o seu próprio rumo.

Para Timor-Leste, a Revolução dos Cravos representou mais do que uma mudança em Lisboa: foi o ponto de partida para o surgimento dos primeiros partidos políticos timorenses e para o despertar de uma consciência nacionalista. A ideia de autodeterminação deixou de ser apenas uma aspiração distante e ganhou espaço no debate político e social.

Hoje, mais de duas décadas depois da restauração da independência timorense, e 51 anos após o 25 de Abril português, impõe-se refletir sobre o presente: que liberdade se vive atualmente? Em que ponto está a democracia em Timor-Leste? E que desafios persistem para garantir uma sociedade mais justa, livre e inclusiva?

25 de Abril e o despertar da consciência nacionalista em Timor-Leste

Para Domingos Pinto Gabriel, conhecido como Berliku Lian Timur, a Revolução dos Cravos foi o “primeiro sopro de esperança para o povo timorense”. Hoje com 70 anos, lembra bem o impacto que teve, em Timor, a notícia da queda da ditadura em Portugal. “Foi nesse momento que se abriu o caminho para que Timor pudesse escolher o seu próprio destino e surgissem os primeiros partidos políticos.”

Na altura, a política ainda era um universo desconhecido para a maioria dos timorenses, mas o fim do regime salazarista trouxe consigo novas ideias. As pessoas começaram a sentir que era possível sair da escuridão para a luz. Com o anúncio de que Portugal reconhecia a liberdade das suas províncias ultramarinas, muitos timorenses passaram a defender a luta pela independência. “Começou-se a apoiar a FRETILIN, embora também houvesse quem quisesse manter a ligação com Portugal”, salientou.

A queda da ditadura foi acolhida com entusiasmo, mas, segundo Berliku, o espírito de resistência já existia antes da revolução. Já havia timorenses que atuavam na clandestinidade, com propaganda anticolonialista. “Fazíamos tudo com muito cuidado, porque os agentes da inteligência portuguesa observavam-nos constantemente. Não havia liberdade de expressão.”

Recorda, por exemplo, as celebrações do 10 de Junho, no tempo da administração portuguesa, que decorriam no local onde hoje se ergue o Parlamento Nacional. “Nesses dias, timorenses como o saudoso Francisco Xavier faziam discursos em tétum, desafiando a vigilância colonial e tentando despertar a curiosidade política da população.”

O despertar coletivo intensificou-se com o regresso de estudantes timorenses que tinham estudado em Portugal e que começaram a partilhar ideias sobre liberdade e democracia. “Vieram abrir-nos os olhos. Mostraram que o povo estava a ser explorado e oprimido. Quer quiséssemos quer não, era preciso encontrar uma forma de sair desse sistema. Foi aí que muitos começaram a compor músicas e poesia revolucionária.”

“A Revolução dos Cravos inspirou-nos. Mostrou-nos que era possível libertar-nos da opressão e da exploração. Sentimos logo esse vento de liberdade — embora, pouco depois, tenhamos enfrentado a invasão indonésia.”

Berliku relembra que, após várias conversas e consensualizações, o conceito de autodeterminação começou a ganhar força entre a população. “Era uma palavra nova para nós, mas abraçámo-la. Cada partido realizava campanhas em locais diferentes, a explicar os seus ideais ao povo.”

O antigo delegado da FRETILIN sublinha o papel dos cinco estudantes timorenses que semearam o nacionalismo, apesar de mais tarde terem sido acusados de comunismo ou marxismo. “O certo é que tocaram o coração de muita gente. Infelizmente, também houve radicalismos — companheiros de partidos diferentes passaram a ser vistos como inimigos”, contou.

Em Baucau, por exemplo, os da UDT faziam campanha e os da FRETILIN viam-nos como adversários a combater. “Diziam que, se os ‘samodok’ aparecessem, era preciso bater-lhes”, conta Berliku, usando a expressão local para se referir aos militantes da UDT.

Recorda ainda que, antes do golpe de 11 de agosto de 1975, era delegado da FRETILIN em Venilale. Nessa altura, foi capturado por membros da UDT em Wemasse e levado para Baucau, onde foi castigado com outros companheiros, como Kilik Waigae e Marito Reis. “Felizmente, acabaram por nos libertar”, lembra.

Apesar das divisões, das perseguições e da violência, a semente da liberdade tinha sido lançada. “A Revolução dos Cravos inspirou-nos. Mostrou-nos que era possível libertar-nos da opressão e da exploração. Sentimos logo esse vento de liberdade — embora, pouco depois, tenhamos enfrentado a invasão indonésia.”

Para Berliku, a história ainda está viva — e o espírito de Abril não deve ser apenas lembrado, mas reinventado. “A esperança nunca morreu. E por isso, mais tarde, conquistámos a nossa independência. Hoje, cabe-nos continuar a lutar. Não com armas, mas com ideias.”

A mesma sensação de despertar percorreu também os corredores das escolas timorenses. Josefina Moniz, hoje com 68 anos, era estudante do segundo ano do curso de comércio na então Escola Clínica Professor Silva Cunha, atual Universidade Nacional Timor Lorosa’e, quando ouviu as primeiras notícias sobre a Revolução dos Cravos. Recorda esse momento como um ponto de viragem, que trouxe consigo uma nova consciência sobre o papel de Timor-Leste no processo de descolonização.

“Na altura, sabíamos pouco sobre política ou democracia, mas os estudantes mais velhos, do terceiro ano ou do Liceu, já tinham algum conhecimento e começaram a organizar grupos com os nacionalistas.” Foram esses irmãos mais velhos que lhes explicaram que Portugal tinha dado às suas colónias a liberdade para escolherem o seu caminho. “Começámos a reunir-nos, e eles ajudaram-nos a perceber o que significavam a liberdade, a democracia e como deveria ser o futuro de Timor”, recorda.

Dessas reuniões nasceu a União dos Estudantes Timorenses (UNETIM), organização que viria a ter um papel central na luta pela autodeterminação, com membros como Nino Konis Santana e Francisco Calçona. Em paralelo, surgiu também a Liga dos Estudantes para a Valorização de Timor (LESVAT). Mas nem tudo foi consensual: essas duas organizações acabaram por entrar em conflito devido a divergências de pensamento e de visão sobre o futuro do país.

Para ela, a Revolução dos Cravos foi como uma luz ao fundo do túnel. “Sentimos que nos mostrava o caminho, que abria o pensamento para fazermos algo de bom para a nossa nação. E foi esse momento histórico”, diz, “que fez surgir a ideia de que era possível fazer política livremente e com o povo.”

Segundo Josefina, os estudantes timorenses que estudavam em Portugal — entre eles Vicente Reis Sahe, Rosa Muki Bonaparte, Hamis Basarewan, Roque Rodrigues e César Maulaka — também desempenharam um papel essencial ao trazer novas ideias e experiências políticas. A troca de reflexões com estes colegas contribuiu para um aprofundamento do debate sobre democracia, soberania e futuro.

A partir daí, os jovens começaram não só a falar sobre o sistema democrático, mas também a agir. Iniciaram campanhas de alfabetização, projetos de abastecimento de água e produção de tijolos para as comunidades. O povo ainda vivia na escuridão, sem acesso a conhecimento. “Dedicámo-nos tanto a essas atividades que deixámos de ir às aulas”, recorda Josefina, com uma ponta de orgulho.

Para ela, a Revolução dos Cravos foi como uma luz ao fundo do túnel. “Sentimos que nos mostrava o caminho, que abria o pensamento para fazermos algo de bom para a nossa nação. E foi esse momento histórico”, diz, “que fez surgir a ideia de que era possível fazer política livremente e com o povo.”

Álvaro Rosário Vasconcelos também partilha da memória viva da Revolução dos Cravos, sublinhando que ela surgiu como resposta às muitas injustiças cometidas sob o regime ditatorial. “Foi através da Revolução dos Cravos que as mulheres começaram a libertar-se. Antes disso, eram muito reprimidas. Os homens não as viam como parceiras, mas como criadas.”

Lembra que, antes de 1974, tanto o povo português como o de Timor viviam sob exploração e violência. “Nas escolas, quando havia visitas de autoridades, os estudantes eram obrigados a fazer reverência. Não podiam levantar-se e, por vezes, tinham de se deitar no chão formando a letra ‘S’ de Salazar. Isso era apresentado como homenagem, mas era um sofrimento enorme, deitar-se na terra húmida apenas para agradar o regime.”

Para além da repressão simbólica e psicológica, a opressão tinha expressão concreta na vida dos timorenses. “Portugal obrigava-nos a pagar impostos e a prestar serviço obrigatório. Em Ermera, batiam nas pessoas ao lado da bandeira, como se fossem criminosos — mas era apenas por desobedecerem a uma ordem qualquer da ditadura.”

Com a queda do regime, a resposta popular foi imediata. Álvaro lembra que, quando o salazarismo caiu, todos ficaram contentes. “Muitos estudantes de Ermera que estudavam em Díli deixaram crescer o cabelo, pintaram-no e gritavam ´hei, hei, hoje é liberdade´”.

No entanto, apesar do fim da ditadura e do reconhecimento do direito à autodeterminação, Timor-Leste enfrentaria ainda um longo caminho até à independência. Álvaro considera que, apesar da concessão de liberdade por parte de Portugal, Timor não conseguiu sentir verdadeiramente essa liberdade, devido ao conflito que rapidamente surgiu entre os dois principais partidos da época: a UDT e a FRETILIN.

Ambas as forças tentaram formar uma coligação para preparar a independência, mas a aliança durou pouco. No dia 11 de agosto, a UDT lançou um golpe de Estado, acusando a FRETILIN de comunismo. A resposta não tardou, e acabou por eclodir a guerra civil.

Álvaro, que na altura acabara de concluir a quarta classe e se preparava para continuar os estudos em Díli, viu os seus planos interrompidos. “Não consegui estudar. Em vez de gozar a liberdade, enfrentei a guerra. Vivemos no meio do conflito até alcançarmos a independência em 1999.”

“O 25 de Abril foi um movimento de solidariedade. Só podemos ser verdadeiramente felizes quando todos o forem”

A mesa-redonda “Democracia em Debate: como fortalecer a democracia?”, organizada pela Embaixada de Portugal em Díli para assinalar o 25 de Abril/Foto: Diligente

Portugal, Timor-Leste e os valores que continuam a unir duas democracias

A Revolução dos Cravos continua a ecoar, 51 anos depois, não apenas em Portugal, mas também em Timor-Leste. Tanto a embaixadora de Portugal em Díli, Manuela Bairos, como a deputada da Assembleia da República Palmira Maciel, em visita oficial ao país, sublinharam a importância de manter viva a memória de Abril — e de continuar a construir, nos dois países, sociedades mais livres, justas e solidárias.

A embaixadora recordou que o 25 de Abril não apenas instaurou a democracia em Portugal, mas também abriu caminho à autodeterminação das antigas colónias. “A partir dessa revolução, deixámos de ter uma relação colonial e passámos a ser países irmãos, independentes, ligados por laços históricos mas com igualdade entre si”, afirmou. Sublinhou que é essencial assinalar esta data em Timor-Leste, porque a democracia “nunca está garantida — é preciso defendê-la e fortalecê-la todos os dias”.

Na sua perspetiva, antes de 1974, Portugal era um país profundamente desigual. “Havia poucos ricos e muitos pobres. Cerca de 35% da população era analfabeta. A revolução permitiu construir um país com mais igualdade de oportunidades, acesso à educação e à saúde. Foi uma revolução política, mas também social.” A dignidade humana, disse, deve ser o valor central da democracia: garantir o direito à habitação, ao trabalho, à saúde e à educação para todos.

Palmira Maciel partilha essa visão. Viveu a revolução como um momento de transformação. “Tal como os timorenses viveram recentemente o seu próprio processo de conquista da liberdade, também nós portugueses passámos por um tempo de sofrimento, de luta e de esperança.” Para a deputada, estar em Timor-Leste nesta data é “um privilégio e uma alegria”, especialmente por reconhecer que o 25 de Abril também representou muito para os timorenses.

A deputada destacou os valores da igualdade, solidariedade e cooperação como fundamentais e alerta para o risco de esquecimento histórico pelas novas gerações. “É essencial que o espírito de Abril continue a atravessar gerações. Há uma preocupação real de que se perca a memória do que aconteceu em 1974.”

Ambas abordaram também os desafios atuais da democracia. A embaixadora destacou o papel da juventude timorense na luta pela independência, sublinhando que “o inconformismo da juventude foi uma das armas mais poderosas da resistência”. Já Palmira Maciel chamou a atenção para o crescimento dos populismos e da desinformação, a corrupção e a manipulação do voto como ameaças que precisam de ser combatidas.

Quanto à liberdade de expressão, ambas reconhecem avanços, mas alertam para a necessidade de equilíbrio. A embaixadora acredita que, uma vez conquistada, essa liberdade já não tem retorno, mas admite que em algumas situações pode haver exageros. A deputada defende que “é preciso saber até onde vai a nossa liberdade, sem prejudicar a liberdade do outro”.

Por fim, quando questionadas sobre os valores que mais gostariam de ver reforçados, ambas destacaram a solidariedade. “O 25 de Abril foi um movimento de solidariedade. Só podemos ser verdadeiramente felizes quando todos o forem”, afirmou a embaixadora. Já Palmira Maciel acrescentou que a liberdade — em todas as suas formas — continua a ser o maior legado da revolução: “É a liberdade que nos permite viver com mais igualdade, com mais justiça e com abertura ao mundo.”

“Temos liberdade de expressão e liberdade de imprensa — mas, como dizia Nelson Mandela, democracia com fome não é democracia.” E recorda: cerca de 47% das crianças timorenses vivem com malnutrição, mais de 40% da população está abaixo da linha da pobreza e o desemprego continua elevado.

Liberdade sem justiça social: os alertas de quem vigia a democracia

Também a partir das instituições timorenses, há quem reconheça os avanços conquistados desde a independência, mas alerte para os perigos da estagnação. O Provedor dos Direitos Humanos e Justiça, Virgílio Guterres, defende que, mais do que uma nova revolução política, Timor-Leste precisa de uma revolução de mentalidades.

O Provedor dos Direitos Humanos e Justiça, Virgílio Guterres, defende que a maior herança do 25 de Abril, tanto em Portugal como em Timor-Leste, foi a liberdade. Mas sublinha que, no contexto timorense, essa liberdade ainda não se traduz em plena justiça social. “Temos liberdade de expressão e liberdade de imprensa — mas, como dizia Nelson Mandela, democracia com fome não é democracia.” E recorda: cerca de 47% das crianças timorenses vivem com malnutrição, mais de 40% da população está abaixo da linha da pobreza e o desemprego continua elevado.

O Provedor considera que Timor-Leste seguiu um percurso histórico diferente dos restantes países da CPLP. “Os nossos irmãos africanos alcançaram a independência logo após a Revolução dos Cravos. Timor-Leste teve de enfrentar mais 25 anos de ocupação.” E, embora admita avanços significativos, considera que é necessária “uma revolução da mentalidade”, e não uma revolução política como a de 1974.

Na sua perspetiva, muitos timorenses ainda não reconhecem verdadeiramente que vivem num Estado independente. “Ainda há quem pense como se estivéssemos sob administração portuguesa ou como a 27.ª província da Indonésia.” O exemplo vem das autoridades locais: “Alguns administradores municipais comportam-se como se fossem chefes de conselho no tempo colonial. É urgente mudar esse paradigma.”

A revolução necessária, defende, é interna — uma mudança de atitude e de entendimento sobre o que significa viver em democracia. “A democracia não é apenas liberdade para concordar, mas também liberdade para discordar. Não podemos forçar ninguém a pensar como nós.” O Estado, acrescenta, tem a responsabilidade de garantir essa liberdade, nomeadamente em matérias sensíveis como a religião. “A Constituição timorense é laica. Garante o direito de entrar, sair ou não professar qualquer religião. Mas, na prática, ainda há uma mentalidade herdada dos períodos colonial e indonésio, em que a religião era imposta.”

Questionado sobre que tipo de liberdade ainda falta alcançar no país, Virgílio Guterres aponta a ausência de uma consciência coletiva para aceitar as diferenças. “A liberdade inclui aceitar o outro — seja ele de outra religião, seja ele ateu, seja ele da comunidade LGBTQIA+. Sem isso, não há democracia plena.”

Sobre a vivência democrática atual, reconhece avanços, mas também limitações. Destaca positivamente o facto de não haver “agências secretas a vigiar os cidadãos”, mas critica as intervenções excessivas da polícia em manifestações estudantis ou de professores. Sublinha ainda que os debates no Parlamento timorense continuam distantes de um verdadeiro espírito democrático: “Falta pluralismo, debate académico e diversidade de ideias.”

Para o Provedor, a liberdade de expressão e de imprensa continuam a ser as bases da democracia. Citando Kofi Annan, antigo Secretário-Geral das Nações Unidas, lembra que “a liberdade de expressão é o coração da democracia” e “a liberdade de imprensa é o seu respiro”. Mas para que essas liberdades façam sentido, alerta, é preciso que todos possam aceder a elas.

Entre os grupos que continuam mais excluídos, aponta a comunidade LGBTQIA+ como um dos mais vulneráveis. “É um tema delicado, mas é necessário dizê-lo: este grupo continua a ser alvo de discriminação dentro das famílias, na sociedade e nas políticas públicas.” Refere também as pessoas com deficiência e as minorias religiosas, lembrando incidentes recentes em Maliana e Bariqui, onde rituais de fé foram interrompidos ou ameaçados por jovens de outras religiões.

Se pudesse escolher uma palavra para escrever num cartaz de uma nova revolução, não hesita: “Liberdade. Porque é o embrião de todos os direitos humanos. Sem liberdade, ninguém consegue garantir o acesso à saúde, à educação ou sequer à própria sobrevivência.”

“Com quase metade da população a viver abaixo da linha da pobreza, ainda estamos longe de uma verdadeira igualdade democrática”

Democracia em debate: entre fragilidades, desigualdades e novos perigos

Durante a mesa-redonda “Democracia em Debate: como fortalecer a democracia?”, organizada pela Embaixada de Portugal em Díli para assinalar o 25 de Abril, vários oradores refletiram sobre o estado atual da democracia em Timor-Leste, os riscos que enfrenta e os caminhos para o seu fortalecimento.

Lourdes Bessa, diplomata e antiga embaixadora de Timor-Leste em Genebra, sublinhou que “a democracia tem de ser uma luta constante e diária”. Advertiu que o retrocesso é possível e talvez mais fácil do que se imagina, lembrando que a paz, a justiça e a inclusão são valores que ainda estão a ser construídos. Apontou que o país enfrenta grandes desafios na educação e na saúde, considerados fundamentais para garantir a participação de todos na vida democrática.

Abrão Saldanha, ex-secretário de Estado da Juventude e Desporto, afirmou que, embora a democracia tenha dificuldades, “não existe um sistema melhor”. Sublinhou que o desenvolvimento da democracia depende diretamente da qualidade da educação e da existência de uma classe média forte — algo que ainda falta em Timor-Leste. Na sua opinião, o país passou de um “analfabetismo estrutural” para um “analfabetismo funcional”, em que muitos sabem ler e contar, mas não conseguem aplicar criticamente o conhecimento. “Nem todos os cidadãos têm acesso à mesma educação. Quem tem mais dinheiro garante escolas de qualidade para os filhos, os outros ficam para trás”, lamentou.

Apontou também a instabilidade política como um risco permanente. “Cada novo governo muda tudo: medidas, planos, políticas. Isso desacelera o desenvolvimento”, afirmou, lembrando que, num país onde 42% da população vive abaixo da linha da pobreza, o voto acaba muitas vezes por ser influenciado por necessidades básicas imediatas.

Fidelis Magalhães, presidente do Instituto de Política e Associações Internacionais e ex-ministro da Presidência do Conselho de Ministros, reforçou que a democracia é uma “condição sine qua non para o desenvolvimento”. Alertou para a importância de proteger as minorias, sublinhando que “sem democracia, a maioria teria tudo e prejudicaria as minorias”, e acrescentou que são frequentemente as minorias que consciencializam a sociedade.

Fidelis destacou ainda os riscos representados pelo populismo e pela desinformação, fenómenos que também ameaçam a democracia timorense. Defendeu que é preciso romper com os tabus ainda presentes na sociedade timorense e rejeitou práticas de discriminação com base no género, na religião ou na idade. “Temos de aceitar que figuras públicas estão sujeitas a críticas. E temos de combater o populismo que ameaça infiltrar-se em Timor-Leste”, declarou.

Sobre o papel da educação, Lourdes Bessa lembrou que, durante o VIII Governo, foi iniciado um programa de formação de professores e de promoção de uma educação inclusiva. Contudo, lamentou que muitos alunos ainda tenham uma aprendizagem baseada apenas na cópia, sem capacidade crítica. “Queremos uma educação que desenvolva o raciocínio dos jovens, não uma educação de repetição, onde até os erros dos professores são copiados”, defendeu. Para a diplomata, combater a pobreza é igualmente fundamental para consolidar a democracia e evitar o aumento das desigualdades.

Apesar das fragilidades, Lourdes destacou também a capacidade de unidade demonstrada pelos timorenses em momentos cruciais, reforçando que a solidariedade é uma força histórica do país.

Durante o debate, uma participante do público recordou uma declaração polémica de um antigo primeiro-ministro, segundo o qual “a democracia em Timor-Leste é apenas obedecer a uma pessoa”. Confrontados com esta visão, os oradores defenderam a necessidade de mudar mentalidades. Fidelis Magalhães respondeu que é urgente abandonar a lógica de quem lutou mais ou menos no passado, centrando o debate na qualidade da democracia atual. “Temos de escolher bem os nossos deputados e ministros. A qualidade da democracia começa aí”, afirmou.

Abrão Saldanha alertou para os riscos de alterações à lei da organização judicial, nomeadamente a possibilidade de nomeação direta do Presidente do Tribunal de Recurso, e manifestou preocupação em relação ao funcionamento da Comissão Anticorrupção (CAC). Considerou que estas mudanças podem comprometer a independência das instituições e ameaçar o Estado de direito.

Para Abrão, a democracia só funcionará plenamente em Timor-Leste quando for combatida a profunda desigualdade social. “Com quase metade da população a viver abaixo da linha da pobreza, ainda estamos longe de uma verdadeira igualdade democrática”, concluiu.

“Os meios de comunicação são frequentemente privatizados e politizados, o que dificulta a amplificação da voz do povo.”

Democracia em Timor-Leste: uma promessa ainda por cumprir?

Josefina Moniz considera que, embora Timor-Leste esteja formalmente livre do domínio colonial, o povo ainda não vive plenamente em liberdade. “Muitos timorenses continuam a enfrentar opressão por parte dos governantes. A Constituição garante o direito à liberdade de expressão e de pensamento, mas, na prática, os grupos de ativistas que organizam manifestações enfrentam detenções e até torturas por parte da polícia.” Para Josefina, isto demonstra que o Estado continua a reprimir e a proibir os cidadãos de se expressarem livremente — uma nova forma de ditadura.

Ela Variana, jovem ativista do Movimento Progressista, partilha da mesma visão crítica. Lembra que a Revolução dos Cravos foi uma luta pacífica pelos direitos civis, políticos e pela liberdade de expressão, ideais que inspiraram os nacionalistas timorenses. “Contudo, passadas mais de duas décadas de independência, ainda há fortes limitações às liberdades fundamentais.”

Variana considera que a situação atual configura uma forma de neocolonialismo interno. Na sua opinião, a liberdade de expressão deveria permitir ao povo defender o que está certo e denunciar as injustiças, mas quem se atreve a fazê-lo ainda é ameaçado e punido, perpetuando a miséria e o medo.

Constantino de Jesus, membro da Organização Nacional da Libertação Maubere, avalia que a democracia em Timor-Leste tem falhado, especialmente na última década. Denuncia a violação sistemática do direito à informação por parte dos serviços públicos, exemplificando com os hospitais, onde os pacientes aguardam horas sem qualquer explicação. “A democracia não se resume às eleições periódicas, mas exige diálogo permanente entre os cidadãos e os servidores públicos.”

Para Constantino, o problema é estrutural. “A maioria dos funcionários públicos não sente que serve a sociedade, mas apenas que cumpre uma função para garantir o salário. Assim, a democracia em Timor continua a ser mais formal do que real”, lamentou.

Ela Variana reforça que, apesar de a democracia existir de forma institucional, falta concretizar os seus valores fundamentais: fraternidade, prosperidade, igualdade, justiça e paz. “O poder político e económico permanece concentrado nas mãos de uma elite, criando uma democracia restrita às classes dominantes, enquanto a maioria da população continua privada dos seus direitos.”

Segundo a jovem ativista, os jovens precisam de aprender com a história para reafirmarem a sua posição na luta pela liberdade. No entanto, critica a educação atual, considerando que não preparou os estudantes para se solidarizarem com a classe explorada. Defende a criação de uma educação popular gratuita e de um currículo emancipador, capaz de formar uma vanguarda alternativa para o povo Maubere.

Fiche Piedade, da organização Rosas Mean, acrescenta que a democracia timorense existe, mas não funciona plenamente, “pois o povo não tem poder real para controlar as decisões do governo.” Considera que a verdadeira democracia é aquela onde o povo tem o direito de criticar os governantes e controlar as suas ações, e não apenas participar nas eleições de cinco em cinco anos.

Fiche assinala ainda que, apesar do estatuto democrático de Timor-Leste, a pobreza e a miséria continuam a afetar grande parte da população, “enquanto uma minoria desfruta dos benefícios da independência.” Sublinha também a exclusão sistemática de vários grupos, incluindo mulheres e a comunidade LGBTQIA+, que permanecem afastados da democracia participativa e das decisões políticas.

Segundo Fiche, a liberdade de expressão continua limitada. “Os meios de comunicação são frequentemente privatizados e politizados, o que dificulta a amplificação da voz do povo.” Critica ainda o medo que impera nas universidades, onde muitos estudantes evitam expressar as suas opiniões para não serem punidos por reitores e estruturas institucionais.

A ativista denuncia que muitas organizações da sociedade civil, dominadas por homens e dependentes de subsídios do governo, também falharam na sua missão de defesa dos direitos e da justiça social. “O caminho para a verdadeira democracia passa por investir no setor produtivo, garantir educação e saúde de qualidade e construir uma economia que ofereça futuro digno para todos”, frisou.

“As mulheres continuam a ser desencorajadas de participar na política e nos assuntos públicos, sendo remetidas para papéis tradicionais ligados apenas às tarefas domésticas”, denunciou.

Liberdade de expressão e inclusão: os desafios de uma democracia jovem

Ela Variana denuncia que, em Timor-Leste, a liberdade de expressão ainda enfrenta sérias limitações. Apesar de formalmente garantida na Constituição, na prática, quem se manifesta ou denuncia injustiças arrisca enfrentar ameaças, perseguições ou violência. Como jovem ativista, relata ter sido intimidada pela polícia em várias ocasiões, quando participava em manifestações pacíficas.

A jovem aponta também o machismo como um dos grandes entraves à democracia plena. “As mulheres continuam a ser desencorajadas de participar na política e nos assuntos públicos, sendo remetidas para papéis tradicionais ligados apenas às tarefas domésticas”, denunciou. Para ela, esta exclusão revela a fragilidade da democracia timorense, que ainda não conseguiu romper com o sistema patriarcal.

Além das mulheres, Variana chama atenção para a situação da comunidade LGBTQIA+, que continua a ser alvo de discriminação e estigmatização social. Na sua opinião, uma verdadeira democracia só existe se incluir e respeitar todos os cidadãos, independentemente da sua identidade ou orientação.

Constantino de Jesus reforça esta perspetiva crítica, alertando para as práticas hegemónicas que continuam a limitar a liberdade de expressão. “Existe uma tentativa organizada de proteger figuras históricas e impedir que novas ideias e vozes alternativas possam florescer. Criticar líderes políticos ou figuras associadas à resistência timorense continua a ser tabu, resultando muitas vezes em ataques pessoais e ameaças”.

Constantino sublinha que a sociedade timorense vive uma “espécie de autoritarismo simbólico”, em que a liberdade de pensamento é travada em nome da preservação de legados do passado. “É urgente uma nova revolução, não armada, mas educativa: com lápis e caderno, para formar gerações mais críticas, conscientes da sua história e da necessidade de construir um futuro diferente.”

Critica ainda o sistema educativo timorense, que classifica como “demasiado conservador e incapaz de promover uma consciência crítica entre os estudantes”. Patriotismo e nacionalismo, diz, transformaram-se em meros slogans, sem ligação profunda à realidade social. “Por isso, apelo a que os intelectuais progressistas desempenhem um papel mais ativo na formação da cidadania.”

Álvaro Rosário Vasconcelos também reconhece avanços, mas alerta para retrocessos graves na prática democrática. Sublinha que, embora atualmente se possa criticar abertamente o presidente e o primeiro-ministro — algo impensável durante o tempo da ditadura —, a moralidade ainda está ausente da vida pública.

Álvaro cita como exemplo a morte recente de um jovem detido pela polícia, que acabou por morrer na prisão. “Este caso não reflete uma democracia verdadeira, mas uma nova forma de ditadura. A prisão deveria ser um local de reflexão e de reabilitação, e não um espaço onde se tira a vida às pessoas”, realçou.

Apela à juventude para que use a liberdade de forma consciente e responsável. Defende que, apesar das dificuldades, os jovens devem aproveitar a abertura democrática para participar ativamente na vida pública, exigindo mudanças reais.

Constantino sublinha que a sociedade timorense vive uma “espécie de autoritarismo simbólico”, em que a liberdade de pensamento é travada em nome da preservação de legados do passado.

Antonino de Limas, vice-presidente da associação HAK, denuncia que a liberdade de reunião também tem sido restringida em Timor-Leste. Critica a proibição de atividades de grupos de artes marciais e rituais tradicionais, especialmente em períodos eleitorais, considerando que estas limitações violam direitos garantidos constitucionalmente.

“A comunidade LGBTQIA+ continua a ser discriminada e excluída da cidadania plena, enfrentando barreiras tanto na vida social como no acesso a direitos fundamentais.” Para Antonino, a solução passa por uma revolução mental. “Temos de formar cidadãos conscientes dos seus direitos e deveres, através de uma educação que promova espírito crítico e respeito pela diversidade.”

Sublinha que, nos últimos 20 anos, o sistema educativo timorense falhou em construir o caráter dos estudantes. “As escolas ensinaram conteúdos técnicos, mas não desenvolveram a consciência cívica nem a capacidade crítica.” Por isso, defende a necessidade urgente de reformar a educação, para que se possa combater as desigualdades e construir uma sociedade mais justa e participativa.

Antonino insiste que a verdadeira revolução que Timor-Leste precisa agora não é armada, mas sim social. “Temos de lutar por educação de qualidade, por um sistema de saúde digno e por melhores condições de vida para todos os cidadãos.”

“A comunidade LGBTQIA+ continua a ser discriminada e excluída da cidadania plena, enfrentando barreiras tanto na vida social como no acesso a direitos fundamentais.”

De acordo com os testemunhos reunidos ao longo desta reportagem, a Revolução dos Cravos não foi apenas um acontecimento histórico distante, mas continua a servir como referência simbólica e política para muitos timorenses. Para uns, foi o início do despertar político; para outros, representa hoje uma promessa inacabada. Entre memórias da luta pela autodeterminação e críticas ao presente, permanece a ideia de que a liberdade, a justiça e a democracia exigem vigilância constante.

Cinquenta e um anos após o 25 de Abril e mais de vinte anos depois da restauração da independência, Timor-Leste continua a enfrentar o desafio de transformar em prática os valores que inspiraram a sua luta: liberdade, justiça, igualdade e inclusão. As perguntas que ecoam são as mesmas que animaram a esperança de gerações passadas: que democracia é possível construir? Que liberdade é possível viver? A resposta, como mostram os testemunhos recolhidos, depende de uma luta contínua pela educação, pela dignidade e pelo direito de todos participarem no destino comum.

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  1. O POVO continua a ser explorado e usado em tempo de eleicoes, desta vez nao pelos malais mas pelos proprios filhos da terra o que e o mesmo que cuspir na sopa e depois come-la. Saude, educacao, uma autentica desgraca. Direitos existem mas so os escritos na constituicao. Na realidade viste-os.
    Quando nos coiloes correrem agua limpida, sem lixo, TL atingi a maturidade politica e social.
    A minha liberdade acaba onde a tua comeca. Nao confundam liberdade com libertinagem.
    Devia-se evacuar o POVO para um pais na Europa ou mesmo na Asia, Singapura, Japao, Coreia do Sul, para um estagio de verdadeira educacao e democracia enquanto se criam as estruturas necessarias para uma verdadeira democracia e justica. O Povo ficava com um master’s degree.

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