Semana Santa em Timor-Leste: Fé renovada, mas a liberdade religiosa enfrenta desafios

Num país que celebra a ressurreição como a vitória da vida e do amor, a liberdade religiosa permanece uma conquista em construção?/Foto: Diligente

Em Timor-Leste, a Semana Santa mobiliza milhares de fiéis e reforça a identidade religiosa do país. Entre procissões e celebrações que marcam a vida comunitária, episódios recentes de intolerância revelam as fragilidades da convivência religiosa num Estado que, apesar das garantias constitucionais, ainda enfrenta desafios na proteção da liberdade de culto.

Sendo um país maioritariamente católico, Timor-Leste acolhe a Semana Santa, que antecede a Páscoa, num ambiente solene e de profundo fervor religioso. Trata-se do momento mais importante do calendário litúrgico da Igreja Católica, em que se assinalam a paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo.

Cada dia da Semana Santa possui um significado espiritual próprio e é marcado por diversas procissões, missas e tradições locais. Em Timor-Leste, as cerimónias decorrem entre velas acesas e cânticos de oração, num ambiente de recolhimento e mobilização social.

A preparação para a Semana Santa começa na Quarta-feira de Cinzas, que marca o início do tempo da Quaresma. Durante os 40 dias que se seguem, a prática do jejum e da abstinência assume um papel central. Em Timor-Leste, estas tradições mantêm-se vivas, com simplicidade e devoção, incluindo procissões da Via-Sacra às sextas-feiras.

No Domingo de Ramos, que assinala a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, os fiéis adquirem folhas de palma — compradas a vendedores locais ou partilhadas entre vizinhos — que simbolizam a vitória e a proteção espiritual.

“Comprámos as folhas de palma por um dólar e, depois da missa, guardámo-las no oratório como símbolo de bênção e proteção espiritual. No próximo ano, poderão ser usadas para a preparação das cinzas da Quarta-feira de Cinzas”, explicou Adelaide Kirana, da Paróquia de Motael.

Durante a Semana Santa, as missas diárias, confissões, retiros espirituais, vias-sacras e atividades de serviço social convidam os fiéis à reflexão sobre o sofrimento de Cristo e à renovação da fé.

A Quinta-feira Santa destaca-se com a celebração da Última Ceia, incluindo o rito do lava-pés, que evoca o exemplo de serviço e humildade deixado por Jesus. “Sinto-me muito feliz por fazer parte da missão apostólica. Neste momento, consigo imaginar como Jesus guiava os seus discípulos com amor e paciência”, partilhou Cosme Rodrigues, da Paróquia de Santo Santiago, em Hera.

Na Sexta-feira Santa, a cidade mergulha num ambiente de recolhimento. Em várias regiões, fiéis percorrem longos trajetos sob forte calor, carregando cruzes durante as vias-sacras vivas.

“Apesar do cansaço, senti-me entusiasmada por participar neste sacrifício como forma de reflexão e homenagem ao sofrimento de Jesus”, contou Maria Jurai da Silva, da Paróquia de Ai-Mutin.

Durante este período, diversas estradas são bloqueadas para permitir a realização das procissões, alterando a rotina normal das cidades e das aldeias.

A Vigília Pascal, celebrada na noite de sábado para domingo, é um dos momentos mais simbólicos. A luz da vela pascal representa a vitória da vida sobre a morte. O Padre Antonius Ato, SVD, destacou o valor da água benta distribuída, mesmo sem a realização de batismos. “A água purifica-nos dos nossos pecados. Esta celebração é como uma vela que brilha na escuridão”, afirmou o sacerdote.

No Domingo da Ressurreição, igrejas de todo o país enchem-se de fiéis vestidos de branco, celebrando a vitória de Cristo sobre a morte.

O Padre Antonius recordou a importância do batismo como sinal de renascimento espiritual. “O batismo é como a travessia do povo de Israel pelo Mar Vermelho: uma passagem das trevas para a vida nova em Deus”, referiu o sacerdote.

Em muitas famílias timorenses, a celebração continua em casa, com partilhas de refeições e momentos de convívio, reforçando laços comunitários.

Semana Santa e os desafios da liberdade religiosa em Timor-Leste

Apesar das mensagens de amor e renovação associadas à Semana Santa, episódios recentes em Timor-Leste mostram que a prática da liberdade religiosa continua a enfrentar obstáculos.

A Igreja Cristã Carismática de Timor-Leste (ICC-TL), fundada em 2024, tem estado no centro do debate público. O grupo, que adota práticas e vestuário semelhantes aos da Igreja Católica, foi alvo de críticas e ações policiais controversas. Em 2024, um dos seus membros foi detido pela Polícia Nacional de Timor-Leste (PNTL), suscitando preocupações sobre violações da liberdade religiosa e de expressão.

No passado dia 11 de abril, a Polícia Científica de Investigação Criminal (PCIC) executou mandados de busca domiciliária contra dois cidadãos proclamados como bispos da ICC-TL, sob suspeita de burla agravada, associação criminosa e discriminação religiosa. O mandado foi emitido pelo Tribunal da Primeira Instância de Díli.

Mário Tavares, porta-voz da PCIC, explicou que a função da polícia é apenas recolher provas e elaborar um relatório final. “A investigação continua e a equipa técnica ainda está a analisar as provas. Se forem encontrados indícios fortes, o caso poderá ser encaminhado para o Ministério Público”, afirmou. “Se questionam se estas pessoas são culpadas, essa é uma decisão que cabe ao Tribunal”, acrescentou.

Os dois suspeitos foram levados para a sede da PCIC para assinar o auto de busca que confirma a apreensão dos bens, sendo os objetos e documentos entregues à justiça dentro do prazo legal de 72 horas. A PCIC informou que, até ao momento, duas pessoas apresentaram queixa contra o grupo. Durante a operação, foram também encontradas provas adicionais, nomeadamente a identificação de uma pessoa que utilizava três perfis diferentes no Facebook para comunicar com líderes da organização.

No debate promovido pela TVE, Manuel Gama, representante da ICC-TL, defendeu a legalidade das práticas do grupo: “Os membros também recebem batismo e crisma. Em Timor-Leste, não existe um ministério dedicado à religião, e nenhuma das religiões está registada no notariado. Por isso, a ICC-TL não está a plagiar atributos nem atos de culto de outra religião. Nascemos e praticamos de acordo com a nossa própria maneira.”

Preocupações da Provedoria dos Direitos Humanos e Justiça

O Provedor dos Direitos Humanos e Justiça, Virgílio Guterres, manifestou preocupação com as buscas à ICC-TL: “Esperamos que a razão da busca não tenha sido religiosa. Se for esse o caso, é muito grave e coloca em risco o respeito pela Constituição e pela democracia.”

Recordou que o Artigo 45.º da Constituição da República Democrática de Timor-Leste garante a liberdade de reunião, manifestação e religião, e defendeu que o Estado deve proteger a segurança e a liberdade religiosa das comunidades, desde que as suas atividades não comprometam a ordem pública.

Virgílio Guterres adiantou que pretende emitir uma declaração pública após a Páscoa, para reforçar a importância de respeitar a Constituição e os direitos fundamentais.

A crítica do jurista Armindo Moniz

O jurista Armindo Moniz considerou a atuação da PCIC ilegal, por não haver base jurídica para criminalizar o surgimento de novas religiões.

“A Constituição da RDTL e o Código Penal indicam que uma conduta só pode ser considerada crime quando existe uma lei que a determina. A legalidade não depende da opinião da maioria, mas deve respeitar princípios jurídicos”, afirmou.

Armindo Moniz frisou ainda que o Estado é laico e que qualquer desacordo com práticas religiosas deve ser resolvido judicialmente. “Ninguém deve agir como juiz. Se houver desacordo, que se siga o caminho legal.”

O jurista criticou também a existência de “polícias morais”, alertando que “o pecado é algo entre a pessoa e Deus” e que ninguém tem o direito de julgar a fé dos outros.

O caso das testemunhas de Jeová em Maliana

Além da situação da ICC-TL, um outro episódio de intolerância ocorreu em Maliana, onde membros das Testemunhas de Jeová foram insultados e impedidos de realizar as suas práticas religiosas. O Diligente tentou ouvir os envolvidos, mas sem sucesso, uma vez que o caso ainda está sob investigação.

Virgílio Guterres classificou o episódio como preocupante para a democracia timorense. “Não podemos aceitar que um grupo religioso seja perturbado por outro apenas por diferenças religiosas.”

O jurista Armindo Moniz reforçou que quaisquer irregularidades devem ser tratadas pelas vias legais, e nunca através de ações diretas de terceiros.

O papel da sociedade civil

Valentim Pinto, Diretor Executivo da FONGTIL, apelou ao diálogo e à promoção da paz. “Todas as pessoas são timorenses e as instituições devem assegurar um caminho pacífico para resolver mal-entendidos.”

Sobre a ICC-TL, Valentim Pinto defendeu que a situação poderia ser uma oportunidade para a Igreja Católica refletir sobre os seus próprios processos internos, nomeadamente em relação à gestão de documentos religiosos.

O dirigente da FONGTIL confirmou ainda que está prevista uma reunião com o grupo ICC-TL, no sentido de apoiar e avaliar o exercício das liberdades fundamentais. “Vamos falar com as instituições relevantes para valorizar a liberdade de criação de organizações.”

A resposta da Igreja Católica

O Arcebispo de Díli, Dom Virgílio Cardeal do Carmo da Silva, aproveitou a celebração da Páscoa para reforçar a importância da unidade da fé e alertar para o impacto de novos movimentos religiosos.

Sobre o papel do Estado, Dom Virgílio reconheceu a competência judicial para atuar nos casos de ilegalidade, mas sublinhou que a Igreja Católica promove a convivência inter-religiosa, através da Associação de Turismo Religioso de Timor-Leste (ATR-TL).

O Cardeal comentou ainda a polémica sobre o uso de vestes litúrgicas. “Na Igreja Católica, é preciso passar por várias etapas para se vestir batina e casula. De repente, ver pessoas a usá-las surpreende o público.”

Relativamente à questão do registo de religiões, sublinhou que, apesar de nenhuma religião estar formalmente registada no notariado, a missão e a identidade da Igreja Católica são facilmente reconhecíveis pela sociedade.

Mais do que um conjunto de rituais religiosos, a Semana Santa em Timor-Leste revela a profunda ligação entre fé, identidade e vida comunitária. As procissões que bloqueiam estradas e a mobilização de milhares de fiéis mostram a força da religião na vida pública.

No entanto, os episódios recentes de intolerância religiosa expõem também as fragilidades da convivência e o desafio de construir uma sociedade em que a liberdade de culto seja efetivamente respeitada.

Num país que celebra a ressurreição como a vitória da vida e do amor, a liberdade religiosa permanece uma conquista em construção?

Ver os comentários para o artigo

  1. Boas Festas de Santa Páscoa a todos🙏li o artigo, entendi alguma coisa, mas não está muito claro a notícia, parece está um pouco confusa e alguns assuntos, stão a precisar mais dalgum esclarecimento e aprofundamento….. obrigada

  2. Estou deveras admirado do Diligente ainda nao ter publicado o falecimento do “Tio Francisco” .
    Estao a espera da autorizacao da igreja?

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