Tais, tradição e liberdade: Marvi no centro de um julgamento cultural em Timor-Leste

“No mundo comercial, se queremos que um produto seja inovador, temos de mostrar algo criativo.”/Foto: DR

Uma perna à mostra e um pano tradicional bastaram para transformar a cantora Marvi no alvo de ataques violentos nas redes sociais. A controvérsia gerada por uma fotografia do novo álbum abriu um debate sobre identidade cultural, liberdade artística e moralidade em Timor-Leste.

Maria Vitória, conhecida como Marvi, lançou no passado domingo, 3 de maio, o seu novo álbum Liu Rai Feto. A sessão fotográfica promocional, em que aparece com uma perna à mostra vestindo tais, bastou para gerar uma onda de indignação nas redes sociais.

“O crocodilo fêmea que quer destruir a nossa cultura. Adota a cultura estrangeira para rebaixar a dignidade de Timor-Leste. A mulher deve respeitar o seu próprio corpo antes que os homens a respeitem. Mostra as suas pernas escuras. Veste-se como uma prostituta. Precisa cobrir um pouco mais o corpo.” Estas são algumas das críticas publicadas online. A cantora que orgulhou o país ao vencer o The Voice Portugal foi agora acusada de o envergonhar.

Apesar das humilhações, também recebeu palavras de apoio pelo uso criativo do tais como ferramenta de promoção cultural. A UNESCO reconheceu, em dezembro de 2021, o tais como Património Cultural Imaterial da Humanidade, com o objetivo de preservar os saberes tradicionais e impulsionar oportunidades económicas para as tecedeiras timorenses.

Tais não é tabu: arte, identidade e o direito de vestir

Para Fiche Piedade, da organização Rosas Mean, o tais é parte da identidade nacional, mas não deve ser encarado como um objeto sagrado. “Depende do conforto de cada pessoa ao vestir. Não podemos obrigar a Marvi a mudar a sua forma de vestir apenas para agradar à sociedade. O que precisamos é de pedir à sociedade que mude o seu conhecimento e evolua com o tempo — não pode continuar estagnada.”

A ativista defende que o tais tem diferentes funções: “Pode ser usado em cerimónias tradicionais, em arte ou no vestuário do dia a dia. Marvi usou-o apenas numa foto para promover a sua arte e música.” Critica ainda a seletividade da indignação pública. “A sociedade prefere criticar cidadãos

comuns, mas raramente reage quando líderes cometem assédio sexual em espaços públicos ou em escolas. Os nossos cidadãos têm medo de criticar figuras poderosas, mesmo quando estas assediam mulheres, porque receiam ser detidos pela Polícia.”

Josh Trindade, antropólogo, sublinha que o tais é um elemento cultural multifuncional: “Pode ser usado em rituais e cerimónias, como nos casamentos, para abençoar uniões ou como oferta simbólica, mas também na arte.” Considera que Marvi não fez nada de ofensivo. “Ela expressa-se através da sua criação. Não se trata de algo pornográfico. É uma expressão pessoal e um direito de afirmar a própria identidade. Ninguém tem o direito de impor limites a isso.”

Trindade reforça que a cultura não é estática. “O tais já passou por transformações. Antigamente, era tecido com algodão cultivado localmente. Agora usam-se fios industriais. Também há pessoas que o adaptam para saias, malas ou sapatos — isso já descaracterizou o uso tradicional. Por que ninguém critica essas mudanças?”

O corpo da cantora e o silêncio sobre os poderosos

Bella Galhos vê na polémica um espelho da mentalidade conservadora. “Não vejo nada errado em Marvi. O que vejo são muitos erros no olhar das pessoas que encaram esta jovem como um objeto sexual.” Para a ativista, a foto pode ser sensual, mas isso é parte da arte. Recorda ainda que as avós timorenses usavam o tais de forma semelhante, deixando partes do corpo visíveis, sem que isso fosse questionado.

“É triste ver reações vindas até de intelectuais como Aurélio Guterres”, afirma, referindo-se ao ex-reitor da UNTL, que publicou a foto da cantora ao lado de uma artista indonésia, exigindo explicações públicas. Bella confrontou-o diretamente: “Imagine, uma pessoa com este nível de educação a sexualizar as coisas assim.”

Para Virgílio Guterres, Provedor dos Direitos Humanos e Justiça, a crítica cultural é legítima, mas “ataques pessoais e misóginos são uma maldição social.” Sublinha que o vestuário é uma forma de expressão cultural protegida como direito humano. “No passado, também criticaram a transformação do tais em vestidos e saias. Hoje toda a gente usa.”

A publicação de Aurélio Guterres no Facebook foi interpretada por muitos como incitamento ao julgamento público. Gerou reações críticas, com vários internautas a considerarem o gesto ofensivo e desnecessário.

Jeremias Salsinha, do Conselho de Imprensa, lamentou a atitude do académico: “Ele é um intelectual. Um académico deve ser um agente de transformação, mas se ele próprio não compreende esta questão, então questiono a sua capacidade.” Considerou a sua publicação como um gesto preconceituoso, patriarcal e sem sensibilidade para questões de género. “A sociedade não critica os docentes e líderes que assediam mulheres — pior ainda, muitos consideram isso um gesto de amor.”

Questionado pelo Diligente sobre o teor da sua publicação, Aurélio Guterres reagiu de forma irritada: “Não estou a julgar ninguém, apenas estou a pedir uma explicação. Qual é o problema? Tenho o direito de perguntar.” Disse ainda que apenas queria entender o contexto da imagem e desligou abruptamente a chamada.

Patriarcado, hipocrisia e o direito ao corpo

José Messias Pedro de Araújo, conhecido como Lorico, do Comité Esperança, considera que a liberdade de vestir deve ser respeitada. “Ninguém tem o direito de impor como alguém deve vestir-se.” Critica a hipocrisia social: “Criticam uma mulher pelo vestuário, mas admiram líderes que abusam de mulheres, roubam o dinheiro do povo, cometem corrupção ou espancam cidadãos.”

Lorico considera que o julgamento público não é um mecanismo de defesa cultural, mas sim uma forma de controlar o corpo das mulheres. “Quem se indigna com o tais usado por Marvi devia, antes, criticar o Governo por não regular as empresas que o descaracterizam.”

O ativista destaca ainda os riscos enfrentados pelas mulheres que desafiam normas sociais: “São tratadas com desrespeito, insultadas, difamadas, exploradas, marginalizadas. A luta contra o patriarcado consome corpo e mente. Mas render-se é que não. Quem se rende hoje, não merece abrir os olhos amanhã.”

Jovi Baptista, artista e professor de Arte e Cultura na UNITAL, reconhece que, tradicionalmente, Marvi não usou o tais da forma habitual. Mas isso, para ele, não é um problema. “Do ponto de vista artístico e comercial, a arte não tem limites de expressão. A fotografia de Marvi é uma estratégia para promover o vestuário tradicional com estilo próprio.”

Acrescenta que muitos fingem defender a cultura, mas são incoerentes. “Nas cerimónias, o tais é colocado no chão, pisado por todos — isso ninguém critica.” Para Jovi, a criatividade é essencial: “No mundo comercial, se queremos que um produto seja inovador, temos de mostrar algo criativo.”

Maria Vitória recusou-se a comentar a polémica no imediato: “Estou focada apenas em promover o meu álbum. Vou conversar com a minha equipa e, quando aceitarem, apresentarei a minha posição.”

A controvérsia em torno da imagem de Marvi expôs diferentes visões sobre o papel do tais na cultura timorense, os limites da expressão artística e a forma como o corpo feminino continua a ser julgado na esfera pública. Enquanto algumas vozes criticaram o uso considerado ousado do pano tradicional, outras defenderam a liberdade de criação, apontando para a evolução cultural e para a necessidade de coerência nos julgamentos sociais. As reações à cantora revelaram tanto a persistência de normas patriarcais quanto a existência de discursos que questionam essas normas e apelam a uma sociedade mais tolerante e plural.

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  1. Thank you for writing an article about the polemic surrounding Marvi’s artistic expression with Tais for her album. I really appreciate that you wrote a quite balanced article citing opinions from public and prominent Timorese.

    Would it be possible for you to write about the year when she won the Voice Portugal?

    I would appreciate if you could investigate that. I hear rumors that she won the competition but not the prize money. She was badly treated by The Voice Committe. This talented young lady had a number of misfortunes which is pretty appalling. The voice Portugal, something else in between and now this.

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