A representante especial do secretário-geral da ONU para a violência contra crianças, Najat Maala M’Jid, está em Timor-Leste para acompanhar os esforços do país na implementação das dez promessas assumidas no âmbito do lançamento da Pathfinding Global Alliance, em novembro do ano passado, na Colômbia.
Nesta quarta-feira, 5 de março, ocorreu, no Ministério das Finanças, a primeira discussão entre representantes do governo, sociedade civil e organizações internacionais sobre as medidas necessárias para cumprir os compromissos assumidos pelo Estado timorense no combate à violência infantil.
O governo de Timor-Leste comprometeu-se com 10 promessas, que incluem desde o fortalecimento do sistema judicial para crimes contra menores até a criação de programas de apoio às vítimas e a formação de profissionais que trabalhem com crianças. Estas medidas são vistas como um passo crucial para reforçar a proteção infantil no país.
Para Najat Maala M’Jid, a coordenação entre os diferentes setores é essencial para garantir a eficácia das ações. “Pode haver um programa forte na educação, mas, se a saúde ou a justiça não corresponderem, não terá sucesso. O reforço do sistema de proteção das crianças deve ser transversal à educação, saúde, justiça e proteção social”, afirmou.
A representante da ONU também destacou a importância da participação das crianças e da colaboração de líderes comunitários e religiosos para garantir o sucesso das iniciativas. “O custo da violência contra crianças é seis vezes maior do que os gastos anuais do setor da saúde, mas o investimento na proteção infantil representa apenas 0,12% do total do orçamento nacional”, alertou.
Desafios e falhas na proteção infantil em Timor-Leste
O provedor dos Direitos Humanos e Justiça, Virgílio Guterres, reconheceu que a adesão de Timor-Leste à aliança global contra a violência infantil é um passo positivo, mas ressaltou que não é suficiente. Lembrou que o país já possui leis e políticas importantes, como a Convenção dos Direitos da Criança e a Lei da Proteção das Crianças e Jovens em Perigo, mas a implementação ainda está aquém do necessário.
“O investimento na educação, agricultura e saúde é menor do que o ideal. As crianças dependem das famílias e estas dependem da agricultura. A situação das escolas públicas e do atendimento de saúde ainda é uma miséria”, criticou.
Virgílio Guterres apontou ainda casos recentes de violação dos direitos das crianças, incluindo alegações de abuso sexual de diretores escolares contra estudantes; violência de professores contra alunos; praxes abusivas nas escolas; casos em que professores mandam estudantes agredirem-se uns aos outros, resultando em ferimentos graves; corte forçado de cabelo como forma de punição, uma violação da integridade física das crianças.
Além disso, o trabalho infantil continua a ser um problema alarmante. Mais de 52 mil crianças timorenses, entre os 5 e 17 anos, realizam trabalhos infantis diariamente, segundo um estudo da Comissão Nacional contra o Trabalho Infantil (CNTI) de 2022.
Outro problema grave é a subnutrição infantil: 46,7% das crianças com menos de cinco anos sofrem de subnutrição crónica, segundo o Índice Global da Fome de 2023. Paralelamente, 42% da população do país vive em situação de vulnerabilidade social, de acordo com o Índice da Pobreza Multidimensional da ONU. O documento indica ainda que 24% da população sobrevive com menos de 2,15 dólares por dia.
“A pobreza e a malnutrição afetam diretamente as crianças. Muitas famílias que sofrem despejos acabam por ver os filhos perderem o acesso à escola e aos cuidados de saúde, além do trauma causado pela situação”, alertou.
O caminho para cumprir as 10 promessas
A primeira discussão visou recolher ideias de profissionais que trabalham em áreas relacionadas com o bem-estar infantil, incluindo ações pioneiras para erradicar a violência contra crianças.
Reforma da Justiça Juvenil avança após mais de uma década de espera
Até 2026, o governo de Timor-Leste compromete-se a aprovar e implementar a Lei da Justiça Juvenil, regulando o sistema de justiça para crianças em conflito com a lei. Os responsáveis por este compromisso são o Ministério da Justiça (MJ) e as comissões A, G e F do Parlamento Nacional.
Durante as discussões sobre esta promessa, os participantes reforçaram a necessidade de aprovar e implementar a Lei da Justiça Juvenil, pendente desde 2010.
A representante da ONU sublinhou que este é o momento certo para rever a lei e promover alternativas à detenção e à privação de liberdade. “Não podemos esquecer as crianças que passam toda a vida em centros de acolhimento. Isso também é uma forma de privação de liberdade, e acontece em muitos países”, alertou.
Defendeu ainda a importância da reabilitação e a necessidade de garantir que crianças não sejam detidas por infrações leves.
Educação aposta na disciplina positiva e prevenção de abusos
O governo compromete-se a integrar os princípios de Proteção da Criança nos programas, currículos e políticas educacionais, promovendo a segurança e a prevenção de abusos no ambiente escolar. Para isso, será obrigatória a formação em disciplina positiva para professores, tanto antes de assumirem o cargo quanto na formação contínua em serviço, até 2026. O responsável pela implementação desta medida é o Ministério da Educação (ME).
Os participantes da discussão destacaram a importância de formar professores e futuros professores para identificar e encaminhar casos de abuso infantil. Também defenderam a necessidade de advocacia para a implementação da lei de proteção infantil e a adoção de uma política de tolerância zero à violência.
Najat Maala M’Jid reforçou que a educação desempenha um papel essencial na promoção da disciplina positiva e na prevenção da violência, incluindo o assédio sexual e os castigos físicos. “É fundamental garantir mecanismos eficazes de denúncia, tanto dentro como fora das escolas, assegurando a privacidade das vítimas e a responsabilização dos agressores.”
Novo modelo de justiça infantil para evitar criminalização precoce
O governo compromete-se a aumentar o número de profissionais especializados em justiça infantil (juízes, curadores e defensores públicos) e a investir num processo judicial mais sensível e acessível às crianças. Os responsáveis são o Ministério da Justiça (MJ) e a Procuradoria-Geral da República (PGR).
Os participantes alertaram para o facto de o país ainda não possuir um sistema especializado para lidar com crianças que cometem crimes. Atualmente, os casos são resolvidos devolvendo a criança à família, pois não existem instituições adequadas para as acolher e educar.
O painel sugeriu que, quando o sistema judicial infantil for implementado, os juízes e advogados adotem uma abordagem menos rígida, para evitar impactos negativos na autoestima das crianças. Também destacaram a importância da reabilitação. Além disso, defenderam que infrações menores, como arremessar pedras a carros ou fazer ameaças, não devem constar do registo criminal infantil, pois isso poderia prejudicar o futuro das crianças.
Os juízes presentes na discussão também abordaram a falta de espaços adequados para que as vítimas possam prestar depoimentos de forma segura, o que pode inibi-las de denunciar crimes. Foi sugerida a criação de um ambiente apropriado para essas testemunhas.
Outro ponto levantado foi a necessidade de afastar vítimas e suspeitos, especialmente em casos de incesto. As vítimas e os agressores não podem permanecer na mesma residência. Além disso, é essencial proteger a privacidade das crianças que cometeram crimes, evitando que as suas identidades sejam divulgadas pela comunicação social.
A representante da ONU enfatizou que uma justiça infantil eficaz deve garantir entrevistas seguras, proteção da privacidade e confidencialidade. “Não basta ter um espaço moderno com uma câmara para entrevistas; uma justiça amiga da infância exige profissionais bem treinados, incluindo polícias, juízes e assistentes sociais”, afirmou.
Destacou ainda a necessidade de acelerar os processos judiciais, especialmente nos casos de violência sexual, onde muitas vítimas acabam por permanecer anos em abrigos, enquanto os agressores continuam em liberdade.
Apoio social será reforçado para combater a violência contra crianças
O governo compromete-se a expandir e profissionalizar a Força de Trabalho dos Serviços Sociais (Assistentes Sociais), com especialização em proteção infantil, desde o nível comunitário, para responder à violência contra crianças tanto em situações normais como em emergências. Os responsáveis são o Ministério da Solidariedade Social e Inclusão (MSSI) e o Ministério da Administração Estatal (MAE).
Os painéis de discussão destacaram a importância de mapear os serviços existentes, identificar os profissionais que atuam na linha da frente e garantir a continuidade dos serviços. Também defenderam o reconhecimento da assistência social como profissão, assegurando a devida acreditação e apoio aos profissionais.
Pais terão mais apoio para educação sem violência
O governo compromete-se a expandir os programas de educação parental (Fortalecimento da Família), garantindo suporte à comunidade por meio de visitas domiciliares. Os responsáveis são o MSSI e o MAE.
Segundo um estudo de 2015, 82% dos pais em Timor-Leste utilizam gritos para disciplinar os filhos, 16% recorrem a insultos e quase metade usa violência física. Os participantes defenderam a ampliação do programa Hametin Família, promovido pelo MSSI e UNICEF, para incentivar práticas parentais positivas e reforçar a ligação entre a violência contra crianças e a violência contra mulheres.
Mais orçamento para prevenção e resposta a abusos infantis
O governo compromete-se a aumentar em 10% o orçamento para serviços de combate à violência contra crianças, incluindo apoio a programas de prevenção, assistência psicossocial, serviços de saúde e desenvolvimento de competências de vida para crianças e adolescentes.
Os participantes alertaram para a necessidade de garantir apoio a crianças em situações de emergência, como deslocamentos forçados devido a despejos ou desastres naturais, que muitas vezes resultam na interrupção da sua educação.
Regulamentação do ambiente digital visa maior proteção das crianças
O governo compromete-se a aprovar e implementar um quadro legal para a proteção infantil online. Atualmente, Timor-Leste não possui uma lei cibernética, deixando as crianças vulneráveis a crimes online.
O painel sugeriu a integração de políticas de proteção infantil na legislação cibernética, bem como a implementação de programas de navegação segura para ensinar crianças e jovens a identificar riscos e denunciar abusos.
Idade mínima para álcool e tabaco será definida por lei
O governo compromete-se a definir uma idade mínima para o consumo de álcool e tabaco, bem como a criar serviços terapêuticos para crianças vítimas de abuso de substâncias.
Plano nacional contra a violência infantil será implementado até 2026
O governo compromete-se a aprovar, até 2026, um Plano de Ação Nacional para Eliminar a Violência contra Crianças, com metas e orçamento definidos.
Sistema integrado de dados permitirá monitorizar políticas de proteção infantil
O governo compromete-se a criar um Sistema de Gestão da Informação Integrado e Multissetorial, para centralizar a recolha de dados e orientar políticas públicas nas áreas da Saúde, Justiça e Assistência Social.
Os participantes sugeriram a aceleração da digitalização dos registos escolares (EMIS) e a implementação do sistema “Primero”, uma aplicação para registo e encaminhamento de denúncias de violência contra crianças.
Por fim, Najat Maala M’Jid destacou a importância de um sistema coordenado e eficiente, com indicadores claros para monitorizar os avanços na proteção infantil.
ONU compromete-se a acompanhar o progresso
Najat Maala M’Jid destacou a importância de garantir orçamento contínuo e bem estruturado para a proteção infantil. Além disso, reforçou a necessidade de envolver líderes religiosos e comunitários, garantindo que todas as instituições que acolhem crianças tenham protocolos obrigatórios de proteção infantil.
“Vocês estão num momento crucial. É preciso tornar tudo mais claro e articulado. E lembrem-se: não se trata apenas de normas sociais, mas de crimes contra crianças. Fortaleçam as famílias, comunidades e professores, mas exijam responsabilidade no combate à violência e à discriminação”, declarou a representante da ONU.
A ONU garantiu que continuará a monitorizar os avanços de Timor-Leste na proteção infantil e cobrará ações concretas para evitar que essas promessas caiam no esquecimento.