O transtorno do jogo transforma o prazer da aposta numa armadilha silenciosa que ameaça vidas financeiras e saúde mental. Neste artigo, explora-se como as falácias do pensamento, a ilusão de controlo e o poder viciante das plataformas digitais podem contribuir para um ciclo perigoso de compulsão.
O jogo de apostas é uma atividade antiga. Estudos históricos e arqueológicos sugerem que a prática de apostar, seja com objetos, animais, bens, propriedades ou mesmo pessoas, remonta às primeiras sociedades organizadas. Ao longo dos séculos, os jogos e as apostas tornaram-se mais complexos e, atualmente, podem ocorrer em pequenos grupos, lotarias, casinos físicos e até em plataformas digitais.
A excitação provocada pelo jogo de apostas está diretamente relacionada com a ativação do mecanismo de recompensa do cérebro. Ao fazer uma aposta, o cérebro liberta dopamina, um neurotransmissor que regula sensações de prazer e motivação. Este processo gera uma sensação de euforia, especialmente nas vitórias, e mantém o jogador ansioso por continuar a apostar e a reviver essa satisfação.
Em Timor-Leste, há inúmeros taru-osan ou jogos de apostas como o bola guling (lançamento de uma bola sobre uma mesa numerada de 1 a 12), os jogos de cartas, o kuru-kuru (apostas em números escondidos dentro de uma caixa), apostas em jogos de futebol, o futu manu (lutas de galos), casinos, SDSB (um tipo de lotaria), entre outros. São comuns as histórias de apostadores que perderam o dinheiro da família, automóveis, animais, terras, entre outros bens.
Falácias do jogador
Falácias lógicas são erros de raciocínio que resultam em argumentos inválidos ou enganosos, apesar de parecerem corretos à primeira vista. Jogadores são vulneráveis às falácias lógicas porque tendem a procurar padrões em eventos aleatórios, levando-os a tomar decisões equivocadas.
Uma das falácias mais comuns é a “do apostador” (ou falácia de Monte Carlo), na qual a pessoa acredita que eventos passados influenciam o resultado futuro de uma aposta. Por exemplo, se uma moeda foi lançada sete vezes e caiu em “cara” todas as vezes, o apostador pode acreditar que “coroa” tem mais chances de aparecer nas próximas rodadas, o que não é verdade. Cada evento é independente, as chances são sempre de 50% para cada lado da moeda, mas a nossa mente tende a procurar padrões, mesmo onde eles não existem.
No ano de 2003, em Itália, ocorreu um fenómeno social conhecido como a “febre 53”. Naquela altura, o número 53 deixou de sair na lotaria, o que levou milhões de italianos a apostar compulsivamente na esperança de que fosse sorteado nas rondas seguintes. No entanto, apenas após 182 sorteios e dois anos de espera, o número 53 foi finalmente sorteado. Durante este período, estima-se que foram apostados mais de 4 mil milhões de euros exclusivamente no número 53. Existem inúmeros relatos de pessoas que perderam bens, dinheiro, casas, e que sofreram de ansiedade, depressão e ficaram endividadas devido às apostas.
Outra falácia comum é a “da sorte”, na qual o jogador acredita que está a passar por uma maré de sorte e, por isso, deve continuar a apostar. Este raciocínio, no entanto, não considera a aleatoriedade dos jogos de apostas, que, por definição, são imprevisíveis. Mesmo que alguém tenha uma sequência de vitórias, as hipóteses de ganhar ou perder na próxima jogada permanecem as mesmas. A ilusão de controlo, em que o apostador acredita que pode influenciar ou prever o resultado, também alimenta essas falácias, contribuindo para a insistência em continuar a apostar.
A falácia do “apelo à motivação” ocorre quando uma pessoa tende a interpretar os eventos com base nos seus desejos e crenças, convencendo-se de que o sucesso está próximo. A experiência do “quase acerto” – ou seja, quando uma perda é percebida como muito próxima de um ganho – pode intensificar este erro lógico. Nos jogos de apostas, os resultados de “quase acerto” podem criar uma sensação de proximidade do sucesso, estimulando o jogador a continuar a apostar, mesmo que as probabilidades reais de vitória não tenham mudado.
Em Timor-Leste, inúmeras pessoas fazem apostas porque sonharam com um número específico ou com um antepassado que lhes disse algo que parece significativo. Esta situação pode ser identificada com a falácia da “causalidade”, ou seja, quando se assume que uma correlação ou uma coincidência implica que um fenómeno provoca o outro. No caso de quem aposta devido a um sonho, está a associar esse sonho à possibilidade de ganhar, acreditando que ele possui um poder preditivo sobre o resultado do jogo. No entanto, não existe relação de causa e efeito entre os sonhos e o resultado das apostas.
As lutas de galos em Timor podem reunir centenas de pessoas num único evento. Algumas pessoas preferem apostar em galos pretos que lutam ao final da tarde, pois acreditam que têm maiores possibilidades de vencer. Embora os apostadores desenvolvam teorias para justificar a sua crença, isso é um exemplo da falácia da “generalização apressada”. Esta falácia ocorre quando se chega a uma conclusão generalizada baseada numa amostra limitada ou em experiências individuais, sem evidências suficientes para sustentar a regra. Mesmo que um galo preto tenha vencido numa ocasião anterior ao fim da tarde, isso não significa que essa característica ou a hora do dia tenha uma influência real sobre o desempenho do animal em todas as lutas.
As apostas online e a aceleração do mundo contemporâneo
Com a chegada da internet, os jogos de apostas tornaram-se mais acessíveis. As plataformas online são projetadas para atrair e manter a atenção dos utilizadores com interfaces interativas e dinâmicas, oferecendo gratificação imediata. Qualquer pessoa com um dispositivo conectado à internet pode fazer uma aposta em segundos, o que aumenta a conveniência e o envolvimento, tornando o jogo online potencialmente viciante. Este é um mercado em expansão e lucrativo, especialmente para as casas de apostas. A Statista, plataforma especializada na recolha e divulgação de estatísticas e dados de mercado, estima que, em 2023, a indústria global de “jogos de azar” e apostas online alcançou cerca de 85 mil milhões de dólares americanos, subindo para 97 mil milhões de dólares apenas no primeiro semestre de 2024 e podendo atingir 133 mil milhões até 2029.
Os algoritmos das plataformas de apostas online são projetados para maximizar a libertação de dopamina. Eles analisam o comportamento dos utilizadores e ajustam as recompensas e desafios para manter o jogador engajado por mais tempo. Por exemplo, podem oferecer pequenas vitórias frequentes, que dão a sensação de estar perto de um grande prémio, ou apresentar desafios personalizados que parecem feitos sob medida para o apostador. Esse sistema de recompensas é altamente eficaz a prender a atenção e criar um ambiente onde o jogador continua a apostar, mesmo diante de perdas.
Além disso, o anonimato e a facilidade de acesso das apostas online removem barreiras que costumavam afastar as pessoas. Em locais físicos, o custo de deslocação e a visibilidade pública das apostas podem inibir os jogadores. No ambiente virtual, essas restrições desaparecem, permitindo que as pessoas apostem com mais frequência e de forma mais impulsiva.
Outro fator que aumenta o risco de compulsão das apostas online é a ausência de interrupções. Ao contrário dos jogos presenciais, onde os jogadores podem fazer pausas ou são obrigados a parar quando o local fecha, as plataformas online operam continuamente. Isso permite que os jogadores apostem sem limites de tempo, o que pode resultar em apostas excessivas e descontrolo financeiro. Além disso, a facilidade de transações, como o uso de cartões de crédito, torna mais simples gastar grandes quantias sem perceber.
Quando o lúdico se torna um problema de saúde mental
Embora os jogos de apostas possam ser uma atividade recreativa, também implicam o risco de causar danos materiais e psicológicos a algumas pessoas, podendo transformar-se num problema de saúde mental. A seguir, apresento algumas perguntas e respostas que nos ajudarão a compreender melhor o transtorno do jogo.
O que é transtorno do jogo?
O transtorno do jogo, ou ludopatia, é uma condição caracterizada pela repetição persistente de comportamentos de jogo que resultam em consequências negativas significativas para o indivíduo. As pessoas com transtorno do jogo frequentemente enfrentam problemas financeiros, conflitos interpessoais e perda da qualidade da sua saúde mental e física.
Se uma pessoa joga com frequência ou já perdeu muito dinheiro em apostas, isso significa que tem transtorno do jogo?
Não necessariamente. Embora perdas financeiras significativas possam ser um sinal de alerta, nem todos que jogam com frequência ou perdem dinheiro desenvolvem transtorno do jogo.
Como se faz o diagnóstico do transtorno do jogo?
O diagnóstico é realizado através de uma avaliação clínica que considera os tipos de sintomas, a gravidade dos comportamentos de jogo e as suas consequências. Os principais manuais diagnósticos apresentam um conjunto de sintomas, onde a pessoa precisa manifestar pelo menos quatro (DSM-5-TR) ou cinco (CID-11) deles nos últimos 12 meses. De forma resumida, entre esses sintomas estão: preocupação com o jogo, manifestada por pensamentos recorrentes sobre apostas; necessidade de apostar quantias cada vez maiores para obter a mesma sensação de excitação; incapacidade de controlar ou interromper o comportamento de jogo; perda de interesse em atividades que não envolvem apostas; jogar para escapar de problemas ou emoções negativas; mentir para ocultar a extensão do envolvimento com o jogo; perda de relacionamentos, empregos ou oportunidades devido ao jogo; dificuldade de concentração ou baixo rendimento em áreas como trabalho ou estudo. A lista continua.
Com que idade se começa a jogar?
A idade média em que os apostadores começam a jogar pode variar de acordo com o país, os aspetos socioculturais e o tipo de jogo. No entanto, de forma geral, os estudos indicam que muitos indivíduos começam a envolver-se em jogos de aposta durante a adolescência ou no início da vida adulta. Relativamente aos transtornos relacionados com o jogo, é comum que os indivíduos que desenvolvem problemas com apostas relatem ter começado a jogar quando eram jovens, especialmente em jogos menos regulamentados, como apostas online ou jogos informais.
Como o transtorno do jogo afeta a saúde mental?
Indivíduos com transtorno do jogo apresentam um comportamento compulsivo. Este transtorno é considerado uma adição comportamental e está no mesmo grupo dos transtornos relacionados com substâncias (álcool, tabaco, drogas ilícitas e medicamentos com potencial viciante). As pessoas com transtorno do jogo passam, inclusive, por fases de abstinência, tolerância e perda de controlo. O endividamento, a perda de dinheiro e os conflitos familiares, bem como com amigos e no ambiente de trabalho, podem desencadear ou agravar sentimentos de culpa, vergonha e fracasso, aumentando, assim, o risco de sintomas de depressão, ansiedade e dependência de substâncias, além de contribuir para o isolamento social.
Como os jogos de apostas online podem estimular a dependência por jogo nos adolescentes?
A influência ocorre através de uma combinação de fatores psicológicos, tecnológicos, comportamentais e sociais. Esses fatores tornam o jogo mais acessível e atrativo, especialmente para os jovens, que são mais vulneráveis ao desenvolvimento de comportamentos compulsivos, uma vez que o córtex pré-frontal, responsável pelo controlo de impulsos e pela tomada de decisões, só se forma totalmente por volta dos 25 anos.
Entre os principais fatores de risco, estão: o acesso fácil; o anonimato; a possibilidade de realizar pequenas apostas ou mesmo apostas sem o uso do dinheiro o que pode acostumar os jovens à sensação de apostar; algoritmos preparados para captar a atenção dos apostadores; a ativação da dopamina que causa a sensação de excitação e prazer; estímulos visuais e sonoros atraentes; recompensas instantâneas e progressão no jogo, o que estimula a sensação de vitória e mantém os jogadores engajados; os adolescentes podem recorrer aos jogos como uma forma de escapar das pressões sociais e dificuldades emocionais; adolescentes, devido a sua idade, muitas vezes têm menos consciência dos riscos associados ao jogo e podem subestimar as consequências financeiras e psicológicas a longo prazo; websites de apostas frequentemente oferecem promoções e bónus para novos jogadores, o que pode atrair adolescentes a se inscreverem e a iniciarem o hábito de apostar.
Como os fatores sociais e culturais podem estimular o transtorno do jogo?
Os valores, costumes e práticas sociais podem influenciar a maneira como as pessoas percebem e se comportam em relação às apostas. As crenças sobre dinheiro e sorte podem aumentar a probabilidade de desenvolver problemas relacionados com o jogo. As falácias do jogador, a ativação do mecanismo de recompensa cerebral, a esperança de ganhar dinheiro rapidamente, a fácil acessibilidade às plataformas digitais ou locais físicos, a normalização do jogo de apostas nos meios de comunicação, leis e regras pouco claras ou inexistentes e o estigma em relação à procura de ajuda também agravam a situação.
Sendo assim, a dinâmica social pode estimular hábitos de jogo problemáticos, especialmente entre os jovens e em regiões economicamente vulneráveis, onde o jogo de aposta pode ser percebido como um caminho rápido (e, por vezes, o único) para obter ganhos financeiros e uma oportunidade de mudança de vida. Colocado isto, os aspetos históricos, económicos, linguísticos, semióticos e sociais, ao interagirem com as características pessoais e vulnerabilidades psicológicas, podem aumentar o risco de uma pessoa desenvolver o transtorno do jogo.
É possível tratar o transtorno do jogo?
Sim, o tratamento geralmente inclui psicoterapia e pode contar com o apoio de grupos, como os Jogadores Anónimos. Em alguns casos, também podem ser indicados medicamentos para tratar sintomas associados, como, por exemplo, ansiedade e depressão.
O transtorno do jogo é uma condição séria, mas com tratamento adequado e apoio, é possível superá-lo. A prevenção começa com a consciencialização dos riscos do jogo, o controlo do tempo e do dinheiro gasto em apostas, além do estabelecimento de limites e da procura de ajuda ao perceber que o jogo está a afetar a vida pessoal, escolar ou profissional. Para os mais jovens, é importante o diálogo com os familiares sobre os riscos do jogo, limitar a sua exposição a ambientes de apostas e incentivar hábitos saudáveis de lazer.
Assim, a sociedade, como um todo, precisa estabelecer padrões claros para regular os jogos de apostas, combater as vulnerabilidades sociais, analisar as suas próprias crenças sobre os jogos e implementar medidas que informem e eduquem as pessoas, garantindo que compreendam os riscos e disponham de ferramentas lógicas, psicológicas e emocionais para jogar – caso o desejem – de forma consciente e controlada.
Alessandro Boarccaech, psicólogo com especialização em psicologia clínica e da saúde, psicoterapeuta e PhD em antropologia. Professor universitário, coordenador do Centro de Pesquisa em Cultura e Sociedade e editor da revista académica Diálogos da UNTL. Autor de diversos livros e artigos científicos entre os quais: Os eleitos do cárcere; A diferença entre os iguais; Dicionário Hresuk-Português; Conhecimento local, curandeiros e Psicologia: causas, sintomas e tratamentos dos transtornos mentais em Timor-Leste.
Gostei muito do artigo. Sofri isto com uma pessoa da família. Consegui ver tudo que o dr. Alessandro escreveu. Este é mesmo um problema sério. Nos timorenses precisamos falar deste problema do jogo que acontece com muitas familias.