O poder da leitura: histórias que inspiram o futuro de Timor-Leste

“Ler não é apenas pegar num livro e pronunciar palavras em voz alta. A verdadeira leitura acontece em silêncio — os lábios podem até mover-se, mas é a mente que faz a leitura” /Foto: DR

Mesmo em contextos de escassez, a leitura floresce em Timor-Leste como uma força transformadora. Neste Dia Mundial do Livro e dos Direitos de Autor, estudantes, professores, leitores e uma escritora partilham com o Diligente como os livros despertaram neles o pensamento crítico, a criatividade e o desejo de mudar o mundo.

Entre prateleiras improvisadas, páginas partilhadas entre amigos e sonhos que nascem das palavras, a leitura continua a marcar vidas em Timor-Leste. Apesar da escassez de bibliotecas e livros, sobretudo nas zonas rurais, a paixão pelos livros resiste e reinventa-se. Para muitos timorenses, ler não é apenas um ato académico — é uma escolha pessoal, uma forma de se ligarem ao passado, compreenderem o presente e imaginarem o futuro.

O Dia Mundial do Livro assinalou-se ontem, 23 de abril, uma data dedicada à celebração da leitura, da literatura e do papel fundamental dos livros na promoção do conhecimento, da imaginação e da liberdade de expressão. Instituído pela UNESCO, este dia presta homenagem a grandes autores da história e pretende incentivar o gosto pela leitura junto de pessoas de todas as idades.

O Diligente foi ao encontro de quem lê por prazer, por curiosidade, por necessidade de crescer. E o que descobrimos foram vozes que acreditam, com convicção, que a leitura tem o poder de transformar mentalidades, inspirar mudanças e dar voz a quem mais precisa.

“A leitura é uma ferramenta fundamental que pode impulsionar mudanças, críticas construtivas e a criação de novas ideias”

 

Fi Che, de 29 anos, Dirigente do Grupo Rosas Mean / Foto: Arquivo Pessoal

“Quando lemos, somos levados a analisar profundamente as condições reais das pessoas e da política. Por isso, a leitura é uma tradição e também uma obrigação para todos, especialmente num tempo em que enfrentamos situações graves como os problemas no governo, na saúde, na agricultura, na educação, entre muitos outros. Estes problemas continuam por resolver devido à falta de uma leitura crítica que nos leve a questionar. Precisamos de analisar e criticar essas realidades e, para isso, precisamos de ler.

Sabemos que, atualmente, existem muitos problemas, mas poucas pessoas têm coragem de criticar. Algumas criticam com objetividade, outras com subjetividade. A leitura também ajuda as pessoas a desenvolverem-se e a tornarem-se mais conscientes e mais críticas.

Ler permite-nos atualizar os conhecimentos. A evolução da sociedade e do mundo é muito rápida, por isso é essencial ler teoria crítica para compreender melhor a situação atual. Como já referi, há muitos problemas, mas poucas pessoas analisam de forma crítica. A leitura é uma ferramenta fundamental que pode impulsionar mudanças, críticas construtivas e a criação de novas ideias.

Acho que é muito importante ler livros de História para compreender melhor o processo de luta do povo timorense, desde o colonialismo até à invasão. Ler é também uma forma de conhecer os graves problemas enfrentados pelas mulheres, como a escravatura sexual durante a Segunda Guerra Mundial. Os livros sobre política também são essenciais e interessantes, e contribuem muito para a atualização do nosso pensamento.

O primeiro livro que li foi A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, de Engels, publicado em 1984. Este livro aborda a história da humanidade e a evolução da sociedade, e levou-me a refletir sobre as condições enfrentadas pelas mulheres, especialmente em relação ao trabalho doméstico, à exclusão das mulheres dos espaços da política económica e à dificuldade que muitas têm em tomar decisões por si.

A realidade de hoje, sobretudo nesta era em que a tecnologia domina, mostra que o hábito da leitura está a diminuir. Parece que o próprio currículo da educação não orienta verdadeiramente as pessoas a desenvolver o hábito de ler. Na verdade, o currículo apenas ensina a memorizar conteúdos, mas não orienta para compreender. Depois de as pessoas concluírem os estudos e encontrarem trabalho, muitas deixam de estudar. Por isso, precisamos de cultivar o hábito da leitura na sociedade, especialmente durante o tempo livre, nas nossas viagens ou momentos de descanso.

Uma questão importante que muitos levantam é a falta de bibliotecas em Timor. Na minha opinião, as bibliotecas existentes não são suficientes, devido à falta de espaço e à ausência de um investimento sério por parte do governo. Não sei onde estão localizadas, nem vejo qualquer esforço do governo para promover bibliotecas em Díli ou nas escolas. As que existem não garantem um verdadeiro acesso aos livros. Algo que noto particularmente nas bibliotecas universitárias é que, muitas vezes, mantêm apenas livros que não contribuem para a análise crítica. Por isso, as pessoas não libertam as mentes nem se sentem inspiradas a criar mudanças ou a agir. Pior ainda, não incentivam a crítica da injustiça e da política dominante.”

“Ler é muito importante porque pode melhorar a qualidade da educação, estimular o pensamento crítico e preparar a nova geração para se tornar líderes conscientes e responsáveis”

 

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Fendia da Conceição, 17 anos, estudante da Escola Santa Madalena de Canossa, Díli /Foto: Arquivo Pessoal

“As atividades de leitura representam um momento útil para adquirir novos conhecimentos e desenvolver a imaginação de forma profunda. Gosto muito de ler, porque a leitura pode oferecer-me novas informações e também me inspirar a melhorar as minhas competências linguísticas. Ler é o ato que me ajuda a pensar de forma mais ampla e motiva-me a continuar a aprender.

Gosto particularmente de ler livros de História, porque os livros permitem-nos conhecer o passado e podemos compará-lo com a situação atual. Um livro que me marcou é Timor Lorosa’e: A Nation Reborn, porque retrata a luta do povo timorense para conquistar a independência.

Ler em tétum ajuda-me a compreender melhor a nossa história e os acontecimentos locais, mas a leitura em português permite-me aprender sobre outras realidades, culturas e melhorar as minhas competências linguísticas.

Acredito que a leitura pode mudar mentalidades e formas de pensar. Por exemplo, ao ler livros sobre os Direitos Humanos, passei a valorizar mais conceitos como a liberdade e a igualdade dentro da comunidade.

Na minha opinião, os timorenses ainda leem pouco, principalmente devido ao acesso limitado aos livros e à falta de motivação. Na minha escola, noto que muitos alunos não demonstram interesse pela leitura, uma vez que desconhecem os benefícios e o poder da leitura.

Ler é muito importante porque pode melhorar a qualidade da educação, estimular o pensamento crítico e preparar a nova geração para se tornar líderes conscientes e responsáveis.”

Com o tempo, os meus interesses literários evoluíram. Agora prefiro ler livros políticos. Quero ser um agente de mudança social, estudar a ideologia do Estado, compreender como funciona a implementação das políticas dos governantes”

 

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Maria Josefa Maia, 17 anos, estudante da UNTL /Foto: Arquivo Pessoal

“A leitura é um investimento silencioso. Cada página que leio, seja de uma carta ou de um livro, transforma-se numa partilha interior que me ajuda a pensar, a analisar diferentes perspetivas e a compreender melhor o mundo à minha volta.

Recordo com carinho que o primeiro livro que li foi Boy, de Roald Dahl. Teve um grande impacto em mim, porque, depois de o ler, senti que estava numa longa viagem para outro mundo. Desde criança, apaixonei-me pela leitura, incentivada pelos meus familiares, que sempre me encorajaram a ler.

Com o tempo, os meus interesses literários evoluíram. Agora prefiro ler livros sobre política. Quero ser uma agente de mudança social, estudar a ideologia do Estado, compreender como funciona a implementação das políticas. A leitura tornou-se, assim, não só uma fonte de prazer, mas também um caminho para alcançar os meus objetivos profissionais.

Entre os autores que mais me inspiram, destaco o indonésio Tere Liye. Tudo o que ele escreve tem um valor elevado e um significado. Toca-me sempre o coração e transporta-me para outro mundo.

Gosto de recomendar livros aos colegas que também gostam de ler. Às vezes, conversamos sobre os livros que lemos e, nesses momentos, percebo o que os outros gostam. Um dos livros que sugeri foi Direitu, korrupsaun no Law Enforcement iha kontrovérsia isu, do autor timorense Armindo Moniz Amaral.

Leio todos os dias, tanto em casa como nos espaços universitários e na Sala de Leitura de Xanana. A maioria dos livros está em inglês, indonésio e tétum. Percebo melhor nessas três línguas, mas gosto mais do inglês, por isso melhorei bastante as minhas competências nessa língua.

Acredito que a leitura mudou profundamente o meu modo de pensar. Hoje, sinto-me mais aberta a outras perspetivas e menos dependente do telemóvel. Antes, passava o dia todo agarrada ao telefone, mas agora sinto-me feliz por estar numa biblioteca a ler.

Um exemplo concreto dessa mudança foi a vitória numa competição de debate. Não foi por estudar de propósito, mas porque já lia muitos livros em inglês. Foi algo inconsciente, que surgiu espontaneamente.

Reconheço que o gosto pela leitura ainda é reduzido em Timor-Leste. Muitas pessoas complicam o que é simples, agem por interesse pessoal e não social. Na minha opinião, isso acontece porque há pouco hábito de leitura. Ainda enfrentamos obstáculos como a escassez de livros em tétum e a falta de bibliotecas, especialmente nas zonas rurais.

Apesar dos desafios, acredito no poder transformador da leitura. Se muitos timorenses lerem, analisarem o que leem e aplicarem esse conhecimento, podemos sair de uma situação má para uma situação melhor. Mas isso não se faz sozinho — precisamos de caminhar juntos, entre diversos setores, com uma nova mentalidade.”

“Os jovens só leem quando têm TPC. A leitura não deve ser apenas para o estudo, mas sim para a vida. O grande problema da nossa sociedade é a falta de pensamento crítico. Para desenvolver essa capacidade no futuro, temos de começar a ler agora”

 

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Hornai Ramos, 27 anos, docente da UNTL/Foto: Arquivo pessoal

“Ler não é apenas pegar num livro e pronunciar palavras em voz alta. A verdadeira leitura acontece em silêncio — os lábios podem até mover-se, mas é a mente que faz a leitura. Um bom leitor não se preocupa em terminar rapidamente um livro. Ao contrário, a leitura que leva tempo permite compreender melhor a intenção do autor. Isso é o que chamo leitura crítica.

O meu primeiro contacto com a leitura foi, em 2019, com o texto O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá, um conto de Jorge Amado. O texto falava sobre o amor incondicional e impossível. Tocou-me profundamente.

O meu autor preferido é o escritor timorense Luís Cardoso Noronha. Gosto muito da sua escrita porque retrata a história e a realidade de Timor-Leste. A sua escrita não é fácil para leitores iniciantes, mas exige concentração, foco e pensamento analítico. Obriga-me a raciocinar — e eu adoro isso.

Leio em português porque quero aperfeiçoar o meu vocabulário. Também leio, de vez em quando, em tétum e bahasa indonésio. Prefiro ler livros em papel. O cheiro do livro dá-me vontade de ler e ajuda-me a mergulhar na leitura. Costumo ler em casa, especialmente no meu quarto, onde há silêncio.

A leitura mudou profundamente a minha forma de pensar e escrever. Antigamente, tinha dificuldades em encontrar as palavras certas para formar frases. Por exemplo, não conhecia a palavra “discernimento”, mas agora sei que significa distinguir entre o bem e o mal. A leitura contribuiu para o meu desenvolvimento profissional. Ganhei dois prémios em concursos de escrita criativa promovidos pela Fundação Oriente, durante dois anos consecutivos.

Na minha observação, os mais velhos leem mais do que os jovens. Os jovens só leem quando têm TPC. A leitura não deve ser apenas para o estudo, mas sim para a vida. O grande problema da nossa sociedade é a falta de pensamento crítico. Para desenvolver essa capacidade no futuro, temos de começar a ler agora.

Infelizmente, os livros em Timor-Leste são insuficientes. Nas bibliotecas, muitos estudantes procuram referências que simplesmente não existem. As escolas públicas, em geral, não têm bibliotecas. Os únicos livros disponíveis são os LAFAEK, da CARE, UNICEF e PLAN, mas estão guardados nas salas dos professores e acabam por se estragar devido à chuva, porque não há espaços adequados.

O governo deve investir seriamente na educação. Pode falar de riquezas naturais, diamantes, café, petróleo, turismo — mas sem recursos humanos, nada disso vai ser desenvolvido. É preciso construir bibliotecas com boas condições, adquirir livros em várias línguas, promover concursos de escrita criativa com prémios motivadores e criar equipas de apoio a jovens escritores. Só assim poderemos transformar o futuro do nosso país e do nosso povo.”

“Acredito que a literatura tem um poder transformador. Dá voz a quem não a tem, pode mudar mentalidades e ajudar a sociedade a enfrentar temas difíceis ou considerados tabus”

 

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Lena Mafalda, 42 anos, Funcionária Pública / Foto: Arquivo pessoal

“Gosto de ler como forma de aliviar o cansaço, sobretudo romances de ficção, que animam os meus pensamentos nos momentos livres. Leio frequentemente em indonésio e inglês, o que me inspirou a começar a escrever o meu próprio romance em tétum. Senti que havia uma lacuna: faltava uma narrativa em tétum que desse voz ao trauma e à esperança. Foi assim que comecei a aproximar-me do mundo da literatura.

Comecei a escrever durante a pandemia da COVID-19, quando passei a ter mais tempo livre. Aproveitei essa oportunidade para desenvolver dois romances em indonésio, através da aplicação Fizzo Novel, porque, na altura, não sabia como publicar o romance que tinha escrito em tétum.

Entre 2020 e 2021, escrevi dois romances de ficção em plataformas online, acessíveis apenas em formato digital. Mas, em 2024, vi uma publicação da Great Bookshop no Instagram a anunciar que apoiaria autores timorenses interessados em publicar os seus livros. Fiquei motivada com essa iniciativa e enviei o meu romance Laloran Moris, escrito em tétum. O lançamento oficial está previsto para o dia 2 de maio de 2025.

A principal mensagem do livro é a superação das mulheres marcadas pela violência doméstica, que encontram forças para continuar a viver e têm o direito de decidir sobre as suas vidas. Apesar dos traumas e das dificuldades, podem traçar o seu próprio caminho. A maternidade e a dignidade feminina não devem estar condicionadas por normas sociais. É essencial dar voz às experiências das mulheres.

Escrever, para mim, é uma forma de valorização. O Dia do Livro e dos Direitos de Autor é um momento para celebrar os escritores que inovam, despertam consciências e dão voz às suas comunidades. Sinto orgulho em fazer parte deste universo da escrita.

Reconheço a importância da proteção legal dos autores. Sem direitos de autor, muitos não se sentiriam seguros para partilhar as suas obras. Estes direitos incentivam a criatividade e a participação na cultura literária. No entanto, ainda noto uma grande falta de conhecimento sobre o tema. Muitos desconhecem o que são os direitos de autor e acabam por perder o reconhecimento enquanto criadores.

Nem todos compreendem o valor simbólico e social da criação de novas obras. É necessário investir mais em educação cultural. Escrever não é uma coisa pequena — é uma forma de contribuir para o património nacional.

Acredito que a literatura tem um poder transformador. Dá voz a quem não a tem, pode mudar mentalidades e ajudar a sociedade a enfrentar temas difíceis ou considerados tabus. Os escritores devem ser testemunhas do seu tempo e da sua cultura, criando espaço para narrativas locais, usando a língua tétum.

Para quem quer começar a escrever, não esperem que fique perfeito logo no início. O mais importante é começar. Escrevam para vocês próprios, entreguem-se ao processo. O que importa é a história — há sempre alguém que precisa de a ouvir. Não tenham medo de começar. Por isso, quem empresta livros entre vizinhos, quem improvisa clubes de leitura com amigos, e quem, mesmo sem nunca ter tido um livro seu, sonha um dia escrever o seu — tudo isso já é um começo.”

Ver os comentários para o artigo

  1. A leitura e o 25 de Abril da libertacao mental!
    A leitura e o inicio da liberdade dos pobres e oprimidos!
    A leitura e fazedora de milagres!
    A leitura alimenta sonhos!
    Em Timor em crianca(60 anos atras) lia muitos livros aos quadradinhos, os irmaos metralha, Bill the kid. Nao me tornei nem cowboy nem ladrao, por isso nao sou politico. A grande maioria dos politicos do meu tempo nao liam livros. Sou poeta dos pobres, filosofo e continuo sonhador.
    A melhor biblioteca no meu tempo era na antiga reparticao provincial dos servicos de educacao ao lado do glorioso Benfica.

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