Trinta e três anos após a trágica morte de Sebastião Gomes, surge um testemunho inédito de Duarte ‘Leki Kiik’, sobrevivente do incidente na igreja de Motael, que descreve o momento fatal e os eventos que se seguiram.
A história da morte de Sebastião Gomes, a 28 de outubro de 1991 na Igreja de Motael, em Díli, tem sido contada de forma fragmentada e, por vezes, sem muitos detalhes. Contudo, Duarte Basílio Ximenes, conhecido como ‘Leki Kiik’, um sobrevivente do incidente, partilhou recentemente o seu testemunho.
Depois de 33 anos de silêncio, ‘Leki Kiik’ falou na noite da reflexão, no passado dia 27 de outubro, dirigida aos jovens reunidos em Motael. “Sempre fomos apenas convidados nas comemorações. Os mais velhos, os líderes, é que falavam. Eu era apenas mais um, ninguém queria que eu falasse”, explicou, ao ser questionado sobre a razão para só agora contar o que viu.
De acordo com o relatório da Comissão de Acolhimento, Verdade e Reconciliação de Timor-Leste (CAVR), os jovens que se refugiavam na igreja de Motael eram monitorizados por agentes de inteligência indonésios, conhecidos como intel. Uma “altercação com um militar indonésio” teria culminado com a morte de Sebastião, baleado e morto no local.
Em vídeos gravados por Max Stahl, Carlito Doméstico, amigo de Sebastião, relatou que o jovem tinha sido assassinado por militares indonésios durante um ataque à igreja de Motael, onde ele e outros jovens estavam escondidos.
Outro relato, de Aleixo da Silva Gama, conhecido por ‘Cobra’, também refugiado na residência do bispo Alberto Ricardo da Silva em Motael, numa gravação de voz republicada pelo Centro Audiovisual Max Stahl (CAMSTL) este ano, descreve como os espiões provocavam os jovens para saírem da igreja, acabando por entrar na igreja após várias tentativas de intimidação através de apedrejamentos e tiroteios.
Aleixo Cobra conta que alguns atacantes usavam fardas enquanto outros vestiam roupas civis. “Os jovens, incluindo Sebastião, saíram da igreja. Ele, talvez treinado em artes marciais, tentou reagir, mas foi atingido por três tiros no abdómen e no peito”, revelou. Aleixo recorda que, ao tentarem socorrê-lo, Sebastião ainda conseguiu murmurar: “mai, hau mate ona” (já estou a morrer, em português).
O relatório da Comissão Internacional de Juristas, publicado em 1992, confirma que Sebastião Gomes Rangel perdeu a vida quando “forças de segurança atacaram a igreja de Motael, onde ele e outros timorenses se tinham refugiado”.
Novos detalhes revelados
Durante anos, a morte de Sebastião Gomes foi narrada de forma incompleta. Na noite de reflexão em Motael, Duarte ‘Leki Kiik’, jurando pela sua vida, decidiu partilhar as suas memórias dos acontecimentos: “Mostrei aos jovens e à família o local onde Sebastião caiu, acendi velas, coloquei cigarro, fiz o sinal de cruz na terra onde o seu sangue foi derramado, comi a terra, e jurei nunca esquecê-lo”.
Naquela época, cerca de 45 jovens independentistas estavam refugiados na residência do bispo Alberto Ricardo da Silva, fugindo de timorenses pró-integração que os perseguiam.
Os jovens estavam preparados para mostrar ao mundo a realidade da ocupação, especialmente devido à esperada visita de uma delegação parlamentar portuguesa. A preparação clandestina incluía panfletos e mensagens para os visitantes, revelando o que se passava no país.
Timor-Leste encontrava-se isolado do mundo, sem permitir a entrada de turistas que pudessem revelar a verdadeira situação do país, e a comunicação com diplomatas timorenses no estrangeiro era extremamente difícil. As autoridades indonésias, representadas pelo então presidente Suharto e pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, Ali Alatas, asseguravam ao exterior que não havia conflito e que Timor-Leste já havia decidido pela integração na Indonésia.
Os jovens timorenses, contudo, faziam todos os esforços para que o mundo soubesse a verdade. A primeira manifestação teve lugar durante a visita do Papa João Paulo II, em 1989, seguida por uma segunda em 1990, durante a visita do Embaixador dos Estados Unidos, John Monjo, que resultou no sequestro, detenção, morte ou desaparecimento de muitos jovens. A terceira manifestação foi organizada de forma clandestina, aguardando a chegada de uma delegação do Parlamento português.
Para manter o sigilo, os jovens escondidos na residência do bispo levantavam-se ao amanhecer para arrumar o local antes da chegada dos fiéis para a missa. Assistiam também à celebração e, discretamente, eram sempre os últimos a sair, regressando à casa do bispo para se refugiarem novamente.
No entanto, espiões infiltrados revelaram o esconderijo e os preparativos ao inimigo. Cerca de três semanas antes da morte de Sebastião Gomes, grupos pró-integração atacaram a residência do bispo Ricardo com pedras e insultos durante três ou quatro dias. Os jovens independentistas responderam também com pedras, o que levou os atacantes a recuarem.
Na noite de 27 de outubro de 1991, por volta das 22h, grupos pró-indonésios intensificaram o ataque à igreja de Motael, lançando pedras em direção ao interior. Um dos atacantes, que carregava uma pistola, juntou-se a outros três e conseguiu entrar no recinto da igreja.
Ao perceber a situação, Duarte ‘Leki kiik’ e o amigo Marcos ‘Iriak Siak’ avançaram para afastar os atacantes, armados apenas com pedras e paus. “Não tínhamos armas de fogo, nem catanas”, relembra. Marcos conseguiu derrubar um jovem chamado Afonso, apoderou-se da sua arma e correu de volta para a residência, chamando por Duarte, que estava a perseguir outro jovem até este se abrigar numa casa.
Quando se preparava para regressar à residência do bispo, Duarte notou que Afonso ainda estava vivo. Decidiu, então, terminar com a vida dele usando uma faca, e ele e Marcos ‘Iriak Siak’ arrastaram-no até à frente da igreja, perto de uma figueira. Empurraram também o carro dos atacantes para junto do corpo. Marcos voltou para o interior, mas Duarte ‘Leki Kiik’ permaneceu do lado de fora, sendo acompanhado pouco depois por outro amigo, José Nazaré.
Não demorou muito tempo até que os militares indonésios começassem a aproximar-se, pois os jovens, ao recuarem, haviam alertado os soldados de que Afonso não conseguira voltar da igreja. Ao ver os inimigos aproximarem-se, Sebastião Gomes saiu para se juntar aos companheiros.
“Sebastião, embora fosse um jovem humilde e simples, sentiu-se compelido a enfrentar os agressores”, contou ‘Leki Kiik’. Segundo ele, Sebastião conseguiu derrubar um militar, mas foi logo alvejado com três disparos fatais. Ao ver a cena, perto da meia-noite, Duarte lembra-se de Sebastião deitado junto a um coqueiro, imóvel, com o corpo virado para leste.
O militar levantou-se e retirou a lipa que cobria a sua arma, revelando uma metralhadora. Em seguida, apontou a mira para uma árvore próxima da igreja, onde atualmente se encontra a estátua de Santo António. “Estavam a tentar afugentar-nos para conseguirem levar o corpo de Sebastião Gomes”, contou Duarte ‘Leki Kiik’, que permaneceu no seu lugar, enquanto o amigo foi para dentro da igreja.
Quando o militar apontou a arma para a porta onde Duarte ‘Leki Kiik’ estava, ele fugiu para dentro da igreja, mas continuava a tentar observar o corpo. “Se eles conseguissem levar o corpo, iam mentir, dizendo que não mataram ninguém e que nós é que tínhamos matado um deles”, afirmou ‘Leki Kiik’.
Pouco depois, ao som do sino da igreja tocado por outro amigo, jovens locais reuniram-se, e com a chegada do governador Mário Carrascalão, que recebeu um telefonema dos bispos, os militares recuaram, permitindo a retirada do corpo de Sebastião para o interior da igreja. Mais tarde, o então Bispo Dom Ximenes Belo visitou o corpo.
Quando o bispo regressou, já era de manhã, e os militares indonésios voltaram à igreja de Motael. Detiveram cerca de dez jovens independentistas atrás da igreja e ordenaram que tirassem as camisas. Os jovens que tinham vindo ao local atraídos pelo som do sino rodearam o grupo e os militares. A multidão desorientou os soldados, e, aproveitando a distração, alguns dos detidos conseguiram fugir, escapando entre a aglomeração, incluindo Duarte ‘Leki Kiik’.
Memória para o futuro
Duas semanas após a morte de Sebastião Gomes, os jovens decidiram realizar a terceira manifestação, a 12 de novembro de 1991. Este protesto culminou no massacre de Santa Cruz, um dos momentos mais trágicos na luta pela independência de Timor-Leste. Filmado por Max Stahl, que coincidentemente viria a falecer na mesma data, 30 anos depois, o massacre ganhou visibilidade internacional graças aos esforços da jornalista e ativista de direitos humanos Saskia Kouwenberg, que conseguiu levar as imagens para fora do país. A partir daí, o mundo soube da brutalidade que se vivia em Timor-Leste.
Jaime Soares relembra que o risco de lutar pela independência era enorme, tanto para os jovens como para os guerrilheiros e as famílias que os ajudavam secretamente. Muitos jovens foram sequestrados, detidos, mortos ou simplesmente desapareceram. “Quando havia uma falha de luz à noite, no dia seguinte já sabíamos que algum jovem tinha desaparecido”, contou Jaime Francisco Soares.
“A juventude da resistência era corajosa, fazia tudo ao seu alcance para alcançar a independência, mesmo sem saber quando a conseguiriam”, salientou. Explicou que havia uma união muito forte entre eles, apesar das diferenças de afiliações a grupos de artes marciais e de pensamento. O objetivo era comum e claro: a independência.
Jaime apelou aos jovens de hoje que sigam o exemplo da sua geração. Destacou que o papel da juventude atual é promover o desenvolvimento e a prosperidade do povo timorense. “Quero que a juventude de hoje seja como a nossa, mantendo a unidade nacional. Com unidade, há estabilidade”, concluiu.
Excelente texto.
Obrigada pela partilha de novos pormenores.
A história é um marco na vida da sociedade.