Sem prazo para decidir, José Ramos-Horta avalia a concessão de perdões presidenciais a reclusos condenados por crimes como homicídio e violação sexual. A proposta está a gerar indignação entre juristas, organizações de direitos humanos e vítimas, que alertam para o risco de impunidade e desvalorização da justiça.
À espera da decisão do Presidente da República, José Ramos-Horta, o ministro da Justiça, Sérgio Hornai, confirmou que a lista de reclusos proposta para indulto inclui condenados por crimes de homicídio, violação sexual, furto, roubo e ofensas corporais. No entanto, não especificou quantos reclusos estão condenados pelos crimes mais graves.
O direito de conceder indulto cabe ao Presidente da República e está consagrado na Constituição da República Democrática de Timor-Leste (CRDTL). A atual Lei n.º 20/2023, sobre a Conceção do Indulto e da Comutação de Pena, não exclui nenhum tipo de crime nem exige que o condenado tenha cumprido parte da pena ou demonstrado bom comportamento. A única exigência legal são razões humanitárias, nomeadamente a idade ou o estado de saúde do recluso.
O jurista Sérgio Quintas considera que a atual legislação “só serve para enfraquecer a justiça” e compromete a dignidade do Estado. “Ao conceder indulto a estes crimes, o Estado está a ajoelhar-se perante criminosos”, afirmou. Citando o artigo 122.º do Código Penal, que estabelece que o indulto extingue total ou parcialmente a pena, questiona: “Mas que perdão é este? Não pode abranger crimes que destroem a sociedade, como violação sexual, homicídio ou corrupção.”
Para Sérgio Quintas, perdoar tais crimes é abrir caminho a novos abusos, criando uma imagem de impunidade. “O indulto deixou de ser um instrumento para responder a situações excecionais dos reclusos ou das suas famílias. Tornou-se um meio para os poderosos atingirem os seus objetivos. Com isso, Timor-Leste torna-se um país onde se tolera o abuso sexual.”
O jurista questiona também a razão pela qual a lista de reclusos proposta para indulto ainda não foi tornada pública, defendendo que já não se trata de segredo de justiça.
Ana Paula Marçal, diretora da JSMP (Judicial System Monitoring Programme), concorda que conceder indulto neste contexto desvaloriza o trabalho do sistema judicial. Recordou que, na altura da alteração da lei, a JSMP defendeu a manutenção de critérios de exclusão, propondo que crimes como homicídio, violação sexual, corrupção, crimes contra o Estado, branqueamento de capitais, tráfico de droga e terrorismo não fossem suscetíveis de indulto, e que fosse exigido o cumprimento parcial da pena.
O Provedor dos Direitos Humanos e Justiça, Virgílio Guterres, partilha da mesma posição. “O país não tem pena perpétua e a pena máxima é de 30 anos. Isso já é uma consideração misericordiosa que respeita os direitos humanos”, sublinhou. Para o Provedor, os reclusos devem cumprir as penas impostas pelos tribunais, a não ser que as próprias vítimas proponham ou aceitem o perdão. “Mesmo que morram na prisão, isso faz parte da educação cívica e moral.”
Confrontado com as críticas, o ministro da Justiça limitou-se a dizer: “Não falo da lei anterior, falo da lei em vigor.” Acrescentou que o mais importante é que os reclusos em causa já foram julgados e condenados. Destacou ainda que a família, os advogados ou os serviços prisionais podem submeter um pedido de indulto ao Presidente da República.
A alteração da lei deve ser feita pelo Parlamento Nacional. A bancada da Frente Revolucionária de Timor-Leste Independente (FRETILIN) apresentou uma proposta para reverter as mudanças aprovadas, mas não obteve sucesso, já que a maioria dos deputados apoiou a nova versão. Duarte Nunes, líder da bancada do Congresso Nacional para a Reconstrução de Timor-Leste (CNRT), declarou que o tema poderá voltar a debate caso a lei revele impactos negativos para a sociedade.
“A atual lei está a provocar fortes reações na sociedade. Isso demonstra que tem consequências reais, principalmente para as vítimas. Como se sentiriam os deputados se as suas próprias filhas fossem vítimas? Ficariam satisfeitos com esta lei?”, questionou Ana Paula Marçal.
Impunidade e injustiça?
Questionado sobre se o indulto a crimes como homicídio e abuso sexual pode ser considerado justo para as vítimas, o ministro da Justiça recusou-se a tomar uma posição. Argumentou que está apenas a cumprir a lei e que “é a lei que deve dizer se é justo ou não”.
Sérgio Hornai lamentou que ainda ocorram crimes de abuso sexual contra menores e apelou à sociedade para trabalhar na prevenção da criminalidade organizada e dos crimes graves. Defendeu também uma investigação rigorosa, baseada em provas e conduzida com imparcialidade e objetividade, para garantir justiça às vítimas. “A violação sexual é um crime público e os autores devem ser responsabilizados devidamente.”
Quando confrontado com a ideia de que o indulto transmite uma mensagem de impunidade, o ministro negou. “Essas pessoas já foram julgadas e estão a cumprir pena. O indulto é concedido apenas por razões humanitárias.”
Para o Provedor Virgílio Guterres, o indulto pode ser aceitável em casos de reclusos que necessitam de cuidados médicos contínuos e não podem permanecer na prisão. “Nessas circunstâncias, é tolerável.” No entanto, defende que essas razões devem ser comunicadas às vítimas e que estas devem ter oportunidade de opinar. “O verdadeiro perdão deve vir das vítimas.”
“Se, pelo menos, os reclusos pedissem desculpa, talvez as vítimas ponderassem a sua condição. Mas o ex-padre Richard Daschbach nunca pediu desculpa. Por isso, acredito que não merece perdão”, afirmou o Provedor.
Recorde-se que, no artigo publicado em 2021 pelo jornalista Ian Lloyd Neubauer na South China Morning Post, é referido que o ex-padre Richard Daschbach admitiu os crimes de que era acusado sem demonstrar arrependimento. Neubauer não o entrevistou diretamente nesse contexto, mas anos antes, quando ainda desconhecia os abusos. Após a publicação da notícia em Timor-Leste, o jornalista contactou José Belo, autor da investigação local, que lhe confirmou que Daschbach assumiu os crimes sem mostrar qualquer remorso.
Tanto o Provedor como a diretora da JSMP e o jurista Sérgio Quintas defendem que conceder perdão a criminosos sem ouvir as vítimas e sem que tenham cumprido os termos das suas sentenças é encorajar a impunidade. “Assim, continuam a agir como se pudessem sair da prisão a qualquer momento”, alertou Guterres.
“Cumprir apenas alguns anos não contribui para a luta contra a pedofilia. Encoraja a impunidade”, reforçou Sérgio Quintas.
Para Ana Paula Marçal, o Presidente da República deve colocar-se no lugar das vítimas antes de decidir. “Principalmente nos casos de abuso sexual de menores. Foram crianças privadas da infância, tiradas das suas casas e afastadas do seu meio familiar.”
Segundo a diretora da JSMP, muitas destas vítimas ainda têm pesadelos, não receberam apoio psicológico adequado e vivem com traumas. A rede de apoio — que inclui famílias, ONG’s e entidades governamentais — é insuficiente devido à falta de recursos.
Essa carência limita também as ações de sensibilização em zonas rurais. “Sem acesso à informação e sem proteção institucional, muitas vítimas acreditam que é esse o seu destino”, alertou.
O Provedor sublinha que a prioridade do Estado deve ser garantir a recuperação e a dignidade das vítimas, e não aliviar a situação dos reclusos. “Ter compaixão pelos culpados sem considerar as vítimas é um ato de crueldade.”
O jurista Sérgio Quintas explicou que morrer na prisão não significa que o recluso foi condenado a pena perpétua. “Significa apenas que está a cumprir a pena legalmente estabelecida. Se adoecer e morrer na cadeia, é a consequência.”
Acrescentou que todos os crimes têm uma moldura penal definida e que essa pena deve ser cumprida. “Confundir o cumprimento da pena com pena perpétua é um erro.”
Ana Paula Marçal acrescentou que o regresso de reclusos ao convívio com vítimas ou familiares pode gerar novos traumas e tensões. “Já houve pessoas que morreram na prisão enquanto cumpriam a sua pena. Porque é que essas não foram indultadas? E agora querem conceder indultos só porque não querem que certos reclusos morram na cela? Porquê? Isto revela que algumas pessoas estão a ser tratadas com mais privilégios do que outras”, criticou.