Fotos do casamento da assessora da Presidência da República de Timor-Leste com a sua parceira de longa data agitaram as redes sociais. De um lado, comentários raivosos, homofóbicos e discriminatórios, do outro, palavras de carinho e de incentivo ao casal. A cerimónia, que teve lugar na Austrália, no último fim de semana, contou com a presença do chefe de Estado timorense, José Ramos-Horta.
O casamento civil da ativista e assessora da Presidência da República de Timor-Leste, Bella Galhos, com a sua parceira Iram Saeed, gerou inúmeras reações preconceituosas e discriminatórias que inundaram as redes sociais nos últimos dias. A cerimónia, que teve lugar em Darwin, na Austrália, no último sábado (20.07), contou com a presença do presidente timorense, José Ramos-Horta.
Logo após as primeiras partilhas de fotos do evento, muitas pessoas começaram a proferir insultos homofóbicos contra o casal, evocando a cultura e a religião para justificar aquilo que dizem ser “antinatural”. O tom ofensivo dos comentários mereceu reações de várias pessoas em apoio ao casal, e de figuras públicas, incluindo a própria Bella Galhos. Em conversa com o Diligente nesta segunda-feira (22.07), a ativista recordou a entrevista à TVE-T, no início do ano, em que lamenta que as pessoas tenham medo de ver casais do mesmo sexo e não olhem para os inúmeros casos de violência sexual na nação.
“Esta mentalidade atrasada não ajuda as pessoas e nem o país a progredir. Aqueles que se consideram moralmente corretos na sociedade são os que, muitas vezes, cometem crimes e atos desumanos. Podemos ver na prisão de Becora, que está cheia de heterossexuais, muitos homens presos por violarem meninas e crianças. E as pessoas têm receio de ver duas mulheres a casar, mas não têm medo de um homem que tem 10 mulheres, ou que anda por aí a violar meninas”, afirmou.
Numa entrevista recente ao Diligente, a diretora-executiva do Programa de Monitorização do Sistema Judiciário (JSMP, em inglês), Ana Paula Marçal, informou que a violência doméstica e a violação sexual são os crimes mais comuns em Timor-Leste, sendo cometidos por homens e tendo as mulheres como principais vítimas. A JSMP é a entidade responsável, desde 2001, por acompanhar e monitorizar a Justiça no país.
Bella Galhos e Iram Saeed vivem juntas há 15 anos e têm uma filha adotada. Escolheram casar na Austrália devido à falta de reconhecimento legal para a união entre pessoas do mesmo sexo em Timor-Leste.
O presidente da República, José Ramos-Horta, em declarações à imprensa nesta segunda-feira (22.07), disse que marcou presença na cerimónia por respeito ao casal, enfatizando que Bella Galhos “é veterana e contribuiu muito na luta pela independência do país”.
“Não podemos discriminar as pessoas com base na orientação sexual. Acredito na Constituição, nos direitos humanos e nos valores da fraternidade e humanidade. Recordo a mensagem do Papa Francisco, e digo que não pode haver violência, discriminação e exclusão dos filhos com base na sua orientação sexual. Temos de acolher estas pessoas, mesmo que não sigam a doutrina da religião sobre o casamento”, afirmou o chefe de Estado.
No ano passado, Bella Galhos, que também é diretora da Organização Não-Governamental (ONG) Arcoiris, que defende a população LGBTQIA+, foi incluída na tradicional lista organizada pela BBC (emissora pública do Reino Unido) das 100 mulheres mais influentes no mundo. A história de vida de Isabel Antónia da Costa Galhos foi sempre marcada por muita luta.
Discurso de ódio e responsabilização
O jurista e professor timorense, Armindo Moniz Amaral, é uma das vozes que condenam os comentários homofóbicos contra o casal, considerando-os “um tipo de discurso de ódio contra a comunidade LGBTQIA+”.
Num comunicado de imprensa divulgado no domingo (21.07), o JU’S Jurídico Social também chamou a atenção para a natureza preconceituosa e violenta das publicações contra Bella Galhos e Iram Saeed.
“Discurso de Ódio contra pessoas LGBTQIA+ refere-se a qualquer tipo de comunicação, seja ela verbal, escrita ou oral, ou comportamental, que ataca, através de uma linguagem ofensiva e discriminatória, ou de ações violentas contra uma pessoa ou grupo, com base na sua orientação sexual ou identidade de género”, destaca o documento.
De acordo com o JU,S, o discurso de ódio pode ser enquadrado como incitação ao crime (artigo 189.º do Código Penal) ou ameaça (artigo 157.º do Código Penal). Além disso, é considerada uma circunstância agravante (ao abrigo do artigo 52.º, alínea e) um crime que tenha sido motivado por “razões racistas ou qualquer outro sentimento discriminatório por causa do género, ideologia, religião ou crenças da vítima, da etnia, da nacionalidade a que pertença, em razão do sexo ou das suas orientações sexuais, ou de enfermidade ou diminuição física de que sofra”.
O comunicado refere ainda que, se o discurso de ódio vem de um funcionário público, “pode representar uma violação do Código de Ética da Função Pública, que determina que todos os funcionários têm o dever de implementar e promover o respeito pelos direitos humanos, pelo Estado de direito e pelos princípios democráticos”.
Existem leis específicas para a Polícia Nacional de Timor-Leste (PNTL), para professores e profissionais de saúde, entre outros, que determinam deveres semelhantes. Assim, “se um funcionário público proferir um discurso de ódio publicamente pode incorrer num processo disciplinar, devidamente avaliado pela Comissão da Função Pública e outras entidades públicas. Da mesma forma, se o discurso de ódio for feito por um chefe de suco ou aldeia, também pode resultar num processo de responsabilização”, lê-se no documento.
Um Código Civil que não obedece à Constituição
As reações ofensivas de boa parte das pessoas ao casamento civil de Bella Galhos e Iram Saeed também serviram, na opinião de Armindo Amaral, para evidenciar a confusão que muitas pessoas fazem sobre o conceito de moral.
“A moral privada é relativa à pessoa, individual, a um grupo, ou a uma religião. No caso da religião, a base da moral é, por exemplo, a Bíblia, o Alcorão ou qualquer outro escrito religioso. Acabam por ser ideais dogmáticos, que não são debatidos publicamente, já que não podemos impor uma moral religiosa como lei em detrimento da outra. Já a moral pública é, no nosso caso, para todos os timorenses e a sua base é a Constituição e as restantes leis e decretos-leis. São instrumentos para garantir a justiça para todos, independentemente das religiões, raças e orientação sexual,” explicou.
Relativamente à validade jurídica da união do casal em Timor-Leste, o jurista ressaltou que o casamento é constitucional, porque a Constituição de Timor-Leste, no artigo 16.o, garante “a igualdade de todos os cidadãos perante a lei” e proíbe “qualquer forma de discriminação com base na cor, raça, estado civil, sexo, origem étnica, língua, posição social, situação económica, convicções políticas ou ideológicas, religião, instrução ou condição física ou mental”.
No entanto, a atual legislação do Código Civil timorense reconhece o casamento apenas entre pessoas heterossexuais, o que, segundo o jurista, contradiz a Constituição. “Temos de alterar o Código Civil. Sugiro à Provedoria dos Direitos Humanos e Justiça (PDHJ) e à Procuradoria Geral da República que façam uma fiscalização abstrata da lei”, observou o jurista.
Por sua vez, o titular da PDHJ, Virgílio Guterres, destacou que a Constituição de Timor-Leste, no artigo 39.o, menciona apenas “partes” ou “cônjuges”, sem especificar género – homem ou mulher –, o que reflete o espírito do Estado laico, que separa religião e Estado.
“A PDHJ vai propor uma revisão do Código Civil para o alinhar com a Constituição. Esta é uma forma de assegurar os direitos dos casais homossexuais no país”, afirmou.
O provedor ainda aproveitou para fazer um pedido aos cidadãos timorenses que se sentiram no direito de insultar e criticar Bella Galhos e Iram Saeed. “Faço um apelo ao público, para que abrace esta nova realidade e saia da ‘caverna’ da discriminação. A PDHJ reconhece a coragem do casal. Os meus parabéns a Bella Galhos e à sua parceira, e viva a liberdade”, declarou Virgílio Guterres.
Apesar dos comentários discriminatórios, as muitas manifestações de apoio ao casal são um sinal de esperança e demonstram que muitos timorenses percebem a importância de se construir uma sociedade que respeite a diversidade e valorize todas as formas de amor.
Gostaria de saber se o PR de acordo com a constituicao, teve autorizacao do Parlamento de TL para dar uma “escapadinha” ao estrangeiro.