Conectar os pontos: IA, crise climática e a missão do jornalismo

Num mundo onde vídeos falsos decidem eleições e as inundações se tornam rotina, o jornalismo enfrenta dois gigantes em simultâneo: a crise climática e a inteligência artificial/Foto: JAK

Num mundo onde algoritmos moldam opiniões e o clima extremo se intensifica, o jornalismo enfrenta novos desafios e responsabilidades. Entre deepfakes e desastres naturais, os jornalistas procuram ligar os pontos, informar com rigor e inspirar mudanças. Na Conferência Mundial de Jornalistas de 2025, discutiu-se como a inteligência artificial pode ser aliada — ou ameaça — numa era em transformação.

O jornalismo nunca foi uma tarefa fácil. Mais do que uma fonte de informação para o público, tem sido motor de progresso. Na era da inteligência artificial e das alterações climáticas, o papel dos jornalistas torna-se cada vez mais crucial.

A Conferência Mundial de Jornalistas de 2025 (WJC2025), realizada de 31 de março a 4 de abril, na Coreia do Sul, pretendeu destacar a importância do jornalismo na abordagem das questões climáticas e o potencial da inteligência artificial (IA) como aliada de um jornalismo de qualidade. Mais de 63 jornalistas de 52 países participaram no evento.

Organizada anualmente desde 2013 pela Associação de Jornalistas da Coreia (JAK, na sigla em inglês), esta conferência é um espaço de encontro e partilha de ideias entre profissionais de comunicação de diferentes partes do mundo.

Em Timor-Leste, os principais desafios enfrentados pelos jornalistas continuam a ser os ataques à liberdade de imprensa, a autocensura, salários baixos que não cobrem o essencial e a falta de formação adequada. A estes junta-se, tal como na Coreia do Sul, a carência de jornalismo aprofundado.

“Vivemos na era das redes sociais e tudo é muito rápido. Temos pouco tempo para fazer jornalismo de fundo”, reconheceu o presidente da associação, Park Jong Hyun. As mudanças da era digital e da IA colocam novos desafios ao jornalismo em todo o mundo.

IA: ferramenta ou ameaça na redação?

A inteligência artificial, com exemplos como o ChatGPT, da OpenAI, e o DeepSeek, da China, tem vindo a ser amplamente utilizada em diversos setores — incluindo o jornalismo. Como destacou Yin Chao, jornalista do China Daily, a IA pode ser uma ferramenta poderosa, desde que usada de forma ética e responsável.

Na prática jornalística, a IA pode tornar o trabalho mais eficiente: transcreve entrevistas rapidamente, analisa grandes volumes de dados e documentos, extrai ideias principais, sugere títulos e ângulos, e adapta conteúdos às preferências dos leitores.

É assim que Agnes Theodora, do Kompas Daily, da Indonésia, usa a IA no seu dia a dia. Tendo em conta o carácter urgente do jornalismo, acredita que a tecnologia pode ajudar os profissionais a trabalharem de forma mais eficaz.

A nível institucional, o jornal Kompas começou recentemente a usar IA para criar artigos explicativos e compilar conteúdos a partir de resumos de peças já publicadas. A iniciativa tem atraído muitos leitores.

Hwang Seok-há, do Busan Daily News, Coreia do Sul, recorreu à IA para cobrir um jogo de basebol — uma editoria nova para si — e conseguiu compreender siglas estatísticas em inglês com a ajuda da tecnologia.

Já Yun Ji Ro, diretora do grupo NEXT, e a sua equipa recorreram ao ChatGPT, videoconferências e folhas de cálculo colaborativas do Google para fazer investigação preliminar e reportagens sobre a COP29, centrando-se nas alterações climáticas na Ásia Central e no Cáucaso.

Na China, a IA ajudou a resolver um caso de roubo em apenas 10 minutos, analisando dados e rastreando o dinheiro.

Mas também na China surgiu um caso polémico: a voz de uma artista foi utilizada em audiolivros sem a sua autorização. Yin Chao reconheceu que há desvantagens no uso da IA, sobretudo quando os jornalistas se tornam excessivamente dependentes da tecnologia, correndo o risco de disseminar dados desatualizados ou errados.

Por isso, Agnes Theodora continua a escrever e editar manualmente, sobretudo quando trata de temas sensíveis ou ligados ao contexto local. “É essencial que os jornalistas sejam cautelosos com a IA, pois esta tecnologia pode, por vezes, gerar informações enganosas ou alucinações.”

Yin Chao alertou ainda para a violação de direitos de autor, uma vez que a IA pode aceder a conteúdos protegidos, incluindo material jornalístico. Na Turquia, durante a campanha eleitoral de 2023, um vídeo manipulado desacreditou vários candidatos — um exemplo do perigo dos deepfakes. “A indústria do jornalismo deve usar a IA com cuidado, assegurando a precisão dos conteúdos e protegendo o direito à informação e à privacidade”, defendeu Yin Chao.

Hwang Seok-ha lembrou o caso do New York Times, que processou a OpenAI por uso indevido de artigos no treino de IA. Na Coreia do Sul, a Associação de Jornais propôs alterações legislativas para proteger o conteúdo jornalístico.

Segundo Hwang, é essencial um quadro legal que garanta compensações justas. “Sem garantias legais claras, há um alto risco de comprometer a sustentabilidade do jornalismo”, frisou~.

Defende ainda que o uso de IA deve ser sempre divulgado ao público, e que imagens fotorealistas geradas por IA devem ser proibidas em notícias, a menos que devidamente identificadas.

Diana Fuentes acredita que é fundamental ouvir todas as partes na definição de políticas de IA nas redações. Propõe reuniões com o público para esclarecer dúvidas e aumentar a transparência.

IA vai substituir jornalistas?

Para Natalia Szewczak, do Business Insider Polónia, não. “Haverá sempre espaço para um jornalismo verdadeiro, fiável e aprofundado”, afirmou. A IA pode ser uma aliada útil para organizar dados e tornar o processo mais ágil, libertando tempo para investigação e aprofundamento.

Ainda assim, Yin Chao advertiu: jornalistas que não exercem pensamento crítico nem oferecem valor único correm o risco de serem substituídos.

Diana Fuentes reforçou a importância de formar jornalistas no uso da IA, já que surgem novas ferramentas todos os dias. A literacia mediática e o pensamento crítico são cruciais para todos — jornalistas e público —, especialmente num mundo de conteúdos manipulados.

A jornalista norte-americana defende que os profissionais devem identificar e rotular conteúdos falsos — mesmo que isso consuma tempo de reportagem. “Não podemos desistir. Eles querem cansar-nos. Não os deixem vencer.”

Como (re)ligar o público à informação climática

A cobertura consistente é essencial no jornalismo climático. Um estudo publicado em 2021 na revista Global Environmental Change alertava para a escassa atenção ao tema e para o desequilíbrio: há foco nas zonas urbanas e em projeções a longo prazo, o que gera desmotivação e fadiga climática.

Murray Brewster, correspondente da CBC, defende que as questões climáticas devem ser integradas em histórias variadas — desde segurança nacional a temas do quotidiano — para que o público perceba a sua relevância nas suas vidas e no mundo. “As alterações climáticas estão a tornar-se motor da geopolítica: do degelo no Ártico aos incêndios na Califórnia, passando por secas e migrações em massa”, afirmou.

Lembrou ainda o interesse de Donald Trump em comprar a Gronelândia, motivado pelos recursos naturais que o degelo tornou acessíveis. “Precisamos de ligar os pontos. Vivemos tempos perigosos, ambiental e geopoliticamente.”

Gianmarco Volpe, da Agenzia Nova, Itália, descreveu o impacto das alterações climáticas no país: invernos mais quentes, menos neve e prejuízos económicos em zonas que dependem do turismo de neve. Apelou a uma abordagem jornalística que mobilize o público, mostrando soluções e não apenas más notícias. “Os jornalistas podem iniciar movimentos. Contam, impulsionam.”

Reconheceu, contudo, os desafios: o público associa frequentemente o clima a disputas políticas e económicas. A saída dos EUA do Acordo de Paris dificulta alcançar os objetivos do Green Deal até 2050.

Tsegahun Asefa Shimekit também defende um foco em ações positivas para combater a fadiga climática.

Yun Ji Ro, do grupo NEXT, Coreia defende que “política, economia, cultura e até desporto devem ser vistos através da lente do clima — essa responsabilidade está nas vossas mãos.”

Realidade local, impacto global

Na Etiópia, apesar da poluição causada pelo desenvolvimento industrial, Tsegahun acredita que a reflorestação — com mais de 20 milhões de árvores plantadas — ajuda a equilibrar os impactos. O governo também tem investido em sensibilizar os estudantes.

Em Timor-Leste, os jornalistas continuam a relatar os desastres do quotidiano, mas ainda não ligam esses fenómenos às alterações climáticas. Algumas visitas guiadas têm procurado promover essa consciencialização.

O país adotou medidas como a política de “zero plástico”, mas esta durou apenas algumas semanas. Embora existam políticas ambientais, Timor-Leste continua a apostar na exploração de petróleo e gás com a Austrália, principal fonte de receitas.

Murray Brewster considera esta postura contraditória e apela aos jornalistas para abordarem o tema. “Acredito que a consistência é essencial: se escrevermos e observarmos de forma consistente, isso trará mudanças.”

A missão continua

Para Tsegahun, é urgente reforçar a cobertura baseada em factos, com verificação rigorosa e evidência científica — sobretudo numa era de desinformação.

O editor etíope sublinhou a importância da colaboração internacional entre jornalistas, para partilha de técnicas, denúncia de crises negligenciadas e criação de soluções conjuntas.

Para Yun Ji Ro, nenhum setor pode enfrentar a crise climática sozinho. “Adotar uma lente climática é hoje mais crucial do que nunca, num mundo fragmentado e cheio de desafios globais.”

Num mundo cada vez mais moldado por algoritmos e extremos climáticos, o jornalismo continua a ser a ponte entre o facto e o futuro. Cabe aos profissionais da informação não apenas relatar a realidade, mas também inspirar mudanças. A questão que fica é: o público está disposto a ouvir — e a agir?

Ver os comentários para o artigo

  1. Excelente peca jornalistica, parabens.
    Em TL o publico precisa de ter uma melhor educacao para agir, para embarcar nesta nova etapa para a senda do progresso. Como tudo neste mundo o AI tem os seus ques. Tecnologia nova a precisar de ter as arestas limadas. Nas maos de gente sem escrupulos e uma arma destruidora. WMD!

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