Como a leitura influencia o nosso cérebro

A leitura profunda tem um efeito calmante, distraindo a mente das preocupações e ativando o sistema parassimpático, responsável pelo relaxamento/Foto: IA

Sistemas de escrita estão entre as invenções mais revolucionárias da história. Eles são tecnologias complexas que vão além da representação de ideias. Enquanto as pinturas rupestres – outro exemplo da criatividade humana – retratavam animais, pessoas e eventos importantes, a escrita representa um avanço cognitivo, com a criação de sinais gráficos que associamos a sons e significados.

A escrita é um sistema artificial e codificado, que não surge de forma intuitiva. Por exemplo, ao ler a palavra ‘elefante’, reconhecemos os sons, as letras e os seus significados, mas não necessariamente compreendemos o motivo dessa associação. Não há uma conexão direta entre a representação gráfica (grafemas), o som (fonemas) e o animal em si; a relação entre eles é resultado de uma convenção.

Para termos uma ideia da complexidade de criar um sistema de escrita, arqueólogos e linguistas concordam que o sumério (c. 3200 a.C., no atual Iraque) e o maia (c. 300 a.C., na Mesoamérica) surgiram de forma independente. No entanto, ainda há dúvidas se o sistema egípcio (contemporâneo ao sumério), o do Vale do Indo (c. 2600 a.C., nas atuais regiões do Paquistão e Índia) e a escrita chinesa (c. 1200 a.C.) foram influenciados por outros sistemas. Todas as demais formas de escrita que conhecemos derivam de adoções ou adaptações de sistemas anteriores.

Esses códigos gráficos foram inicialmente desenvolvidos para documentar transações comerciais e atividades administrativas, como o controlo das reservas de alimentos, censos, a cobrança de impostos e a gestão dos bens da realeza. Com o tempo, passaram a registar eventos, mitos, preceitos religiosos, ideias, avanços técnicos e aspetos da vida quotidiana.

Ao longo da história, ler e escrever foi, quase sempre, um privilégio das elites burocráticas, sacerdotais, políticas e económicas. Desde os sumérios, passando pelos persas, pelo Egipto faraónico, pela Índia, pela China Antiga, por Atenas e Roma, pelos maias e astecas, até à Europa Medieval e às sociedades islâmicas, a leitura era uma prática de poucos. O domínio da escrita garantia não só o funcionamento administrativo dos governos, o controlo do comércio e a transmissão de conhecimentos, como também reforçava ideologias, mantinha o status quo e as distinções sociais.

Mesmo após a invenção da prensa de Gutenberg, em 1440, a Reforma Protestante do século XVI, que incentivava a leitura individual da Bíblia como prática religiosa, e a Revolução Científica dos séculos XVI e XVII, a leitura, embora mais difundida, continuava limitada a determinados grupos sociais.

Foi somente a partir do século XIX – como consequência da industrialização e da formação dos Estados nacionais, que precisavam fortalecer as suas identidades e contar com mão de obra alfabetizada – que alguns países europeus começaram a desenvolver políticas educativas, promovendo um acesso mais amplo à leitura e à escrita entre a população. Ainda assim, o analfabetismo e a baixa literacia continuaram elevados, sobretudo entre as mulheres e os mais pobres.

A oralidade e a escrita

A oralidade e a escrita são modos distintos, mas interligados, de comunicação. Ambos contribuem para a formação do pensamento e dos sistemas culturais. A escrita não substitui a oralidade, mas transforma a forma como as sociedades organizam e processam o conhecimento.

Em sociedades orais, o conhecimento circula de maneira dinâmica, com ênfase no ritmo e na repetição das informações. A escrita, por sua vez, promove uma reestruturação cognitiva, pois favorece um pensamento mais analítico e linear, além de permitir um maior foco no conteúdo. Embora a oralidade também possibilite formas sofisticadas de argumentação, a escrita facilita o desenvolvimento e a transmissão de conceitos abstratos e sistemáticos, como leis, filosofia, ciência e literatura.

Se, por um lado, a capacidade de falar é inata e o desenho surge como uma forma espontânea de expressão na infância, por outro, a escrita e a leitura são competências simbólicas adquiridas, que dependem de processos socioculturais e cognitivos, exigindo a aprendizagem de códigos complexos.

Os benefícios da leitura profunda

Nesta secção, vou apresentar algumas perspetivas sobre os benefícios da leitura. Isto poderá ser um bocado monótono. Se for esse o caso, salte para a próxima, não perderá nada de importante.

A perspetiva sociocognitiva enfatiza que a prática da leitura fortalece as habilidades discursivas, aprimora a interpretação de textos e o raciocínio crítico. A internalização da linguagem escrita amplia o pensamento abstrato, favorecendo o autocontrole e a capacidade de argumentação. Assim, a leitura não apenas aprimora a compreensão linguística, mas também modifica a maneira como pensamos e interagimos com o mundo. Por outro lado, a teoria da gramática gerativa sugere que a leitura reforça a capacidade linguística ao expor o leitor a novas estruturas sintáticas e semânticas.

Do ponto de vista antropológico, a leitura não é apenas um ato cognitivo, mas um fenómeno social que influencia o pensamento, a identidade e a estrutura das sociedades. Estudos indicam que a escrita e a leitura influenciam a memória, o raciocínio e a organização do conhecimento, interferindo nas relações de poder e na transmissão cultural. A escrita e a leitura tem o potencial de estruturar novas formas de conhecimento e de consolidar domínios simbólicos, fortalecendo a imaginação, a interpretação e a ressignificação de conteúdos socioculturais complexos.

Para a semiótica – estudo dos signos e da significação –, a leitura é um processo de interpretação que transforma a cognição e a perceção do mundo, tornando o pensamento mais reflexivo e abstrato. Por sua vez, a semiologia – estudo dos signos linguísticos –, enfatiza que a leitura fortalece a compreensão das relações entre significante (forma) e significado (conceito), aprimorando a habilidade de interpretar diferentes códigos linguísticos.

Neste sentido, a leitura não é um ato passivo, ela pode ser vista como uma interação dinâmica entre autor e leitor, na qual o cérebro ativa múltiplos processos de inferência e associação para construir sentido. Além disso, a leitura constitui uma experiência de prazer textual, na qual o leitor não apenas decodifica, mas também recria e se apropria ativamente dos significados.

A psicologia e as neurociências mostram que a leitura ativa diversas regiões cerebrais, criando e reforçando conexões entre diferentes áreas. Esse processo estimula a neuroplasticidade, promovendo mudanças estruturais e funcionais no cérebro que aprimoram as nossas habilidades cognitivas, emocionais e sociais.

Ao sermos expostos a novas ideias, vocabulários e perspetivas, o cérebro processa e armazena informações complexas, o que fortalece a agilidade mental, expande a consciência metalinguística, melhora a capacidade de aprendizagem e ajuda a mantê-lo ativo, reduzindo o risco de doenças neurodegenerativas, como o Alzheimer.

A leitura profunda exige foco, o que aprimora a concentração. Ela ativa o hipocampo, iniciando a codificação de novas informações, que se consolidam como memória de longo prazo. Seguir enredos e detalhes também estimula a memória de trabalho, utilizada na realização de tarefas diárias e na aprendizagem. A leitura profunda tem um efeito calmante, distraindo a mente das preocupações e ativando o sistema parassimpático, responsável pelo relaxamento. Também melhora a qualidade do sono, especialmente quando realizada em formato impresso, longe das telas.

Dessa forma, a leitura não só enriquece o nosso conhecimento e vocabulário, como também mantém o cérebro ativo. A leitura profunda melhora a nossa capacidade de interpretar e dar sentido às informações, descodificar e reconstruir significados, influenciando a maneira como percebemos e interagimos com o mundo.

Os cuidados a ter com a forma como lemos

A leitura não é uma panaceia que resolve todos os problemas. Não podemos esquecer que a escrita e a leitura não são neutras.

Os textos carregam vieses, refletem ideologias e podem ser utilizados como instrumentos de controlo social. A seleção do que é publicado, divulgado e legitimado pode reforçar certas narrativas enquanto silencia outras.

No decorrer da história, a escrita tem servido tanto para preservar e difundir o conhecimento como para impor hegemonias culturais, restringir acessos e perpetuar desigualdades.

Para além disso, cada leitor traz consigo um repertório cultural, experiências e valores que influenciam a interpretação dos textos. A compreensão daquilo que lemos é moldada pelas nossas vivências, pelo contexto histórico e pelas estruturas de poder em que estamos inseridos.

Atualmente, enquanto as tecnologias digitais ampliam o acesso à informação, também incentivam o consumo acelerado e fragmentado. A leitura superficial em feeds e redes sociais habitua o cérebro a estímulos rápidos, comprometendo o investimento na leitura profunda.

A leitura, por si só, não nos torna automaticamente mais inteligentes, éticos, saudáveis ou empáticos. O impacto que ela tem em nosso desenvolvimento depende da forma como lemos, das reflexões que fazemos e de como aplicamos o conhecimento adquirido. Ler de maneira superficial ou sem questionamento pode até limitar a nossa compreensão e reforçar preconceitos.

Por isso, ler vai além de decifrar palavras; é preciso desenvolver uma leitura profunda, reflexiva e atenta. Mais do que a quantidade de leitura, importa refletir sobre o que lemos, como lemos e, sobretudo, de que forma analisamos criticamente os textos, questionando as suas intenções, contextos e efeitos sociais.

Como os hábitos se formam

A formação de hábitos não é algo simples e depende da repetição consistente de um comportamento. Cada vez que um hábito é reforçado, as conexões neuronais associadas a ele ficam mais fortes, tornando a sua execução mais automática. Esse processo, frequentemente descrito como um ‘ciclo de hábitos’, envolve três elementos principais: o estímulo que funciona como um gatilho para a ação; o comportamento em si; e a recompensa, que reforça a continuidade do ciclo. Quanto mais vezes esse ciclo se repetir, maior será a probabilidade de o comportamento se tornar um hábito.

O ambiente é outro fator determinante neste processo. Situações específicas, como um local, um horário ou até um cheiro, podem funcionar como estímulos automáticos para determinados comportamentos. Estes gatilhos ambientais reduzem a dependência da força de vontade, transformando ações intencionais em hábitos. Um exemplo comum é a associação entre a pausa para o café e o ato de verificar o telemóvel ou, ainda, fazer o sinal da cruz ao passar em frente a uma igreja.

Além disso, a rapidez com que a recompensa é percebida influencia a consolidação do hábito. Comportamentos que oferecem benefícios imediatos tendem a ser mais facilmente incorporados à rotina do que aqueles cujos efeitos positivos demoram mais tempo para serem alcançados.

A imitação, especialmente de pessoas que admiramos, constitui um fator importante na formação de hábitos. Ao observarmos comportamentos repetidos por modelos que respeitamos ou que são culturalmente aceites, tendemos a replicá-los, sobretudo em contextos sociais ou familiares.

No entanto, para que um hábito se estabeleça de forma duradoura, ele precisa fazer sentido para a pessoa. Hábitos alinhados com os objetivos e valores pessoais exigem menos esforço e são mais fáceis de manter.

Por fim, o impacto emocional também tem um papel decisivo na formação de hábitos. Emoções positivas associadas a um comportamento podem acelerar o processo de automatização, enquanto o stresse e a ansiedade podem dificultá-lo. Se um novo hábito estiver ligado a experiências desagradáveis, há uma maior tendência para que ele seja abandonado.

Ler não é uma obrigação, mas uma atividade lúdica e de descoberta

A leitura profunda – aquela que exige tempo e reflexão – é fundamental para o desenvolvimento da interpretação textual, do pensamento crítico e da capacidade de argumentação escrita. Baixos índices de leitura podem comprometer o desempenho académico e profissional dos jovens, bem como a sua habilidade de expressão e compreensão de discursos mais complexos. Além disso, podem acentuar desigualdades educativas e sociais, reforçando narrativas e dinâmicas de poder que limitam a participação ativa na sociedade. Por isso, estimular a prática da leitura profunda e analítica passa também por uma política de Estado e por um projeto de sociedade.

Nesse sentido, é importante encarar a leitura não como uma obrigação, mas como uma atividade lúdica e benéfica para a saúde física e mental. Torna-se mais fácil adquirir esse hábito e incentivar as crianças a desenvolverem a prática da leitura quando ela é percecionada como uma experiência prazerosa, um momento de lazer, uma fonte de (auto)conhecimento e aprendizagem, que nos permite usar a imaginação, ao mesmo tempo que se conecta às nossas experiências pessoais e sociais e nos apresenta diferentes ideias e visões de mundo.

Alessandro Boarccaech é psicólogo, especialista em psicologia clínica, psicoterapeuta, semiótico e Ph.D. em antropologia.

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  1. Sempre li um livro por mes, mas como a visao aos 70 e fraca e a fome aperta, comecei a comer livros, mata-me a fome ao mesmo tempo que me ilucida a desgraca que vai pelo mundo fora.

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