Uma criança com transtornos mentais sofre abusos recorrentes em Timor-Leste, enquanto autoridades ignoram provas claras e refugiam-se em burocracias. Promessas de proteção não saem do papel, deixando o menor vulnerável. Quando algo pior acontecer, quem se responsabilizará?
Um vídeo recente com duração de 30 segundos, amplamente partilhado no Facebook e TikTok, mostra uma criança com transtornos mentais a ser forçada por um grupo de indivíduos a beijar um homem. Durante a gravação, os agressores incentivam e humilham a criança, enquanto outros observam e se divertem com a situação.
O comandante da operação da PNTL no município de Díli, inspetor-chefe da polícia, José Luís Amaral, em entrevista à imprensa, afirmou que a PNTL de Díli identificou os suspeitos e capturou cinco deles. Relativamente ao avanço do processo, José Luís Amaral afirmou que depende da queixa da família e das autoridades responsáveis pela proteção dos direitos das crianças.
Contudo, esta posição da PNTL revela uma grave falha no entendimento do enquadramento legal. O jurista Armindo Moniz Amaral reforçou que casos como o desta criança configuram crimes públicos, ou seja, não necessitam de queixa formal para que as autoridades iniciem a investigação e tomem medidas. “O Estado deve assumir a sua responsabilidade e proteger crianças em situação de vulnerabilidade. Este caso reflete um fracasso sistémico”, afirmou o jurista, criticando a postura passiva da PNTL perante uma situação que exige atuação imediata.
“Basta ouvir no rádio ou ver nos meios de comunicação para denunciar. Sendo um crime público, não depende da família para avançar, e o investigador deve estar ciente disso”, explicou Armindo, apontando uma possível negligência por parte das forças policiais. Destacou ainda que a Lei da Proteção de Crianças e Jovens em Perigo é clara ao determinar que crianças em condições de vulnerabilidade, seja por problemas morais ou mentais, devem ser protegidas pelo Estado, sem que a ação dependa de terceiros.
Armindo sublinhou que este caso evidencia a falta de mecanismos efetivos de proteção e prevenção. “Estas crianças não podem ser usadas para interesses privados, como aconteceu no caso do vídeo mais recente da criança a beijar um adulto”, reforçou.
Para evitar situações semelhantes no futuro, o jurista destacou a necessidade urgente de o governo criar locais de acolhimento e proteção para crianças em risco, especialmente para aquelas com deficiência, doenças mentais ou outras condições de vulnerabilidade. Além disso, apelou à sociedade para que não feche os olhos a estas violações e denuncie imediatamente, assumindo também a sua responsabilidade na proteção das crianças.
A Presidente do Instituto Nacional de Defesa dos Direitos das Crianças (INDDICA), Dinora Granadeiro, lamentou a recorrência de abusos contra a criança, reforçando que este não é um caso isolado. “Estamos a coordenar com a PNTL para identificar todos os autores e com o Ministério da Solidariedade Social e Inclusão (MSSI) para garantir a proteção do menor. Já foi solicitado que a criança seja acolhida no Centro de Apoio à Saúde, S. João de Deus, em Laclubar, para assegurar a sua segurança e cuidados adequados”, afirmou.
No entanto, esta informação foi desmentida pelo diretor do centro, Dr. Elvis do Rosário, que esclareceu que não receberam qualquer contacto sobre o caso. O psicólogo sublinhou ainda que o Centro de Saúde Mental São João de Deus, em Laclubar, oferece tratamento agudo e reabilitação psicossocial exclusivamente para adultos, não tendo capacidade para atender crianças ou adolescentes.
Já Dinora Granadeiro explicou que a família tem dificuldade em protegê-lo, uma vez que vive com a avó e a mãe, ambas sem condições de garantir o controlo necessário devido à sua condição mental.
Histórico de abusos e negligência
Em fevereiro deste ano, o Diligente reportou outro caso de abuso e exploração envolvendo o mesmo menor, destacando que a criança, com apenas 13 anos, tem sido alvo recorrente de bullying, agressões físicas e humilhações públicas.
Num dos vídeos analisados na altura, a criança foi incentivada por um grupo de jovens a lutar com outro indivíduo, também com transtornos mentais. Os atos foram filmados para diversão e partilhados nas redes sociais, gerando milhares de reações de internautas que normalizaram o bullying como uma forma de entretenimento.
Em agosto de 2023, um outro vídeo viral mostrou a criança a ser agredida por dois jovens dentro de um veículo, recebendo pancadas, pontapés e insultos. Apesar das provas claras, os agressores foram libertados pela PNTL, e o caso não avançou devido à dificuldade da vítima em relatar os factos.
O investigador do Ministério Público, Júlio dos Santos, classificou o caso como crime semipúblico, dependente da vontade da vítima, que, junto com a avó, decidiu não prosseguir. Apesar de ser menor e de haver um vídeo explícito, a criança foi interrogada e pressionada a reviver o trauma.
Júlio dos Santos afirmou não ter visto o vídeo, justificando a necessidade de depoimentos. Alegou ainda que a violência teria sido encenada pela criança e pelos agressores, supostamente em troca de comida. O caso foi arquivado, sem que o vídeo fosse considerado como prova.
O Banco Nacional do Comércio de Timor-Leste (BNCTL) também usou a imagem do menor numa campanha publicitária, justificando tratar-se de uma “figura pública”. Esta decisão foi amplamente criticada por especialistas, que consideraram a ação uma exploração dos direitos da criança.
Quando o sistema falha
A avó, Delfina Martins, confessou ao Diligente, em fevereiro deste ano, que não consegue proteger o neto, que frequentemente foge de casa e vagueia pelas ruas da cidade. “Já tentei tudo para o manter seguro, mas não consigo. Só me resta esperar por ajuda”, desabafou, deixando claro o desamparo em que vive.
Enquanto isso, a PNTL insiste em burocracias, afirmando que precisa de uma queixa formal da família para agir, e a INDDICA promete esforços para encaminhar a criança para o Centro de Laclubar e sensibilizar a população. Mas as promessas continuam vazias: o menino permanece na rua, vulnerável, exposto a novos abusos e ao desprezo de um sistema que o deveria proteger.
Apesar de reconhecerem a gravidade do caso, nenhuma entidade apresentou uma solução concreta. A criança continua desrespeitada, explorada e ignorada, mesmo depois de se tornar o foco de exposição mediática. Não faltam leis: a Lei nº 6/2023 é clara ao definir que é responsabilidade do MSSI, INDDICA, polícia, entidades judiciais e organizações civis proteger crianças em perigo — seja por maus-tratos, negligência, abusos ou exploração. No entanto, a proteção que essa lei promete existe apenas no papel.
O menor, mais do que uma vítima, é o espelho de um sistema que falha repetidamente em proteger os mais frágeis, enquanto a sociedade normaliza o abandono e o sofrimento. A proteção de crianças em risco não pode ser uma questão de “sensibilização” ou “burocracia”. É uma obrigação moral, para além de legal, que tem sido escandalosamente ignorada.
Por quanto tempo mais continuarão a ignorar? O sistema tem falhado, e esta criança é a prova viva de que as falhas têm consequências devastadoras. E quando algo ainda mais grave lhe acontecer, como já aconteceu a tantas outras crianças desamparadas, quem se vai responsabilizar?
Triste, para mim e sinal de sociedade doentia. Ha sempre cura ao virar da esquina.