Durante dezassete anos, Maria (nome fictício) sobreviveu entre o medo, as dívidas e escolhas que jamais imaginou ter de fazer. Aos 40 anos, recorda os momentos mais sombrios da sua vida com um olhar firme — e revela como encontrou coragem para lutar por dignidade e esperança, numa cidade que raramente lhe oferece espaço para viver em paz.
“Uma vez tive um cliente que não queria usar preservativo. Eu aceitei, porque pensei que o dinheiro era mais importante”, recorda Maria, com um olhar cansado, mas firme. Trabalha como profissional do sexo em Díli há dezassete anos — dezassete anos de noites longas, decisões entre a fome e a necessidade, e medos silenciosos que raramente alguém vê.
Em tempos, fora apenas uma estudante — inocente, ingénua, cheia de sonhos simples. Mas a vida tem formas impiedosas de mudar destinos. “Casei-me muito jovem. Ainda andava no nono ano. Fui obrigada a deixar a escola”, conta, num tom entre resignação e memória dolorosa.
A morte do pai foi o ponto de viragem. De um dia para o outro, tudo ruiu. A casa ficou silenciosa, o futuro incerto. Na cultura timorense, entre os fetosan (família materna) e os umane (família paterna), há tradições que não podem ser ignoradas. Quando o marido teve de oferecer um búfalo à família umane — e o animal era emprestado —, começou o pesadelo.
“O meu ex-marido acabou por ir embora, deixando-me com dívidas acumuladas. Ele foi quem pediu o empréstimo, mas o credor só me cobrava a mim. Enquanto os juros aumentavam, ele nunca se responsabilizou. Foi aí que nos separamos”, relata, devagar, como quem revive cada ferida.
Antes de enveredar pelo trabalho sexual, Maria enfrentou um dos períodos mais sombrios da sua vida. Tentou pôr fim à própria vida duas vezes, ainda durante o casamento, quando as dívidas do marido se acumulavam e a situação económica da família se tornava insustentável. A dor, agravada pela perda do filho que carregava no ventre, deixou marcas profundas que o tempo não apagou. Mesmo durante a entrevista, falava com serenidade, mas o olhar traía-lhe a dor. “Bebi veneno para ratos, mas Deus ainda me deu a vida. Na altura, estava grávida de dois meses, e a tristeza de perder o meu filho ao mesmo tempo foi enorme”, confessa, em voz baixa.
A entrada no trabalho sexual: sobrevivência em Díli
Sem apoio, sem estabilidade, tentou encontrar um caminho. Arranjou emprego num dos casinos de Díli, mas o salário mal dava para comer. As dívidas cresciam, os juros sufocavam. Foi então que uma colega lhe falou de um “trabalho fácil”, um dinheiro rápido.
“A minha amiga disse-me que, só por atender alguns clientes, podia ganhar muito mais dinheiro. Estava desesperada. Tinha medo, vergonha, mas aceitei experimentar”, confessa, com os olhos baixos.
Lembra-se com nitidez do primeiro dia. O cliente era um homem idoso. O coração batia descompassado, o corpo tremia. Quis fugir, mas a amiga insistiu: “Não faz mal, homens mais velhos normalmente não duram mais de cinco minutos.” No quarto do hotel, o tempo parecia não passar. Cada segundo foi um peso. Quando tudo acabou, Maria tinha 150 dólares nas mãos — e um nó no peito que nunca mais desapareceu. “A partir daí, tudo mudou.”
Durante algum tempo, tentou conciliar os dois mundos: de dia, o casino; à noite, os clientes. Vivia num silêncio espesso, carregado de medo e culpa. Sabia que o caminho era perigoso — doenças, violência, humilhação. Mas, para ela, era o único que restava.
“O mundo pode julgar-me”, diz, com voz quase sussurrada. “Mas a vida não me deu muitas escolhas.”
Com o tempo, Maria aprendeu a esconder as suas feridas por detrás de um sorriso discreto, quase automático. Aprendeu a olhar nos olhos dos clientes sem deixar transparecer recusa, nojo, vergonha ou medo. Mas, por dentro, o corpo cansava-se e a alma gritava. O cansaço era profundo — um peso que nem o silêncio conseguia disfarçar.
A vida continuou dura, e o preconceito manteve-se constante. “Às vezes, ouço as pessoas a sussurrar, a apontar o dedo, sem saber o que passei. Mas o que posso fazer? Se me revoltar, posso ter mais problemas. Por isso, fico calada. Claro que dói, mas é o caminho que escolhi seguir”, confidencia.
O mundo em que trabalha também mudou. Chegaram mulheres mais jovens, e com elas, a competição. Os preços caíram. “Antes, podia ganhar 100 dólares por cliente. Agora, às vezes, só 30”, lamenta. Cada noite tornava-se uma batalha nova — contra a solidão, o medo e a falta de alternativas.
Mesmo assim, no meio do desespero, Maria guardava uma réstia de esperança. Com esforço, começou a poupar — dólar a dólar, noite após noite — até conseguir pagar uma dívida de sete mil dólares e construir uma pequena casa. Um abrigo. Um espaço só seu.
Quando fala da casa, o rosto suaviza-se. Há um brilho tímido nos olhos, quase um alívio. “Agora, posso dormir no meu próprio espaço”, diz, com um sorriso pequeno, mas genuíno — mais de paz do que de alegria.
Para Maria, cada dia continua a ser uma luta — não por luxo, mas por sobrevivência. Não por vaidade, mas por dignidade. Não é apenas uma trabalhadora sexual, como o rótulo cruel tantas vezes lhe impõe. É uma mulher que resiste. Que cai, mas levanta-se. Que vive — apesar de tudo.
Das feridas à luz: prevenção, apoio e desafios invisíveis
A vida de Maria começou a mudar lentamente quando, numa noite, num bar de luzes ténues e música suave, conheceu um funcionário da Assosiasaun Komunidade Progressiva (ACP) — uma organização local que realiza testes de VIH, distribui preservativos e assegura que quem é diagnosticado receba tratamento adequado. A primeira impressão foi apenas de curiosidade; ela pensou tratar-se de mais um cliente. Mas a conversa dessa noite abriu-lhe uma porta que nunca imaginara atravessar.
A partir desse momento, Maria passou a receber informações sobre saúde, prevenção e direitos, sendo encorajada a fazer o teste de VIH — cujo resultado foi negativo. “Antes, aceitava clientes sem preservativo porque o dinheiro parecia mais importante. Agora sei que a vida vale mais do que qualquer quantia”, afirma, com firmeza.
A experiência tornou-se também motivação para apoiar outras mulheres: começou a orientar colegas sobre prevenção, práticas seguras e serviços disponíveis, transformando-se num elo de confiança entre a ACP e as trabalhadoras sexuais. “Comecei a ajudar as amigas que trabalham como eu”, conta, com orgulho que se adivinha no olhar. “Falo-lhes sobre o VIH, sobre práticas seguras e onde podem pedir ajuda. Partilho a minha própria história.”
Enquanto fala, o rosto de Maria muda. Há brilho nos olhos e o sorriso, ainda tímido, é agora mais verdadeiro. As feridas que antes a prendiam parecem transformar-se, pouco a pouco, em cicatrizes que a fortalecem.
Mas a vida continua a testá-la. Aos 40 anos, Maria já pensa no fim do caminho. “Quando chegar a altura de parar, não sei. À medida que envelhecemos, os clientes diminuem. Às vezes, ligam, outras vezes não. Mas sei que um dia encontrarei uma forma de parar. Não dá para continuar assim para sempre”, diz, num tom sereno, mas lúcido.
O papel da ACP é crucial numa realidade marcada por barreiras estruturais. No panorama global, as trabalhadoras do sexo permanecem entre os grupos mais expostos a riscos. Segundo o relatório 2024 Global AIDS Update: Thematic Briefing Note – HIV and Sex Workers, da UNAIDS, uma média de 26% das pessoas que exercem trabalho sexual experienciou estigma e discriminação nos últimos seis meses (dados de 20 países). Cerca de 14% evitaram recorrer a serviços de saúde devido ao estigma (dados de 34 países), e 21% relataram algum tipo de violência no mesmo período (dados de 31 países).
Estes números evidenciam não apenas os riscos de saúde e sociais que trabalhadores do sexo enfrentam, mas também a urgência de políticas públicas humanas e inclusivas. São dados que ecoam na vida de Maria: mostram como o estigma, a falta de acesso a serviços e a desigualdade estrutural se entrelaçam, tornando a sobrevivência diária ainda mais complexa.
Além disso, o relatório da UNAIDS sublinha que a criminalização do trabalho sexual — presente em 170 países, incluindo Timor-Leste — aumenta barreiras de acesso a serviços essenciais, reduz a utilização de preservativos, e contribui para maiores riscos de violência e exploração.
Para ultrapassar estes obstáculos, a ACP desenvolveu uma estratégia baseada em pares, na qual colegas de confiança transmitem informações sobre saúde e direitos, promovendo a prevenção e criando uma rede de apoio. “Desta forma, até aquelas que estão hesitantes ou envergonhadas conseguem participar do programa e sentir-se incluídas”, explica Brigal Ferreira, diretor da ACP. Esta abordagem aumenta a confiança, reduz a vergonha e permite que as mulheres percebam que não estão sozinhas na luta pela sua segurança e dignidade.
O relatório da UNAIDS reforça a importância de políticas integradas e inclusivas: serviços de saúde sexual e reprodutiva raramente são combinados, o acesso a contracetivos é limitado, e negociar o uso de preservativos pode ser difícil, especialmente em contextos de desigualdade e dependência económica. “Tudo isto é real para nós, todos os dias”, diz Maria, mostrando como informação, apoio psicológico e proteção legal podem transformar uma vida marcada pelo medo numa vida com escolhas mais seguras.
Esta combinação de apoio clínico, psicossocial e educativo tem-se mostrado eficaz: permite reduzir riscos, fortalecer a autonomia e proteger a saúde física e mental das trabalhadoras sexuais. Para Maria, representa também esperança — não uma utopia, mas uma ferramenta concreta para sobreviver com dignidade e resgatar algum controlo sobre a própria vida.
A sua voz é baixa, mas firme — moldada por noites longas, medo e coragem. Para Maria, a esperança deixou de ser apenas um sonho distante. Hoje nasce das feridas, da vontade de recomeçar, da crença de que toda mulher — onde quer que esteja — merece viver com dignidade.
A história de Maria não é apenas um caso isolado — reflete a realidade de muitas mulheres em Timor-Leste, presas entre pobreza, falta de oportunidades e estigma. Para compreender o contexto em que tantas vidas se desenrolam, os números ajudam a dar dimensão a estas desigualdades.
De acordo com o Censos de 2022, Timor-Leste enfrenta desafios profundos na área da educação: 20% das crianças entre os 6 e os 18 anos não frequentam a escola, enquanto entre os jovens dos 19 aos 29 anos, a taxa de abandono escolar sobe para 70%. De forma mais abrangente, 45% da população entre os 3 e os 29 anos não tem acesso à educação. Estes dados revelam uma lacuna estrutural que afeta a capacidade de jovens e mulheres construírem futuros seguros, aumentando a vulnerabilidade económica e social.
Maria espera que o Governo olhe com mais atenção para as trabalhadoras sexuais em Timor-Leste. Tendo Timor-Leste celebrado ontem, dia 3 de novembro, o Dia Nacional da Mulher, Maria deixa o aviso: “Muitas jovens já começaram a trabalhar neste ramo, até menores de idade”, alerta, preocupada. “Se o Governo não fizer nada, continuarão presos nesta vida. Devem existir lugares seguros, deve haver quem nos ouça.”
Direitos, voz e reconhecimento
Perante este contexto, a ACP tem procurado fortalecer o sistema de apoio às trabalhadoras sexuais, criando mecanismos para lidar com problemas legais, como clientes que se recusam a pagar ou casos de discriminação.
“A ACP está a elaborar uma estratégia para criar um sistema de encaminhamento jurídico, além de destacar os fatores sociais e culturais que limitam o acesso aos serviços. No planeamento familiar, ainda existe a perceção de que os serviços são apenas para pessoas casadas e que as mulheres precisam de autorização dos maridos para terem acesso a este tipo de consulta, o que dificulta o acesso das trabalhadoras sexuais. Essa é uma lacuna que pretendemos colmatar”, explicou o diretor executivo, Brigal Ferreira.
Segundo o responsável, muitas trabalhadoras não têm parceiro fixo e, por isso, não conseguem participar de programas de planeamento familiar. Atualmente, a ACP acompanha mais de 3.500 trabalhadoras sexuais em cinco municípios, incluindo cerca de 2.000 em Díli.
O Provedor dos Direitos Humanos e Justiça, Virgílio Guterres, reforça que as trabalhadoras sexuais são cidadãs com direito à proteção legal e ao respeito pela sua dignidade.
“A Constituição garante que todos os cidadãos têm direito à honra e à privacidade. Ninguém pode insultar ou discriminar alguém pelo seu trabalho ou condição económica. A discriminação contra trabalhadoras sexuais constitui uma violação dos direitos humanos”, afirmou.
Guterres sublinha ainda o papel do Estado e das instituições religiosas na proteção de todos os cidadãos, independentemente do seu contexto moral ou social. “Socialmente, estes locais podem ajudar a reduzir crimes públicos, como estupro, violência sexual e assédio. Além disso, podem responder às necessidades de segmentos específicos da sociedade — como pessoas com limitações físicas ou condições especiais, para quem estes espaços podem ser seguros”, acrescenta.
Uma visão semelhante é partilhada pelo jurista Armindo Moniz, que lembra que a proibição da prostituição tende a ignorar a realidade social. “Quem trabalha na indústria do sexo enfrenta desafios concretos. Não proteger, mas criminalizar esta atividade, é fechar os olhos a uma realidade que existe — com ou sem autorização”, afirma.
Moniz reforça que a prostituição existe há séculos e que, com regulamentação e supervisão adequadas, o Estado pode minimizar riscos de exploração e violência. “Misturamos pecado e crime, dificultando uma regulação justa. Do ponto de vista laboral, a prostituição é uma profissão antiga. O Estado deve criar condições para que estas mulheres tenham direitos e proteção: remuneração justa, segurança no exercício da atividade e acesso a mecanismos de resolução de conflitos sem barreiras”, conclui.
Neste contexto, é relevante recordar o artigo 174.º do Código Penal de Timor-Leste, que criminaliza a exploração sexual e a prática da prostituição quando envolve obtenção de lucro ou vulnerabilidade económica, com penas que vão de 3 a 10 anos, agravadas para 4 a 12 anos em situações de coação, violência ou retenção de documentos. Este enquadramento legal reforça a necessidade de proteção e prevenção de exploração, mas não deve obscurecer a importância de políticas que respeitem os direitos das próprias trabalhadoras.
A nível mundial, a criminalização do trabalho sexual cria barreiras ao acesso a prevenção, testes e tratamento de VIH, assim como a serviços de saúde sexual e reprodutiva, aumentando a vulnerabilidade à violência. Estudos indicam que a despenalização poderia prevenir entre 33% e 46% das infeções por VIH entre trabalhadoras sexuais e clientes ao longo de uma década.
A UNAIDS alerta que leis punitivas prejudicam a saúde e os direitos das trabalhadoras sexuais, reforçando que a proteção legal e a redução do estigma são essenciais para garantir segurança e dignidade — exatamente os desafios que Maria enfrenta diariamente em Díli.
Saúde e apoio psicológico: refúgio entre os riscos
Enquanto Maria aprendeu a cuidar de si e a apoiar outras mulheres, a ACP tornou-se um refúgio fundamental no dia a dia das trabalhadoras sexuais em Timor-Leste. A organização realiza testes regulares, distribui preservativos e garante que qualquer profissional diagnosticada com VIH tenha acesso a tratamento adequado.
“A formação que oferecemos visa mudanças reais no comportamento, para que as profissionais do sexo possam praticar sexo mais seguro e reduzir o risco de transmissão de VIH/SIDA, especialmente entre populações-chave como as trabalhadoras sexuais”, explica Brigal Ferreira, diretor da ACP.
Para muitas mulheres, o medo e a vergonha ainda são barreiras. Por isso, a ACP adotou uma estratégia baseada em pares: colegas de confiança tornam-se pontes para transmitir informação e oferecer apoio.
“Desta forma, mesmo as que estão hesitantes ou envergonhadas conseguem receber a formação e sentir-se parte do programa”, acrescenta Brigal. Este modelo tornou-se essencial para criar uma comunicação aberta, permitindo que as trabalhadoras participem ativamente, sentindo-se menos isoladas e mais seguras.
Mas a luta vai muito além da prevenção do VIH. O acesso a serviços de saúde e apoio psicológico continua a ser um desafio diário. A ACP prepara mecanismos específicos de apoio psicológico: um colega transgénero, formado pela Asia Foundation durante dois anos, atua como elo de ligação, acompanhando mulheres que necessitam de aconselhamento ou encaminhamento profissional.
“Muitas sofrem grande pressão. Quando alguém precisa, ajudamos a encaminhar para profissionais qualificados”, explica Brigal.
Outro obstáculo significativo é o planeamento familiar, ainda limitado por barreiras culturais e sociais. No ano passado, o Provedor de Direitos Humanos e Justiça (PDHJ) submeteu uma revisão ao tribunal de recurso, mas até hoje não houve resposta.
“Trata-se de discriminação contra mulheres, especialmente adolescentes, que querem evitar uma gravidez precoce e necessitam de informação ou apoio sobre planeamento familiar. O Estado não pode restringir o acesso das mulheres — incluindo trabalhadoras sexuais e adolescentes — a contracetivos ou informações seguras”, alerta o Provedor, Virgílio Guterres.
Num contexto onde a noite esconde riscos e a manhã exige coragem, iniciativas como as da ACP e a defesa do PDHJ tornam-se refúgios vitais. Para Maria e tantas outras, este apoio significa mais do que saúde: é respeito, proteção e dignidade, mesmo quando o mundo lá fora parece ignorar os seus direitos.
Riscos invisíveis: o impacto psicológico do trabalho sexual
Para Maria, os riscos vão muito além da exposição física. O psicólogo Alessandro Boarccaech explica que a decisão de colocar o dinheiro acima da própria segurança ou saúde é frequentemente moldada por fatores económicos, culturais e psicológicos.
“Pressão financeira, traumas passados, baixa autoestima e a sensação de não ter alternativas podem levar a comportamentos de risco e intensificar ansiedade, tristeza e disfunção emocional”, afirma Boarccaech.
“As pessoas sob estas pressões experienciam dissociação, vergonha e culpa profundas, reforçando comportamentos autodestrutivos e dificultando a procura de ajuda”, acrescenta. Entre os sinais de alerta estão isolamento social, alterações do sono e da alimentação, aumento do consumo de álcool ou drogas, e negligência com cuidados pessoais.
No caso das trabalhadoras sexuais, o estigma e a discriminação agravam ainda mais a vulnerabilidade.
“O estigma provoca exclusão social, reduz o acesso a serviços de saúde e jurídicos e reforça a vergonha interna. Muitas evitam procurar cuidados médicos ou denunciar violência por medo de serem ridicularizadas ou desvalorizadas”, explica. Em Timor-Leste, algumas chegam mesmo a evitar sair de casa durante o dia, receando assédio ou violência física.
Boarccaech defende uma abordagem multimodal de apoio, que combine avaliação de risco, terapias baseadas em trauma, apoio psicossocial, acesso a serviços jurídicos, educação, emprego e assistência material.
“A comunicação empática e um ambiente seguro são essenciais para reduzir a vergonha, construir confiança e abrir caminho para soluções concretas”, salienta.
Os fatores que levam mulheres a trabalhar na indústria do sexo são complexos: pressão económica, responsabilidades familiares, falta de apoio social, experiências traumáticas e normas de género restritivas. Muitas vezes, este trabalho é uma estratégia de sobrevivência, e não uma escolha livre.
O processo de recuperação pós-trauma envolve tempo, terapias especializadas e oportunidades socioeconómicas reais para reconstruir a vida e o sentido de controlo. Programas que combinam apoio psicológico, formação de competências e microcrédito mostram-se mais eficazes na redução de riscos e no aumento da autonomia das trabalhadoras sexuais.
“Tudo isto só terá sucesso com uma mudança cultural: na forma como a sociedade vê as diferenças, os papéis de género e as interações humanas. Profissionais e serviços devem trabalhar de forma integrada e colaborativa”, conclui Boarccaech.
A história de Maria não é apenas uma trajetória pessoal de sobrevivência. É um reflexo silencioso de muitas mulheres em Timor-Leste que vivem sob o peso de tradições, desigualdade e estigma. Ontem, dia 3 de novembro, ao celebrar-se o Dia Nacional da Mulher, essas histórias permanecem em grande parte invisíveis — mas continuam a existir, persistentes, desafiadoras, e exigindo atenção.
Durante a elaboração desta reportagem, o Diligente tentou contactar o Ministério da Saúde e a Secretaria de Estado da Igualdade e Inclusão para ouvir a perspetiva oficial sobre políticas de apoio às trabalhadoras sexuais, programas de saúde e planeamento familiar. Até ao momento da publicação, não houve resposta.
Apesar disso, iniciativas como as da ACP e a atuação da PDHJ mostram que existem mecanismos que funcionam como refúgios — ainda que limitados — e oferecem esperança concreta. Maria é prova disso: mesmo depois de tantas noites de medo e silêncio, encontrou apoio, informação e uma forma de ajudar outras mulheres.
A coragem feminina nem sempre nasce em espaços de destaque ou em discursos públicos. Cresce silenciosa — num quarto pequeno, numa rua escura, num coração que insiste em continuar, mesmo depois de tudo. Cada escolha de Maria, cada passo para recuperar dignidade, desafia o estigma e ilumina caminhos de resistência.
O Dia Nacional da Mulher não deve ser apenas uma celebração simbólica. É também um convite à reflexão: quantas outras mulheres, como Maria, continuam invisíveis? Quantas ainda enfrentam violência, discriminação, falta de acesso a educação e saúde, sem que ninguém veja ou ouça?
O desafio permanece: garantir que direitos sejam respeitados, que políticas públicas sejam efetivas, que a dignidade não seja privilégio, mas um direito de todas. Porque, no fim, a luta das mulheres não é apenas por reconhecimento ou um lugar no mundo — é pelo direito de viver com segurança, autonomia e respeito, sem medo, sem vergonha e sem julgamento.


