Regras internas de escolas timorenses que obrigam alunos a cortes de cabelo curtos, proíbem raparigas de pintar o cabelo e impõem códigos rígidos de vestuário violam os direitos constitucionais, alertou o jurista Sérgio Quintas. Segundo ele, normas internas escolares não podem sobrepor-se à Constituição nem às convenções internacionais ratificadas por Timor-Leste, e a sua aplicação levanta sérias questões sobre liberdade, igualdade e desenvolvimento dos alunos.
“Quando obrigamos as crianças a seguir regras muito rígidas, como ter o cabelo curto e usar uniformes, violamos o princípio da liberdade de viver numa sociedade democrática” /Foto: Diligente
O ambiente de aprendizagem em muitas escolas timorenses é marcado por normas internas rigorosas que vão desde o corte obrigatório de cabelo até à proibição de certos acessórios e regras de vestuário para professoras e alunas, incluindo a exigência de saias e camisas. Embora apresentadas como instrumentos de disciplina, estas regras, segundo juristas, contrariam princípios constitucionais e direitos humanos, limitando a liberdade de expressão e o desenvolvimento pessoal das crianças.
Uma das medidas mais controversas é a regulação do cabelo. Nos rapazes, é comum a exigência de cortes curtos — por vezes limitados a apenas um centímetro de comprimento. Já às raparigas é proibido pintar o cabelo. Oficialmente, a intenção é reforçar a disciplina e promover uniformidade. No entanto, para muitos estudantes, estas normas reforçam estigmas de género e limitam a autoexpressão.
Na Escola Secundária Pública 4 de Setembro, em Díli, o regulamento é explícito: rapazes com cabelo acima do limite estabelecido são advertidos e, em caso de reincidência, podem sofrer sanções, incluindo cortes de cabelo forçados. O diretor, Sérgio da Cruz, defende a medida como ferramenta de formação de carácter. “Se um aluno não quer seguir as regras, é melhor procurar outra escola. Na 4 de Setembro, o nosso foco são os que querem desenvolver-se”, sublinhou.
Mas para muitos estudantes, estas práticas têm impacto negativo no rendimento escolar e na autoestima. Leopoldino Sarmento, aluno de Díli, recorda a pressão vivida desde o ensino básico. “Faltava às aulas com medo de ser repreendido. As notas baixaram e perdi a confiança. O cabelo não devia ser barreira para aprender”, contou.
Quando os estudantes se recusam a cortar o cabelo, alguns professores acabam por apará-lo de forma irregular, deixando apenas um centímetro num determinado local da cabeça. O resultado, segundo os relatos, é um corte que “parece ter sido picado ou roído por ratos”, uma estratégia para forçar os alunos a cortar o cabelo por completo.
Leopoldino Sarmento contou que, durante as inspeções obrigatórias, os professores costumam agarrar os alunos pelo cabelo, colocar a tesoura e cortar diretamente, sem se preocuparem com o comprimento ou com o modelo do corte. “Depois dizem-nos para ir para casa arranjar o cabelo e, no dia seguinte, temos de aparecer já com o cabelo devidamente cortado”, relatou.
Além disso, o cabelo comprido continua a ser frequentemente associado a estereótipos negativos, como maus comportamentos ou até ligações a “bandidos”, reforçando a pressão para a sua eliminação.
David Cabral, estudante da Universidade Nacional de Timor Lorosa’e (UNTL) a realizar o estágio pedagógico atualmente, relata que continua a enfrentar resistência pelo cabelo comprido, sobretudo durante o estágio. “Para mim, o cabelo comprido é um símbolo de liberdade de expressão. O comprimento do cabelo ou o uso de brincos não afeta o profissionalismo. O que afeta é a pressão injustificada”, defendeu.
Por outro lado, há quem veja as regras como necessárias para a organização escolar. Jeferiano Martins, também estudante da UNTL, considera normal que as escolas imponham normas que não afetam diretamente a aprendizagem, mas que contribuem para manter disciplina. “As escolas são instituições com regras. Segui-las faz parte da responsabilidade do aluno”, afirmou.
A Escola Secundária Pública 10 de Dezembro tem regulamentos internos bastante rigorosos, incluindo a proibição de os alunos terem o cabelo com mais de 3 cm. As alunas estão proibidas de pintar o cabelo e de usar mais de dois brincos.
O diretor-adjunto, Silvério da Costa, afirmou que cada escola tem as suas próprias regras e que estas são cruciais para a disciplina de alunos e professores. Considera que, se nenhuma regra for aplicada, a disciplina estará em risco. Silvério acrescentou que recentemente instruiu o chefe dos estudantes para revistar os alunos que violem a regra do cabelo.
“Apesar das queixas dos alunos e de deixar crescer o cabelo ou pintá-lo ser um direito, dentro da escola os alunos devem cumprir as regras. A liberdade total é possível fora da escola, mas no espaço escolar o cumprimento das regras é obrigatório”, enfatizou.
Para as alunas que violem as regras e pintem o cabelo, a escola preparou sanções graduais: orientação moral, convocação dos pais, limpeza da escola, suspensão de uma semana e, por fim, possível transferência para outra escola.
Voz dos alunos: medo e restrição da liberdade
Clara Mónica, aluna do 12.º ano da Escola Secundária Pública 2 de Novembro, manifestou descontentamento com os regulamentos escolares.
“Antes, quando estava no 3.º ciclo do ensino básico, pintei o cabelo de loiro. No entanto, quando me inscrevi na minha escola atual, disseram-me que a escola não aceitava alunos com cabelo pintado. Não tive escolha a não ser pintar o cabelo de preto. Até hoje, não me atrevi a pintar novamente porque me sinto desconfortável durante as verificações capilares ou outras situações”, contou.
A estudante acrescentou que muitos alunos têm medo de ir à escola durante as inspeções capilares e optam por faltar às aulas.
“Estudei nesta escola durante dois anos e vejo frequentemente as minhas amigas que, por medo, optam por não ir às aulas durante as inspeções ao cabelo. Aqui, os alunos com cabelo pintado recebem advertências e são obrigados a chamar os pais à escola, chegando mesmo a ser obrigatório pintar novamente o cabelo de preto”, explicou.
Em contraste, Nofia da Costa, aluna do Ensino Secundário Geral 10 de Dezembro, afirmou que acredita que as regras implementadas pelos professores são adequadas.
“Embora pinte o cabelo e esteja confiante com a minha aparência — e na minha opinião, pintar o cabelo não é algo negativo, podendo até ser uma forma de expressão — quando recebo instruções da professora sigo-as. Não quero correr riscos, porque o nosso propósito ao vir para a escola é aprender, não pintar o cabelo”, sublinhou.
Jurista critica regras: violam direitos e Constituição
O jurista timorense Sérgio Quintas expressou preocupação com a implementação de regras escolares excessivamente rigorosas, sobretudo para crianças. Segundo ele, normas como a exigência de cabelo curto e uniformes rígidos violam direitos humanos das crianças e contrariam a Constituição da RDTL, assim como convenções internacionais ratificadas por Timor-Leste.
“Quando obrigamos as crianças a seguir regras muito rígidas, como ter o cabelo curto e usar uniformes, violamos o princípio da liberdade de viver numa sociedade democrática. Isto é especialmente grave quando as regras são impostas sem uma razão válida, não porque a criança tenha cometido um crime ou outra infração grave”, afirmou.
Quintas defende que as escolas devem ser espaços de educação e formação do carácter, e não locais destinados a incutir medo ou a restringir a liberdade de pensamento das crianças.
“Regras demasiado rígidas têm, na verdade, um impacto negativo na mentalidade, no medo e na capacidade de raciocínio das crianças, especialmente das mais novas. Elas precisam de espaço para crescer livremente numa sociedade que não seja restritiva. As escolas devem ser locais de educação, não espaços onde se impõem regras inflexíveis”, concluiu.
De acordo com o Regulamento Disciplinar do Aluno e o Código de Conduta e Ética, aprovados pelo diploma ministerial n.º 28/2020, as únicas disposições relativas à apresentação pessoal estabelecem que o aluno deve “zelar pela sua imagem, apresentando-se sempre bem cuidado e asseado” e “usar sempre a farda escolar com honra e respeito”. O diploma acrescenta ainda que as saias ou calções não devem ficar “mais do que 10 cm acima do joelho”, que o cabelo deve ser mantido “limpo e penteado para trás de forma a não perturbar as atividades dentro da sala de aula”, e proíbe o uso de “joias, brincos, maquilhagem, unhas pintadas ou tatuagens à vista”. Não existe, contudo, qualquer menção à obrigatoriedade de cortar o cabelo ou de adotar estilos padronizados para além destas indicações.
Psicólogo alerta para impacto psicológico
O psicólogo Ângelo Alcino Menezes Guterres Aparício comentou sobre a implementação de várias regras de aparência. “Em relação ao código de vestuário escolar, considero que depende dos objetivos da escola. Por exemplo, se todos os alunos usarem uniforme, será mais difícil distinguir entre os alunos de famílias ricas e menos favorecidas. Isto pode criar uma atmosfera de igualdade e fazer com que os alunos se sintam parte da comunidade escolar.”
No entanto, questionou a lógica por detrás das regras que restringem o comprimento do cabelo, sobretudo para os rapazes. “Embora os uniformes sejam compreensíveis porque promovem a igualdade, as regras relativas ao cabelo continuam a ser difíceis de compreender, especialmente na ausência de provas de que o cabelo comprido interfere com a aprendizagem. O cabelo pode ser uma forma de expressão. Se for mantido limpo e bem cuidado, não vejo qualquer impacto negativo no desempenho dos alunos.”
“A exigência de cortes curtos para os rapazes não se justifica. É difícil compreender porque é que as instituições sentem a necessidade de impor cabelo curto aos rapazes, quando isso não está necessariamente ligado ao desempenho académico ou à disciplina”, concluiu.
Práticas como obrigar cortes de cabelo extremamente curtos, forçar alunos a cortar o cabelo no próprio espaço escolar, ou até realizar cortes irregulares e humilhantes — deixando o cabelo com aspeto “picado” ou “roído” para pressionar os estudantes a submeterem-se às regras — levantam sérias dúvidas sobre a sua legitimidade. Até que ponto estas medidas não estarão a colidir com direitos consagrados na Constituição, nomeadamente o artigo 36.º, que garante o direito à honra, ao bom-nome e à defesa da imagem, e o artigo 40.º, que protege a liberdade de expressão? Poderá a disciplina justificar práticas que tocam na dignidade e na identidade dos alunos?


