Setembro Negro: o heroísmo e sacrifício dos três mártires pela independência

Roger Francisco Marcos Bonaparte Soares “Kadiuk”, Marcelino de Oliveira “Comando”, João Fernandes “Kakatua” morreram, no início de setembro de 1999, durante os confrontos contra as milícias /Foto: DR

Os três jovens foram mortos pelas milícias e forças indonésias, em 1999, ao tentarem salvar refugiados e funcionários da UNAMET em Balide. As famílias sentem-se orgulhosas dos jovens, que deram a vida para salvar a população.

No início de setembro de 1999, durante o período de violência conhecido como “Setembro Negro”, três jovens timorenses perderam a vida ao defenderem a população e protegerem refugiados e funcionários da UNAMET, em Balide. Roger Francisco Marcos Bonaparte Soares “Kadiuk”, Marcelino de Oliveira “Commando” e João Fernandes “Kakatua” foram mortos pelas milícias e forças indonésias, numa altura em que Timor-Leste enfrentava uma onda de massacres e destruição após o referendo de 30 de agosto, que resultou na decisão pela independência.

Após o referendo, as milícias pró-Indonésia, apoiadas por forças militares indonésias, lançaram ataques contra os apoiantes da independência, causando terror em várias áreas de Díli, incluindo a do Matadouro, uma zona próxima de Balide. Foi nesse contexto que os três jovens se mobilizaram para enfrentar os inimigos, tentando proteger os civis refugiados na Missão das Nações Unidas.

A raiz do incidente

Norberto de Oliveira, irmão de Marcelino de Oliveira, relatou que o seu irmão, juntamente com outros jovens, tentou resistir aos ataques das milícias, impedindo que se aproximassem da população. Durante o confronto na estrada principal de Balide, Marcelino foi atingido pelas costas enquanto tentava desarmar um dos inimigos. Depois de cair, as milícias usaram uma catana para lhe cortar o corpo e queimaram-no até quase nada restar. Norberto contou esta história com lágrimas nos olhos, lembrando o sacrifício do irmão.

Norberto de Oliveira recordou que, após os confrontos, alguns jovens voltaram para informar as famílias, mas ninguém sabia ao certo se Marcelino estava vivo ou morto. “Acreditei que ele estava bem e fui imediatamente ao local do incidente, mas só vi chamas. Ao tentar aproximar-me, os militares indonésios dispararam contra mim, mas não acertaram”, relatou.

Mais tarde, a 2 de setembro, a família informou o padre José António, que contactou o Comandante das Forças Armadas da Indonésia para obter autorização para retirar o corpo de Marcelino. Norberto, acompanhado pela sua mãe e outros familiares, dirigiu-se ao hospital Toko Baru (atualmente Hospital Nacional Guido Valadares), onde viu o corpo estendido na morgue. “A segurança era apertada e eu disse à minha mãe para não chorar, porque, se o fizéssemos, seria visto como um mau sinal. Conseguimos conter as lágrimas, pegámos no corpo do meu irmão, colocámo-lo numa ambulância e levámo-lo para casa”, relatou.

Depois de prepararem o corpo, cobriram-no com um pano branco e, com a ajuda de Leandro Isac, ex-deputado do Partido Social Democrata e, à data, comissário político do Conselho Nacional da Resistência Timorense (CNRT), colocaram-no num caixão e enterraram-no à frente de sua casa, no Matadouro. Marcelino de Oliveira era um jovem corajoso e determinado, testemunhou o irmão. Assumiu o papel de chefe de segurança na zona de Karau Ulun, em Becora, garantindo que as reuniões clandestinas não fossem descobertas.

A 4 de setembro, foi anunciado o resultado do referendo, mas, no dia seguinte, as milícias regressaram e incendiaram casas no Matadouro, incluindo a de Marcelino. A família fugiu para Dare, enquanto os ataques continuavam. Carlito Belo Gonçalves recordou que o seu pai, João Fernandes, foi baleado mortalmente ao tentar salvar um colega durante os confrontos com as milícias. “Ele foi atingido no olho esquerdo e a bala saiu pela parte de trás da cabeça. Ele estava a segurar uma caixa com os pés quando foi baleado, mas não sabemos de onde veio o tiro. Algumas pessoas disseram que foi das forças indonésias. Nós, a família, já tínhamos fugido para casa e não sabemos quem trouxe o corpo de volta”, recordou.

Pouco se sabe sobre Roger Francisco Marcos Bonaparte Soares “Kadiuk”, apenas que morreu no mesmo dia, 1 de setembro de 1999, no confronto entre os jovens e as milícias na estrada de Balide. Carlito explicou que Kadiuk foi baleado, levado para casa e, depois, para o hospital, mas não sobreviveu.

“Não provocámos ninguém”, lembrou Carlito, “mas as milícias avançaram pela Escola Secundária 4 de Setembro, em Balide, e Caicoli, dizendo que iam atacar a sede da Missão das Nações Unidas (UNAMET).” Foi então que os jovens do Matadouro se mobilizaram para proteger os refugiados.

Famílias orgulhosas dos mártires

Monumento “Um de setembro de 1999”, no suco de Vila Verde, posto administrativo Vera Cruz, em homenagem aos três heróis que defenderam a causa timorense/Foto Diligente

As famílias dos mártires sentem-se orgulhosas dos seus entes queridos, que deram a vida para defender o bairro do Matadouro e proteger os refugiados e funcionários da ONU. Carlito Belo Gonçalves, familiar de João Fernandes, afirmou que “as famílias sentem alegria e orgulho pelos mártires, uma vez que ofereceram as suas vidas para salvar a população numa situação extremamente difícil”. O Governo de Timor-Leste reconheceu o sacrifício destes jovens, erguendo um monumento em sua homenagem perto da sede da aldeia de Vila Verde.

Carlito Belo Gonçalves, em representação das famílias, confessou que “as famílias sentem alegria e orgulho dos mártires, uma vez que ofereceram as suas vidas para salvar o bairro, proteger os funcionários da ONU e os refugiados em Balide, que estavam numa situação extremamente difícil”, disse.

“Os três morreram na linha de fogo, numa situação muito complicada. Agradecemos ao Governo por reconhecer estes três jovens como heróis da pátria e por ter erguido um monumento perto da sede da aldeia de Vila Verde”, acrescentou. Carlito Belo pediu ainda aos líderes que prestem mais atenção ao povo e ajudem a recuperar os corpos daqueles que, até agora, não foram encontrados, para que possam ser honrados com dignidade.

As famílias dos mártires continuam a honrar os seus sacrifícios. Todos os anos, em colaboração com as autoridades locais do suco de Vila Verde, organizam atividades em homenagem aos jovens, como missas de agradecimento, concertos e peças de teatro. Júlio Monteiro, um jovem de 27 anos do bairro de Matadouro, afirmou que a história destes três mártires é uma lição para os jovens de hoje. “O sacrifício deles e a sua morte tornaram-se uma lição para nós, jovens deste bairro, para nos continuarmos a esforçar e a contribuir para o desenvolvimento do país”, disse Júlio. Ele também participa na organização das celebrações, ajudando a manter vivo o espírito de patriotismo e nacionalismo entre as gerações mais novas.

Apesar do orgulho pelo sacrifício dos mártires, Norberto de Oliveira refletiu sobre os desafios que Timor-Leste ainda enfrenta em termos de reconciliação nacional. Ele sublinhou que, enquanto líderes como Xanana Gusmão e Mari Alkatiri não conseguirem dialogar cara a cara, será difícil falar de unidade no país. Norberto também destacou que, desde a restauração da independência, o desenvolvimento de Timor-Leste tem sido lento, especialmente nas áreas da educação e saúde. Para ele, a unidade é fundamental para garantir o progresso do país, e os jovens devem continuar a lutar pelos sonhos dos heróis da nação.

O monumento erguido em Vila Verde em homenagem aos três mártires continua a ser um símbolo de coragem e sacrifício, lembrando as gerações atuais e futuras da importância de proteger a liberdade e a dignidade do povo timorense.

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