O que diz a comunidade académica sobre a Lei de Bases do Ensino Superior?

Existem em Timor-Leste 19 universidades, das quais duas são públicas: um instituto e a UNTL/Foto: Diligente

Entre outras medidas, o diploma do Governo define o português como língua de ensino, pesquisa e instrução. Nas universidades, contudo, o idioma ainda é pouco percebido e utilizado.

No passado dia 24 se junho, o Parlamento Nacional aprovou (com 38 votos a favor, nove contra e quatro abstenções) a Lei de Bases do Ensino Superior (LBES). Entre as medidas (a licenciatura passará a ter duração de 8 a 10 semestres, a possibilidade de concessão do grau de mestre após uma formação de doze semestres, a autorização para ensino à distância, entre outras), o diploma define que o português seja o idioma de ensino, pesquisa e instrução nas universidades, sendo o tétum utilizado como língua de apoio nos respetivos processos.

O Governo procura, assim, impulsionar o uso da língua portuguesa no espaço académico. A LBES precisa ainda de ser promulgada pelo presidente da República, José Ramos-Horta, para entrar em vigor.

Em Timor-Leste, nos centros universitários, ainda é muito comum que a matéria, na maioria dos cursos, seja ensinada em tétum, com alguma presença do português, inglês e do bahasa indonésio. Por conta disso, a aprovação da LBES pelo Parlamento Nacional tornou-se um tema muito discutido entre reitores, professores e alunos do ensino superior no país.

Tanto a Constituição, como a Lei de Bases da Educação de Timor-Leste destacam o português e o tétum como línguas oficiais e de ensino. Contudo, isto também não se reflete em grande parte das escolas timorenses, onde o português ainda é pouco aplicado. Com isso, muitos cidadãos chegam ao ensino superior sem dominar o idioma.

Existem em Timor-Leste 19 universidades, duas das quais são públicas: a Universidade Nacional Timor Lorosa’e (UNTL) e um instituto. Para tentar entender melhor a perceção sobre a LBES, o Diligente foi a algumas instituições e conversou com a comunidade académica.

A UNPAZ ressalta que precisa de tempo para preparar todas as condições para chegar a esse ponto. Temos ainda de enviar os nossos recursos humanos para participar nas formações para melhorar a sua capacidade de expressão em língua portuguesa. (…) Assim, daqui a dez anos, podemos aplicar a lei

Aldomando Soares Amaral, reitor da Universidade da Paz (UNPAZ)/Foto: DR

“Quando falamos sobre os assuntos de educação, devemos ter apenas uma lei de base para regularizar todas as atividades, desde o ensino básico até ao ensino superior. No caso da Lei de Base do Ensino Superior, acredito que vá criar uma grande confusão na comunidade académica.

A Lei de Base do Ensino Superior exige que as universidades se concentrem no português. Para isso, a UNPAZ precisa de tempo para preparar todas as condições para chegar a esse ponto. Temos ainda de enviar os nossos recursos humanos para participar nas formações, para melhorar a sua capacidade de expressão em língua portuguesa. Também oferecemos oportunidades aos docentes para tirarem o mestrado ou doutoramento nas universidades dos países lusófonos. Assim, daqui a dez anos, podemos aplicar a lei.

A realidade em Timor-Leste mostra que o ensino-aprendizagem em português é muito difícil para levar os estudantes a compreender a ciência e a tecnologia. Os docentes têm dificuldades em expressar-se em português e os estudantes também não dominam a língua. Como é que vão interpretar ciências e tecnologias de forma correta, quando ambos não dominam a língua?

Não interessa se os docentes já podem falar bem português ou não, o que é importante é que os docentes garantam a transmissão da matéria aos estudantes de forma compreensível. Muitas vezes, encorajo os docentes a perceber primeiro, quando entram na sala de aula, quais são as línguas que os estudantes dominam. Se os estudantes só falarem tétum, explicam nessa língua. Se têm dificuldades com o português, não se pode obrigar a que a aula seja nesse idioma.

Os estudantes aprenderam português desde o ensino básico, mas ainda não têm um nível avançado. Quando explicamos a matéria em tétum ou em inglês, existe interação entre os docentes e estudantes. No entanto, se ensinarmos em português, os estudantes sentam-se e ficam calados.

A Lei de Bases do Ensino Superior é uma opção política e já foi aprovada no Parlamento Nacional e o presidente da República vai promulgá-la. Quer queiramos, quer não, durante o mandato do IX Governo, temos de obedecer. Não nos vamos concentrar demasiado nesta lei e vamos só acompanhar, uma vez que é uma opção política e pode haver mudanças quando vier outro Governo. O que temos de levar a sério é que língua devemos usar para que os estudantes compreendam as matérias e para que, quando concluírem os estudos, possam contribuir para o mercado de trabalho.”

Os estudantes acabam por entrar nas universidades sem saber falar português, pois têm dificuldades em aprender a língua no percurso escolar. Vivemos em família e numa sociedade em que o português ainda é pouco utilizado, apesar de ser uma língua oficial de Timor-Leste”

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Afonso da Costa Lourenço, 21 anos, estudante de Ciências da Saúde na Universidade de Díli (UNDIL)/Foto: Diligente

“Os nossos docentes preparam os conteúdos em português, tétum e bahasa indonésio. Na explicação, os professores utilizam tétum para facilitar a nossa compreensão, uma vez que os estudantes têm dificuldade de compreender as expressões científicas em português.

Tenho dificuldades em falar e compreender português. Esta situação acontece porque, quando ainda andava no primeiro, segundo e terceiro ciclo, e até no secundário, não consegui aprender bem o idioma. Hoje frequento a universidade e os docentes apresentam os conteúdos em português, então sinto dificuldade em acompanhar a matéria. Para resolver os trabalhos que os docentes nos dão, temos de ir ao Google tradutor para traduzir para tétum ou bahasa indonésio, já que não compreendemos o português. Sei que a maioria dos universitários enfrenta a mesma situação.

Os estudantes acabam por entrar nas universidades sem saber falar português,  pois têm dificuldades em aprender a língua no percurso escolar. Vivemos em família e numa sociedade em que o português ainda é pouco utilizado, apesar de ser uma língua oficial de Timor-Leste.

Contudo, nas candidaturas a oportunidades de emprego em Timor-Leste, é preciso saber falar português. Ainda estou a tentar aprender a língua.”

Temos docentes qualificados, que podem ensinar em português, mas como é que os estudantes vão compreender os conteúdos quando não dominam o idioma? O Governo pensa que a qualidade da educação se revela nas universidades, mas na verdade não, as bases da educação estão no ensino básico, até ao secundário. Queremos que o telhado da casa seja forte, mas se as bases são fracas, como é que vamos garantir a qualidade da casa? É uma questão de lógica”

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Hugo Costa, vice-reitor da UNDIL/Foto: DR

“Apoiamos a política do Governo sobre o uso do português como língua de ensino e instrução, mas é preciso um investimento. O Governo precisa de saber quantos docentes nas universidades do país podem ensinar em português.

A maioria dos professores prepara as matérias em tétum e português, mas as explicações são feitas apenas em tétum. Temos docentes qualificados, que podem ensinar em português, mas como é que os estudantes vão compreender os conteúdos quando não dominam o idioma? O Governo pensa que a qualidade da educação se revela nas universidades, mas na verdade não, as bases da educação estão no ensino básico, até ao secundário. Queremos que o telhado da casa seja forte, mas se as bases são fracas, como é que vamos garantir a qualidade da casa? É uma questão de lógica.

Mas, o importante é que o Governo precisa de fazer um grande investimento. O Ministério da Educação deve melhorar o sistema, do básico ao secundário. O Ministério do Ensino Superior deve rever os cursos de português. Queremos que o Governo destaque formadores da Comunidade dos Países da Língua Portuguesa em cada universidade, para dar formação aos docentes.”

Os conteúdos são todos em tétum e a explicação também é nesta língua. Posso dizer que todas as nossas aulas, das explicações à comunicação, são em tétum. Em português, apenas temos a disciplina de língua portuguesa”

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Madalena Veronica de Jesus, 21 anos, estudante de Contabilidade na UNTL/Foto: Diligente

“Os conteúdos são todos em tétum e a explicação também é nesta língua. Posso dizer que todas as nossas aulas, das explicações à comunicação, são em tétum. Em português, apenas temos a disciplina de língua portuguesa .

A minha compreensão escrita e capacidade de leitura em língua portuguesa é boa, mas a compreensão e expressão oral é um pouco difícil, porque nunca pratico, nem converso em português. Quando os timorenses falam português, consigo compreender, mas se os portugueses e brasileiros falarem não consigo perceber, porque falam muito rápido.

A maior parte dos estudantes timorenses não consegue falar português, porque não costumamos falar esta língua dentro da família ou com os amigos. Então, acabamos por falar sempre em tétum.”

Vamos cumprir e aplicar a Lei de Base do Ensino Superior, mas temos de desenvolver os conhecimentos de língua portuguesa dos nossos docentes. Os professores vão frequentar o curso de português oferecido pelo Ministério do Ensino Superior, Ciência e Cultura e esperamos que a formação possa ajudar a UNITAL nesta transição para o português como língua de ensino. Recentemente, celebrámos um acordo com o Instituto Camões e com a Fundação Oriente para, em breve, oferecermos cursos de português para os nossos docentes

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Joaquim de Jesus Vaz, reitor da Universidade Oriental Timor Lorosa´e (UNITAL)/Foto: DR

“A UNITAL, assim como as outras universidades no país, ainda enfrenta um grande problema quanto à utilização do português no ensino-aprendizagem. A maioria dos professores estudou nas universidades indonésias. Por isso, dão as aulas em tétum e em bahasa indonésio, e também em português.

Vamos cumprir e aplicar a Lei de Base do Ensino Superior, mas temos de desenvolver os conhecimentos de língua portuguesa dos nossos docentes. Os professores vão frequentar o curso de português oferecido pelo Ministério do Ensino Superior, Ciência e Cultura e esperamos que a formação possa ajudar a UNITAL nesta transição para o português como língua de ensino.

Recentemente, celebrámos um acordo com o Instituto Camões e com a Fundação Oriente para, em breve, oferecermos cursos de português para os nossos professores. Recebemos também uma subvenção do Estado e vamos utilizar 20% desse apoio para elevar os conhecimentos linguísticos dos docentes.

Os estudantes devem aprender português, uma vez que Timor-Leste é um dos membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Aprender português é uma boa oportunidade para os estudantes que querem continuar os seus estudos nos países da CPLP.

A UNITAL tem um Centro de Língua Portuguesa, que dá espaço aos estudantes que querem aprender a língua. O curso é gratuito para estudantes e docentes. Mas, no próximo ano, vamos arranjar algum financiamento para reforçar o ensino e convidar professores qualificados em língua portuguesa para dar formação

Neste momento, estamos no ano preparatório. Planeámos tudo para que, antes de dar aulas aos novos estudantes, no mínimo, os professores tenham de apresentar um certificado do curso português básico. Além disso, temos de definir também o português específico para a faculdade de Saúde e de Direito. Assim, os estudantes têm conhecimentos básicos para poderem acompanhar as aulas.”

Quando for obrigatório utilizar o português nas universidades, vamos sacrificar a qualidade da educação durante algum tempo, uma vez que os docentes e os estudantes ainda não dominam a língua. O DIT vai cumprir a Lei, dentro das suas capacidades, mas o Ministério do Ensino Superior não nos pode obrigar, pois nem todos os professores estão prontos para lecionar nesta língua.  Vamos começar devagar, mas de forma contínua e esperamos que, no futuro, todas as universidades no país possam utilizar totalmente o português como língua de ensino”

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Salustiano dos Reis Piedade, reitor do Instituto de Tecnologia de Díli (DIT)/Foto: DR

“O domínio da língua portuguesa ainda é difícil em Timor-Leste. Queremos utilizar o português no processo de aprendizagem no ensino superior, mas os estudantes que acabam o ensino básico e secundário também não dominam o idioma. O Governo não se foca no desenvolvimento da língua desde o ensino básico, agora os estudantes já estão no ensino superior e veem-se obrigados a ter aulas em português. Vai ser muito complicado, pois os estudantes não dominam a língua.

Não são só os estudantes, honestamente muitos docentes também não dominam o português. E o Governo obriga-nos a ensinar em português. Não sei para onde levamos a nossa educação. Temos de ser transparentes quanto a isto. É uma realidade que enfrentamos: um docente que não domina o português, como é que vai ensinar os estudantes nessa língua? E isto ainda é só a questão da língua, ainda não falámos sobre os conteúdos da matéria.

No DIT, o processo de ensino ainda recorre à ‘língua gado gado’ (misturada ou multilingue). Os docentes que não sabem falar português, ensinam e fazem a avaliação em tétum. Alguns sabem português e ensinam nesta língua. Mas, a maior parte das aulas ainda é em tétum. Na verdade, é bom quando as universidades apliquem o multilinguismo no ensino-aprendizagem, uma vez que Timor-Leste está a lutar para ser membro da ASEAN. Se os alunos aprenderem apenas português, isso pode dificultar a vida aos nossos graduandos na altura de competir no mercado de trabalho internacional, pois os estados membros da ASEAN não sabem português. Ao mesmo tempo, não utilizamos o português apesar de Timor-Leste ser membro da Comunidade dos Países da Língua Portuguesa (CPLP). Por isso, politicamente, devemos aprender português e inglês.

Recentemente, todas as universidades privadas no país têm recebido a subvenção pública e o Ministério do Ensino Superior pediu para alocarmos 20% do nosso orçamento para desenvolver o português na nossa instituição. Mas, até ao momento, ainda não recebemos o subsídio e já estamos em julho. Não podemos executar um plano, quando ainda não está bem definido.

Para este ano, vamos colocar como prioridade comprar os livros de referência em português. Queremos as aulas em português, então devemos ter referências fortes. Aí será aplicada uma grande parte do subsídio. O nosso objetivo é estar preparados para quando o Governo obrigar os docentes a ensinar em português e, para isso, já deveremos ter referências ou livros em português.

Segundo, vamos promover debates entre os estudantes. O plano está feito e estamos à espera que o dinheiro chegue para o realizarmos.  Além disso, vamos destinar uma parte do orçamento aos docentes que tenham artigos científicos, para os poderem apresentar nos países da CPLP. Ainda estamos em dúvida se este apoio se manterá em anos futuros, ou se é só para este ano, uma vez que isso pode dificultar a continuidade dos programas.

Isto também não significa que, só por usarmos o português, já vamos garantir a qualidade da educação. Há países que não usam português e conseguem ter uma educação de qualidade, por exemplo a Indonésia. A língua, por si só, não garante qualidade, mas vai ser um desafio, pois quando não sabemos falar, não podemos transmitir a ciência. Posso dominar a matéria, mas não posso explicar de forma detalhada, em português, se não dominar a língua.

Quando for obrigatório utilizar o português nas universidades, vamos sacrificar a qualidade da educação durante algum tempo, uma vez que os docentes e os estudantes ainda não dominam a língua.

O DIT vai cumprir a Lei, dentro das suas capacidades, mas o Ministério do Ensino Superior não nos pode obrigar, pois nem todos os professores estão prontos para lecionar nesta língua.  Vamos começar devagar, mas de forma contínua e esperamos que, no futuro, todas as universidades no país possam utilizar totalmente o português como língua de ensino.”

Não podemos ver o português como um idioma externo, e sim reconhecê-lo como parte do nosso passado, presente e futuro. Isso facilita a sua aprendizagem. O uso da língua portuguesa no ensino superior não significa uma discriminação ao tétum, mas sim uma maneira de tentar equilibrar a utilização dessas duas línguas oficiais de Timor-Leste na comunidade académica”

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Elísio Guterres Exposto, professor do Centro de Língua Portuguesa da UNTL/Foto: Diligente

“A dificuldade a nível do uso português não é uma novidade em Timor-Leste e sabemos que há um grande desequilíbrio no uso desta língua no ensino-aprendizagem. O Ministério do Ensino Superior elaborou esta lei com objetivo de incentivar todas as universidades a começar a dar importância ao português. Claro que, no início, vamos encarar como um grande problema, já que a maioria dos docentes e estudantes ainda não dominam a língua.

Na UNTL, disponibilizamos o curso da língua portuguesa para docentes e estudantes. É uma maneira de mostrar o compromisso da UNTL em relação à Constituição e ao uso do português. Temos aqui o Centro de Língua Portuguesa (CLP), que, desde 2019, realiza formações na língua de Camões aos funcionários, professores e alunos. Ainda fazemos um teste para perceber o nível de compreensão dos formandos. O reitor da UNTL [João Martins] também frequentou o curso de português no CLP.

O que notei na sala de aula é que os universitários têm interesse em aprender a língua portuguesa, mas chegam com muitas dificuldades de leitura, escrita e oralidade. Muitos, contudo, conseguem superar esses obstáculos durante a formação.

Não podemos ver o português como um idioma externo, e sim reconhecê-lo como parte do nosso passado, presente e futuro. Isso facilita a sua aprendizagem. O uso da língua portuguesa no ensino superior não significa uma discriminação ao tétum, mas sim uma maneira de tentar equilibrar a utilização dessas duas línguas oficiais de Timor-Leste na comunidade académica.”

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