A história de Joana, uma jovem universitária de Díli, expõe as dificuldades de estudantes em situação de vulnerabilidade, marcadas por exploração doméstica, desafios académicos e traumas emocionais. Apesar das adversidades, ela mantém o sonho de transformar a sua vida através da educação.
Joana Freitas (nome fictício), uma estudante universitária de 20 anos em Díli, carrega uma história de luta diária, marcada por desafios emocionais, sociais e económicos. A sua experiência reflete as dificuldades enfrentadas por muitos jovens em situações de vulnerabilidade no país. Apesar da pobreza, do isolamento e das dificuldades familiares, Joana mantém o sonho de concluir os estudos e transformar a sua realidade.
Joana nasceu na aldeia de Samalari, no município de Baucau, numa família humilde de agricultores de subsistência. Terceira de sete irmãos, ela viu os pais, já idosos, fazerem esforços incansáveis para garantir que os filhos tivessem um futuro melhor. Quatro dos seus irmãos ainda vivem com os pais no interior, ajudando nas tarefas domésticas e no trabalho agrícola.
Para complementar o rendimento familiar, o pai vendia produtos agrícolas, como milho e feijão, e ocasionalmente algum animal da família, como galinhas ou porcos. Às vezes, também ajudava em obras na aldeia, construindo ou reparando casas.
Aos cinco anos, Joana foi enviada para Díli para viver com os tios que aparentavam ter melhores condições económicas. A tia é dona de casa e o tio professor. Esta mudança tinha como objetivo oferecer-lhe uma oportunidade de educação.
Contudo, a convivência com os familiares revelou-se difícil desde o início. Joana passou a ser responsável por inúmeras tarefas domésticas, que mantém até hoje. Acorda às 5h da manhã para cumprir os afazeres e depois vai para a universidade. Ao regressar, continua com as mesmas obrigações, raramente tendo tempo para si mesma. Até os vizinhos a veem como uma empregada, apesar de viver com familiares. Segue uma rotina exaustiva, dividindo o seu tempo entre as responsabilidades em casa e os estudos.
Uma vida de trabalho e silêncio
Para além de realizar trabalho doméstico, Joana enfrenta constantes agressões físicas e psicológicas na casa onde vive. A sua tia sempre a tratou de forma injusta, atribuindo-lhe responsabilidades desproporcionais e impedindo-a de visitar os pais, mesmo nos feriados. “Dizem-me que estou ali para trabalhar para eles até me casar e sair de casa. Não me dão uma razão concreta para não poder ir ver os meus pais, apenas dizem que, se for, quando voltar, terei de fazer todo o trabalho acumulado”, contou.
Em certa ocasião, os pais de Joana visitaram-na em Díli. De repente, a família começou a tratá-la melhor, fingindo que estava tudo bem. Contudo, assim que os pais regressaram à aldeia, a situação voltou ao que era antes, e Joana continuou a enfrentar as mesmas dificuldades.
A jovem contou que sempre que comete algum erro é ameaçada: “Se me irritares, mato-te. A culpa será tua.” Apesar disso, Joana nunca contou aos pais sobre o que enfrentava, temendo preocupá-los ou perder a oportunidade de estudar. “No passado, a minha irmã foi retirada de uma situação semelhante porque os meus pais descobriram. Não quero que isso aconteça comigo”, explicou.
Joana relata sentir-se invisível, negligenciada e frequentemente sem esperança. “Sinto-me como uma estranha na casa onde vivo. Não sou tratada como parte da família, mas como alguém que está ali para servir”, desabafa.
Apesar disso, encontrou apoio emocional em dois amigos próximos, com quem partilha os seus sentimentos. Nunca procurou ajuda institucional, com receio de prejudicar os tios ou a sua própria família. “Tenho de ter paciência e esperar que este processo acabe. Mesmo quando fico doente, aguento sozinha. Não tenho coragem de falar disto com outras pessoas,” explicou.
A filha mais velha da tia, que poderia ser um apoio para Joana, também a desrespeita frequentemente. Grita com ela, usa palavrões e trata-a com desdém. Apesar disso, a tia não demonstra qualquer intenção de corrigir o comportamento da filha ou de lhe ensinar a respeitar outras pessoas.
Entre os estudos e a sobrevivência
As dificuldades em casa também afetaram o desempenho académico de Joana. Apesar de ser uma aluna exemplar no passado, a sobrecarga de tarefas domésticas e a falta de condições para estudar fizeram com que baixasse as notas. “Estudar à noite é quase impossível. Sempre que tento, há algo que preciso de fazer. Isso deixa-me frustrada”, partilhou.
Sempre que tem trabalhos individuais ou de grupo, é obrigada a pedir ajuda aos colegas, porque não pode sair de casa. “Quando tenho trabalhos, tenho de pedir aos meus colegas para me ajudarem, porque à noite ainda tenho muitas coisas para fazer em casa. Não consigo estudar em paz”.
Por duas vezes, Joana chegou a desmaiar na universidade devido à falta de alimentação adequada, ao cansaço e ao stress acumulado. Mesmo doente, continuava a trabalhar em casa, temendo represálias. “O ambiente em que vivo não me permite descansar. Até as lágrimas parecem fazer parte da minha alimentação”, desabafou.
Quanto à alimentação, Joana afirmou que muitas vezes come sem apetite, em silêncio, acompanhada por palavras duras e olhares de desprezo. “Quando caí na escola, vi os olhares de pena dos meus colegas. Era como se todos soubessem o que eu estava a passar, mas ninguém soubesse como ajudar. Voltei para casa com medo, sabendo que o trabalho estaria à minha espera, mesmo doente.”
Violência em números
O Relatório do Programa Nabilan 2016, implementado pela Asia Foundation, descreve o abuso e a violência que muitas crianças enfrentam em Timor-Leste. Os dados apresentados mostram que a violência e a negligência na infância não são apenas problemas individuais, mas fazem parte de uma realidade vivida por muitas crianças na sociedade. Estas situações não apenas intensificam os traumas individuais, mas também perpetuam ciclos de violência baseada no género ao longo do tempo.
As mulheres (67%) enfrentam mais dificuldades gerais, como negligência ou falta de cuidados básicos, em comparação com os homens (59%-62%). O abuso emocional ou a negligência são mais frequentes entre as mulheres (78%), refletindo situações de negligência emocional ou verbal. Nos homens, o índice também é elevado (71%), embora ligeiramente inferior. Tanto as mulheres (66%) como os homens (61%-64%) relatam níveis significativos de violência física, demonstrando que esta forma de abuso é comum entre géneros.
O abuso sexual é mais frequentemente reportado pelos homens (42%) do que pelas mulheres (24%). Esta diferença pode estar relacionada com o estigma e a vergonha que muitas mulheres sentem ao denunciar estas situações.
Educação em Timor-Leste: um caminho cheio de obstáculos
O gráfico evidencia que a violência e o abuso na infância não são meramente números, mas realidades vividas que deixam marcas profundas. A experiência de Joana é um exemplo claro de como o trauma infantil pode afetar o desenvolvimento emocional e psicológico de uma pessoa. Estes dados sublinham a importância de intervenções destinadas a prevenir a violência e a oferecer apoio às vítimas, para quebrar este ciclo destrutivo.
De acordo com os dados do Timor-Leste at a Glance 2024, que revelam desigualdades na infraestrutura educacional nas áreas rurais, muitos estudantes deslocam-se para Díli em busca de melhores oportunidades, como é o caso da Joana.
A taxa de matrícula no pré-escolar é de apenas 26,4%, e o abandono escolar no ensino pré-secundário é elevado devido à falta de escolas adequadas nas zonas rurais. Além disso, 55% da população rural vive na pobreza multidimensional, o que afeta diretamente a continuidade dos estudos. As escolas em Díli, por sua vez, oferecem melhores condições, como professores qualificados e transporte adequado, atraindo estudantes de áreas remotas.
Joana é um exemplo de como estudantes das zonas rurais enfrentam desafios como o medo e a falta de confiança para procurar ajuda. Os dados mostram que 29% das adolescentes relataram sofrer violência doméstica, sublinhando a necessidade de espaços seguros e de apoio psicológico. Tal como os estudantes em busca de educação, as vítimas de violência precisam de sistemas de apoio eficazes para superar as suas dificuldades.
Para mitigar estas desigualdades, é crucial aumentar o investimento na educação pública, melhorar as infraestruturas escolares e implementar programas que promovam a inclusão e a equidade no acesso a um ensino de qualidade.
Medidas governamentais para quebrar o ciclo de violência
O Parlamento Nacional, através da sua sessão plenária ordinária de 7 de fevereiro de 2023, aprovou na íntegra a Proposta de Lei n.º 29/V(3a) – Lei da Proteção de Crianças e Jovens em Perigo. Esta lei define a idade em que as crianças podem exercer os seus direitos no processo de desenvolvimento nacional, além de reforçar outros direitos fundamentais.
O Artigo 153 do Código Penal e o Artigo 35(a) da Lei Contra a Violência Doméstica fornecem uma base legal clara e rigorosa para proteger pessoas vulneráveis, incluindo crianças, idosos e indivíduos com incapacidades. A legislação responsabiliza as pessoas encarregadas do cuidado destas, exigindo que garantam acesso à educação, serviços essenciais e outras necessidades básicas.
Em caso de violações, os responsáveis podem enfrentar penas de prisão que variam de 2 a 15 anos, dependendo da gravidade dos danos causados à vítima. A lei também dá especial atenção a situações de violência doméstica, como maus-tratos em contextos familiares. Assim, o sistema penal de Timor-Leste demonstra um forte compromisso em combater a violência e assegurar justiça para as pessoas vulneráveis.
O Código Penal não só protege como também pune aqueles que praticam atos de violência, promovendo justiça e dignidade para todos. Contudo, para proteger jovens como Joana, é essencial reforçar as instituições responsáveis, aumentar a consciencialização nas comunidades e ampliar o alcance das organizações de apoio. Estas ações são fundamentais para transformar a legislação em proteção real e efetiva para crianças e jovens vulneráveis.
A Lei n.º 7/2010, conhecida como Lei Contra a Violência Doméstica, estabelece que o governo tem a responsabilidade de criar e gerir as Uma Mahon para vítimas de violência doméstica. Estas casas devem funcionar como espaços seguros, proporcionando proteção, apoio psicológico, assistência social, cuidados médicos e apoio jurídico às vítimas, ajudando-as a recuperar e a retomar uma vida normal. Além disso, estas estruturas devem garantir a segurança, privacidade e autonomia das vítimas. Cabe ao governo supervisionar e garantir a qualidade e eficácia dos serviços oferecidos nestes espaços, que devem ser gratuitos, assegurando um benefício direto às pessoas em situação de vulnerabilidade.
A organização PRADET, em Timor-Leste, desempenha um papel crucial na assistência psicossocial a vítimas que enfrentam problemas como stress, trauma, violência doméstica, abuso infantil e questões de saúde mental. Através do programa Fatin Hakmatek, a PRADET oferece apoio a vítimas de violência doméstica, violência sexual e abuso infantil, garantindo segurança, aconselhamento de emergência, tratamento médico e documentação forense das lesões, com encaminhamento para instituições ou serviços apropriados.
O caso da Joana evidencia que, mesmo com as medidas de apoio criadas pelo governo, muitas vítimas ainda enfrentam dificuldades em relatar as suas situações, devido ao medo ou a outros fatores pessoais. Isto sublinha a necessidade de não apenas reforçar as instituições e os programas de apoio, mas também de garantir que estas iniciativas sejam eficazes na construção de confiança junto das vítimas. Sensibilizar as comunidades e criar espaços seguros onde pessoas como a Joana se sintam verdadeiramente acolhidas e protegidas é essencial para que as políticas tenham um impacto real e positivo na vida dos mais vulneráveis.
Outra grande reportagem, parabens Lourdes do Rego.
Sinto muito Joana pelo que tens de sofrer para que possas realizar o teu sonho. Desejo que sejas bem sucedida.
No meu tempo o lar das madres em Balide, acolhia muitas raparigas do interior que vinham estudar. Havia disciplina, nunca ouvi falar de maus tratos.
Joana, tios como os teus, nao precisas de inimigos!
Tudo de bom para ti rapariga.