Do Mianmar a Timor-Leste, carregam as marcas da violência e da resistência. Entre a memória e a luta, erguem a voz para reclamar justiça, dignidade e um lugar na narrativa do mundo.
Tinha 7 anos quando a guerra lhe ensinou o significado da palavra sobreviver. Numa única noite, Flávia perdeu a infância, a família e o direito ao esquecimento. A casa foi invadida, as perguntas vieram aos gritos. A mãe respondeu que não sabia onde estava o exército. Não houve segunda pergunta: uma lâmina atravessou-lhe o peito. Os irmãos correram. O caos gritou mais alto do que qualquer voz.
Flávia, pequena demais para entender a morte, agarrou o corpo da mãe como quem protege a única coisa que ainda lhe restava. Foi ali, com a cabeça encostada ao peito que deixara de bater, que sentiu a lâmina subir-lhe pelo rosto — um corte do nariz até à face, profundo, ardente, definitivo.
O pai tentou salvar os filhos. Não conseguiu salvar-se a si próprio. Foi morto com golpes de catana, segundos depois de gritar. “Corram, senão morrem todos!”
Flávia correu. Correu com sangue no rosto, sangue que não era só dela, e com um grito que nunca chegou a sair. Nessa noite, perdeu os pais, a irmã, a pele do rosto — e ganhou uma cicatriz que nenhuma paz conseguiu sarar. Décadas depois, a independência foi declarada. Mas a guerra, para Flávia e para milhares de mulheres, nunca acabou.
As cicatrizes de Flávia não são um caso isolado — são um espelho de milhares de histórias silenciadas que a arte, por fim, começa a resgatar, confrontar e colocar no centro do debate público.
A exposição “Women’s Voices in Public Spaces”, que dá continuidade ao projeto “Our Voices, Our Needs”, começaram por ser apresentada em Bruxelas, em março de 2024, e passou por Jacarta, em março de 2025, antes de chegar a Díli.
Patente na Fundação Oriente até 15 de novembro de 2025, a mostra reúne artistas mulheres de todo o Myanmar, de diferentes etnias, religiões e regiões, cujas obras retratam dor, resistência e esperança, num testemunho profundo das marcas deixadas pela guerra e pelas crises que persistem no país.
A inauguração decorreu a 4 de novembro e foi seguida de painéis de debate a 5 e 6 de novembro, que juntaram ativistas, académicas e representantes da sociedade civil em torno da urgência de manter vivas estas narrativas.
Depois da exposição realizada em Bruxelas em março de 2024, esta mostra abre um espaço de reflexão sobre a situação das mulheres no Mianmar, que enfrentam atualmente a perda de direitos políticos e económicos, o aumento da violência e a pressão social decorrente de uma crise prolongada.
Entre o medo e a alienação, as mulheres permanecem na linha da frente da luta pela democracia e pelos direitos humanos, inspirando novas gerações com o lema “Luta como uma mulher.”
A União Europeia, através do seu instrumento de política externa Foreign Policy Instrument (FPI), volta a demonstrar o seu compromisso com a diplomacia cultural ao apoiar esta exposição em Timor-Leste.
Segundo Niall Leahy, representante da União Europeia, parte dos fundos do FPI destina-se especificamente a apoiar atividades culturais transnacionais, incluindo financiamento de artistas, curadoria e logística da exposição.
“Esses fundos são utilizados para apoiar os artistas, pagar honorários, cobrir o processo de convocatória das obras, bem como os custos de impressão e transporte”, afirmou.
A exposição foi inicialmente organizada em Bruxelas com financiamento do FPI, contando com 28 artistas e mais de 400 obras individuais. Para a continuação da mostra em Timor-Leste, o processo tornou-se mais simples, já que a maior parte das obras estava previamente impressa.
“Só precisamos de pagar o espaço, o transporte e fornecer alimentação para os convidados”, explicou Leahy, estimando que o orçamento total do evento tenha sido cerca de 14.000 dólares, muito inferior ao da primeira edição.
Curiosamente, em Timor-Leste, o transporte das obras foi feito pessoalmente por Leahy. Para garantir a segurança das peças, trouxe consigo 22 obras e dois filmes em duas malas vindas de Jacarta. “Não queria correr o risco de perder as obras, então trouxe-as comigo”, disse, a sorrir.
O embaixador da União Europeia em Timor-Leste, Thorsten Bargfrede, explicou que a diplomacia cultural é parte integrante da missão de paz da União Europeia. Desde a sua fundação, a UE tem-se apoiado em valores humanitários e nos direitos humanos, e questões relacionadas com sofrimento e direitos humanos em qualquer parte do mundo são parte desta compreensão.
“Agora vemos as histórias das mulheres do Mianmar, narrativas diversas contadas através de diferentes expressões artísticas”, acrescentou.
O embaixador relacionou a mensagem da exposição com a longa história de luta de Timor-Leste, sublinhando que a solidariedade internacional desempenhou um papel crucial na independência do país, e que agora é a vez de Timor-Leste demonstrar preocupação por outras nações.
“Timor-Leste esteve por muito tempo numa situação em que muitas pessoas, incluindo muitas mulheres, sofreram, sem que ninguém se importasse. Só muito tarde, talvez no início dos anos 90, é que começou a haver atenção externa. Sem a solidariedade internacional, este país talvez não existisse hoje como Estado soberano.”
O Secretário de Estado da Arte e Cultura, Jorge Soares Cristóvão, destacou que a exposição, que já passou por Singapura e Jacarta, visa mostrar, através da arte, como as mulheres de outros países enfrentam desafios, ao mesmo tempo que Timor-Leste se torna um espaço de expressão artística.
“Esta exposição promove a paz e a estabilidade no mundo. Agradeço à União Europeia por ter destacado a situação no Mianmar, permitindo que estas condições sejam expressas através da arte.”
Mianmar: quando a arte é um ato de resistência
No decorrer da guerra, do deslocamento e das sombras do poder militar, as vozes das mulheres do Mianmar continuam a ecoar através da arte e de documentários, evidenciando a sua luta pela sobrevivência sem perder a dignidade.
No documentário “Fighting Femmes”, de Min Thant, é retratada a história de uma professora e mãe solteira que se recusa a submeter-se à junta militar. Escolhe a resistência pacífica através do Movimento de Desobediência Civil, recusando assinar documentos que silenciariam a sua voz. Junto da filha, vive em fuga na região fronteiriça, enfrentando uma vida cheia de dificuldades, mas marcada pela coragem e integridade.
Entretanto, na animação “Limbo”, de Nwaye Zar Che Soe, SawEh Doh Poe e Nann Win May Aye, uma jovem do grupo étnico Karen relembra uma noite sombria da infância, marcada por um episódio de violência sexual que transformou a sua vida para sempre.
A animação, que utiliza areia como meio — facilmente dissipável —, ressalta tanto a fragilidade como a força das memórias e das feridas carregadas pelas mulheres em zonas de conflito. Com duração de 4 minutos e 17 segundos, “Limbo” aborda violência sexual contra crianças e funciona
como um aviso sensível, mas necessário.

Fotografia: “Women’s Resilience” / Foto: Diligente
Na exposição fotográfica “Women’s Resilience”, o povo Kachin — uma confederação de seis grupos étnicos no norte do Mianmar, junto à fronteira com a China — continua a enfrentar os efeitos prolongados do conflito armado: deslocamentos, violações de direitos humanos, disputas por terras e mineração ilegal. Desde 2021, a violência intensificou-se novamente.
Esta série fotográfica destaca a resiliência das mulheres e meninas Kachin em campos de deslocados internos (IDP) e em comunidades afetadas pela guerra. As imagens mostram o papel crucial das mulheres na gestão da crise: cavam abrigos anti bomba, cuidam das famílias e preservam tradições, apesar do medo.
A colagem “May All My Wishes Be Fulfilled”, de Thitsar Te, evidencia outro lado da crise económica e humanitária, citando a oração de uma mulher Karenni. “A nossa comida depende dos doadores. Tenho de rezar para que continuem a ajudar.”
A obra retrata a dura luta das mulheres para alimentar as suas famílias num país assolado pela guerra e pela pobreza. À medida que o número de refugiados aumenta, as mulheres enfrentam maior opressão e dificuldades, tornando as suas necessidades urgentes e visíveis.
O medo também se manifesta na instalação “Element of Terror”, de autor anónimo. Através da história de alguém traumatizado pelo toque do telemóvel, a obra reflete a vida sob o terror do Estado. “Cada chamada telefónica é agora assustadora.”
Após o anúncio de recrutamento militar obrigatório pela junta em fevereiro de 2024, muitos jovens, homens e mulheres, vivem com receio de serem forçados a lutar.
“Será que a chamada é de um amigo desaparecido? De um primo raptado? O toque tornou-se agora um sinal de perigo.”
Através de documentários, fotografias, colagens e instalações, estas obras tornam-se testemunhos da coragem das mulheres do Mianmar, que se recusam a desistir. Apesar de viverem na escuridão, as suas histórias iluminam o mundo sobre o verdadeiro significado de resiliência e humanidade.
Se no Mianmar a arte devolve voz às mulheres silenciadas pela guerra, em Timor-Leste a luta começa, muitas vezes, dentro das paredes da própria casa.
Entre a casa, a aldeia e o poder: a liderança que começa no silêncio
Os esforços para fortalecer a liderança feminina em Timor-Leste enfrentam grandes desafios, sobretudo ao nível das comunidades locais. Armando da Costa, Amy Nishtha Satyam e Natalino Guterres partilharam as suas perspetivas sobre como a cultura, as políticas e a educação influenciam a formação da liderança das mulheres, desde o ambiente doméstico até aos níveis de governo.
O Diretor-Geral da Secretaria de Estado da Igualdade e Inclusão, Armando da Costa, sublinhou que a representação feminina ao nível local continua muito baixa. Embora a nível nacional as políticas já ofereçam espaço através da legislação eleitoral, a participação das mulheres em sucos e aldeias é quase inexistente. “Atualmente, apenas cerca de 4% das mulheres são chefes de suco e 5% chefes de aldeia”, afirmou.
Segundo ele, a raiz do problema está no sistema social e cultural, que ainda coloca os homens como chefes de família e principais tomadores de decisão. Na prática, os convites para reuniões de aldeia ou encontros comunitários são sempre dirigidos ao “chefe de família”, entendido automaticamente como homem.
“As mulheres raramente têm oportunidade de estar presentes, quanto mais de falar. Se nem nos espaços simples de discussão são incluídas, é difícil esperar que surjam líderes femininas a partir da base da comunidade”, explicou.
Por sua vez, Natalino Guterres destacou a importância da educação como fundamento essencial para a formação da liderança feminina em todos os níveis. A educação, disse ele, oferece às mulheres capacidade para participar na tomada de decisões, tanto no âmbito doméstico como no público. “Quando uma mulher é educada, pode tomar decisões sobre a economia familiar, planeamento e até participar na governação.”
No entanto, alertou que os desafios culturais continuam a ser um grande obstáculo. Mesmo ao nível nacional, ainda se questiona se as mulheres no parlamento representam de facto a voz feminina ou apenas reforçam interesses masculinos. “Precisamos de garantir que a participação das mulheres não seja apenas uma formalidade de cotas, mas que seja realmente significativa.”
Guterres concluiu com otimismo. “A mudança social em Timor-Leste continuará a avançar se o governo, a sociedade e as instituições internacionais trabalharem juntos. A educação abre o caminho, mas a mudança de mentalidade acelerará os nossos passos. A liderança feminina não nasce da noite para o dia; ela cresce a partir do conhecimento, da experiência e da coragem de desafiar normas.”
A chefe da UN Women em Timor-Leste, Amy Nishtha Satyam, afirmou que o empoderamento feminino não pode limitar-se a políticas e cotas políticas. A verdadeira liderança feminina, disse, tem raízes no espaço mais íntimo: a família. “É muito difícil para uma mulher que não tem voz em casa expressar-se na comunidade. É lá que o patriarcado é mais forte e onde as mulheres estão mais vulneráveis.”
Mishtha acrescentou que muitas mulheres líderes em todo o mundo enfrentam a sua maior luta no espaço doméstico, onde se espera que mantenham a harmonia familiar à custa das suas próprias vozes e opiniões.
“Muitas vezes, o silêncio é a única forma de preservar a paz em casa. E quando se acostumam a ficar caladas em casa, não estão preparadas para falar fora dela.”
A líder destacou que o empoderamento feminino deve começar com medidas concretas, como independência económica, posse de bens e acesso à tecnologia. Porém, alertou que a autonomia financeira por si só não garante mudança. “Eu própria sou economicamente independente, mas ainda lutei para ser ouvida. Precisamos de mudar não apenas as condições económicas, mas também a forma de pensar da sociedade sobre o papel das mulheres.”
Mas antes de ocupar lugares de poder, muitas mulheres precisaram primeiro sobreviver à ausência dele — e a uma guerra que deixou marcas que nem a independência conseguiu apagar.
Feridas que a independência não curou

“As mulheres também lutaram, mas onde estão as suas histórias?” / Foto: Diligente
Na sessão sobre “Vozes das mulheres no passado”, viveu-se um momento profundamente emocional, apresentado pelas oradoras Isabel Galhos, uma jovem da resistência de 12 de novembro, Flávia, que no passado sofreu ferimentos causados por inimigos, e Manuela Leong Pereira, diretora da ACbit, que trabalha diretamente com mulheres sobreviventes e se dedica à preservação da memória histórica.
Para estas mulheres, a palavra “passado” representa uma memória muito dolorosa. Como Flávia revelou, o passado é marcado pela tristeza. Com a voz trémula, afirmou. “Perdi a minha família, que até então permanecia unida, antes de a guerra nos separar a mim e aos meus irmãos.”
As memórias dolorosas não ficaram apenas gravadas no coração; as grandes cicatrizes de Flávia, do nariz à bochecha, tornaram-se marcas físicas, mas também feridas que não podem ser curadas emocionalmente. Ainda jovem, Flávia teve de testemunhar a morte da sua família às mãos dos inimigos, uma experiência que deixou marcas profundas em toda a sua vida.
“O inimigo arrastou-nos para fora de casa para perguntar se tínhamos encontrado o exército Merah Putih. A minha mãe respondeu secamente que não sabíamos. Nesse instante, foi assassinada com uma facada no peito. Os meus irmãos fugiram em pânico e eu segurei o corpo da minha mãe diante de mim, enquanto o inimigo me cortava o rosto. O meu pai correu, e os meus irmãos mais velhos correram com ele. Nesse momento, o meu pai foi também assassinado com golpes de catana. Perdi os meus pais e a minha irmã mais velha numa única noite. Durante o incidente, o meu pai gritou: ‘Corram, senão vão todos morrer!’, e corremos. Eu tinha 7 anos”, contou.
Uma história igualmente triste vem de Iance Nissa, de Oe-Cussi, também testemunha do estupro da sua mãe por inimigos. “Quando ouvi o que aconteceu com a família de Flávia, partiu-me o coração, porque também fui testemunha da violência sexual contra a minha mãe. Aconteceu tudo à minha frente.”
Iance lamentou que, até hoje, todas as mulheres vítimas não tenham recebido o reconhecimento que merecem. “As pessoas continuam sem reconhecer a situação delas; pensam que se entregaram voluntariamente, e isso é muito doloroso.”
No passado, Iance não tinha coragem de falar sobre o assunto, mas hoje sente força para afirmar. “A minha mãe não é uma pessoa má; é uma mulher corajosa que enfrentou a situação na altura.”
Manuela Leong Pereira, que acompanha sobreviventes e vítimas, ouviu em primeira mão as experiências destas mulheres desde a invasão até aos dias de hoje. Para ela, as memórias tristes e solitárias das mulheres refletem o sofrimento contínuo. “As palavras que proferimos em nome das mulheres são de vítimas, porque em situações de guerra muitas são sempre alvos de violência e, mesmo depois de sofrerem, continuam sem receber qualquer reconhecimento.”
Além disso, acrescentou. “Pensamos também na resiliência das mulheres, na forma como conseguem viver em situações de discriminação. As suas vozes recordam-nos que ainda existe uma luta para permitir que as vítimas se manifestem, para que possam sentir-se melhor, curar-se e fortalecer-se, especialmente quando o Estado não se preocupa com elas.”
Isabela Galhos, mais conhecida como Bella Galhos, partilhou a sua perspetiva sobre o significado das palavras “passado”. Enquanto mulher prestes a completar 53 anos, afirmou que a sociedade muitas vezes só vê os resultados do sucesso, e não a luta pessoal por trás deles.
“Falando do passado que ainda me lembro, cresci com uma mãe e um pai com pensamentos contraditórios. À medida que fui crescendo, tive consciência da discriminação que limitava os meus direitos. Fui uma das crianças que frequentou a escola primária durante nove anos, porque o meu pai achava que eu não tinha valor para pagar propinas, principalmente por ser rapariga.”
Bella testemunhou ainda várias formas de violência sofridas pela sua mãe pelo próprio pai. “Quando era pequena, não entendia o que era violência e não sabia como a expressar, mas agora consigo explicar o que é a violência e como acontece.”
Embora a luta pela independência tenha avançado, as feridas que permanecem são cicatrizes que nunca desaparecerão. O sofrimento do passado continua a ser uma memória viva, presente e sentida.
Sobreviver, porém, não significou reconhecimento. E para milhares de mulheres, a paz nunca chegou a traduzir-se em justiça.
Depois da guerra, a batalha pelo direito de existir
Após Timor-Leste alcançar a independência, todos os esforços concentraram-se no povo timorense, finalmente livre da ocupação indonésia. No entanto, para as vítimas de violência sexual, a luta não terminou: continuam a enfrentar discriminação e estigma na sociedade.
Falar sobre esta discriminação implica enfrentar desafios reais, como no caso de Bella, que, mesmo após a independência, teve de recomeçar a lutar contra todas as formas de discriminação relacionadas com a sua identidade.
“Tinha apenas 16 anos quando lutei pela independência; também fazia parte da família, sem consultar ninguém, mas de repente a minha vida já estava no Canadá. Ao regressar, senti que a minha existência enfrentava novamente obstáculos. Depois de toda a luta do passado, as pessoas ainda questionam se tenho direito a viver aqui, tudo por causa da minha identidade de género, sobre a qual eu própria não posso fazer nada, e isso é muito doloroso.”
Atualmente, Bella continua a lutar para sobreviver sem ser discriminada e para conquistar oportunidades e recursos que merece. “Até hoje, continuo a lutar porque sei que perdi muitas oportunidades devido à minha identidade.”
A sua luta não se limita à independência e à comunidade LGBTQIA+; abrange também a violência contra as mulheres, a liderança feminina e a participação dos jovens no processo de desenvolvimento.
“Mas a sociedade impediu-me de falar sobre tudo isto, fechou portas e optou por não ver a situação.”
Para Manuela Leong Pereira, uma experiência que a marcou profundamente tem sido acompanhar, desde 1998, o percurso das pessoas que, na Hamutuk, resistem a longas lutas por justiça e continuam a apoiar as vítimas, apesar da discriminação e da humilhação que persistem.
“Até hoje, não houve mudanças positivas, nenhuma assistência e nenhuma política específica para dar atenção às vítimas. As pessoas veem primeiro os veteranos, os heróis, mas as mulheres, especialmente as que sofreram violência sexual, continuam a sofrer estigma e discriminação.”
Os filhos das vítimas também enfrentam discriminação durante anos, não só por parte do governo, mas também da Igreja Católica. “É muito difícil tratar os documentos porque não têm pai, e depois as pessoas dizem que são filhos de prostitutas.”
Como diretora da associação, Manuela tem de separar as histórias e experiências de sofrimento das vítimas, de forma a dar-lhes força, apesar da enorme dificuldade.
Normalmente, são os homens que são considerados heróis ou chamados de “Asuwain”. Timor-Leste é independente há 25 anos, mas as mulheres também desempenharam um papel significativo na conquista da independência. A questão permanece: as mulheres lutaram, mas onde estão as suas histórias?
“Quando vou ao museu, basta olhar com atenção para ver a minha foto, e infelizmente há menos de 20 fotos de mulheres comparadas com as dos homens. É por isso que precisamos de reescrever a nossa própria história, e estou atualmente a editar um livro sobre mim”, disse Bella Galhos.
Através destes eventos, a ACbit procura criar uma exposição para que as adolescentes compreendam a história das sobreviventes e a sua luta pela liberdade. “Muitas pessoas que sofrem violência sexual procuram ajuda junto das famílias, mas muitas famílias recusam aceitá-las. Os filhos das vítimas acabam por sofrer bullying e são privados da atenção que merecem.”
Manuela também expressou preocupação com a ausência de um currículo escolar que integre a história de Timor-Leste, tornando-se um problema persistente.
“A associação tem procurado agir através da disponibilização de cinco livros, resultado de uma colaboração com o Ministério da Educação, distribuídos aos professores e acompanhados de formação. O processo complica-se com mudanças de Governo. Na altura, a língua foi alterada do português para o tétum, depois voltou para português, mas esta situação ainda persiste no setor da educação.”
Amandina Maria Helena Da Silva, ativista de direitos humanos e participante do evento, salientou que até agora houve pouca atenção pública e produção académica sobre a história das heroínas.
“Ao estudar a história no CNC, nomes como Nicolau Lobato ou Francisco Xavier são mencionados, mas não o de Maria Tapo. Da mesma forma, não há referência a Rosa Muki Bonaparte, incluindo a sua estátua. Em muitos locais, apenas se destaca os heróis masculinos.”
Acredita que o Estado não demonstra seriedade suficiente em apresentar a história das mulheres como figuras-chave na construção da nação. “A mentalidade patriarcal influencia as narrativas históricas. Muitas vezes escreve-se que ‘as mulheres sacrificaram os seus corpos para salvar os homens’, mas não se relatam histórias que digam que ‘as mulheres sofreram violência sexual para conquistar a independência de Timor-Leste’.”
Amandina concluiu que a narrativa histórica frequentemente retrata as mulheres como as que se entregaram aos inimigos por amor, quando na realidade se sacrificaram pela liberdade e pela independência. “O problema estende-se também aos museus, que comparam frequentemente as mulheres aos homens.”
Como defensora da história das mulheres, enfatizou a importância de preservar estas memórias. Quanto ao Dia Nacional da Mulher, mostrou insatisfação pela atenção insuficiente dada à data. “O Dia Nacional da Mulher só foi instituído a 3 de novembro, quando Maria Tapo faleceu e Nicolau Lobato o inaugurou. Infelizmente, as pessoas não deram muita atenção à data, que coincidiu com outro evento, quando as mulheres deveriam ser homenageadas.”
Elas estiveram na guerra. Estão na reconstrução. E continuam, hoje, na luta pela memória.
A independência fez nascer um país — mas ainda não fez nascer espaço suficiente para contar todas as histórias. As delas permanecem fora dos discursos oficiais, longe das estátuas, ausentes dos manuais, mas impossíveis de apagar.
A história destas mulheres não acabou. E, enquanto o silêncio pesar mais do que a memória, a luta continuará a ser a sua forma — e o seu ato mais urgente — de liberdade.
