Massacre de Santa Cruz: histórias de jovens que arriscaram tudo pela liberdade

Procissão de Motael para o cemitério de Santa Cruz este ano, em homenagem aos jovens mortos no massacre de 1991/Foto: DR

Os jovens combatentes pela independência sabiam que iriam pagar com a vida, mas, conscientemente, sacrificaram-se para alcançar a vitória. Sem o jornalismo corajoso e apaixonado, esses sacrifícios teriam sido em vão.

Na manhã de 12 de novembro, há 33 anos, milhares de jovens timorenses reuniram-se em Díli, conscientes de que estavam a desafiar a morte. Aqueles que se juntaram à procissão para o cemitério de Santa Cruz sabiam que estavam a arriscar tudo. Não era apenas uma marcha para prestar homenagem a Sebastião Gomes, brutalmente assassinado dias antes, mas uma ousada declaração ao mundo: Timor-Leste exigia o seu direito à autodeterminação.

Ao relembrar o massacre de Santa Cruz, destacam-se os 271 jovens que perderam a vida, segundo o relatório Chega! da Comissão de Acolhimento, Verdade e Reconciliação de Timor-Leste (CAVR), e os inúmeros que desapareceram sem deixar rasto.

A tragédia, capturada pelas corajosas lentes do jornalista britânico Max Stahl, tornou-se um ponto de viragem para a luta pela independência timorense. O mundo, até então alheio, finalmente abriu os olhos para o sofrimento deste pequeno território, ocupado pela Indonésia.

A violenta repressão ao protesto não foi apenas um banho de sangue no cemitério. Foi um capítulo numa longa história de torturas, desaparecimentos e violência sexual que marcaram a ocupação indonésia. Durante anos, o povo de Timor-Leste enfrentou uma opressão impiedosa, perdendo vidas e dignidade para que as gerações futuras pudessem viver em liberdade.

Segundo Duarte Basílio Ximenes, conhecido como ‘Leki Kiik’, sobrevivente dos incidentes em Motael e do massacre de Santa Cruz, o objetivo dos jovens naquele dia não era apenas homenagear Sebastião Gomes e protestar, mas chamar a atenção internacional para a causa timorense.

“É melhor morrer por uma causa justa do que viver sem fazer nada”, recorda Januário Gomes ‘Tali Meta’, sobrevivente do massacre e ex-prisioneiro. Em entrevista ao Centro Audiovisual Max Stahl de Timor-Leste (CAMSTL), ‘Tali Meta’ afirmou que dar a vida para que outros possam viver melhor é um sacrifício de enorme valor. Para estes jovens, a morte era um preço aceitável para que o mundo percebesse a brutalidade que se vivia sob o jugo indonésio.

O massacre no cemitério: testemunhos de horror

Os jovens ativistas preparavam-se para receber a delegação do Parlamento português com manifestações. A delegação incluía Jill Jolliffe como membro informada (ela vivia em Portugal há alguns anos). No entanto, os indonésios impediram a delegação de entrar devido à sua presença, levando os portugueses a cancelar a visita. Ainda assim, alguns jornalistas conseguiram entrar em Timor-Leste disfarçados de turistas. Ao perceberem a presença de jornalistas, os jovens decidiram avançar com a manifestação.

A iniciativa tornou-se uma prova concreta para a diplomacia de Ramos-Horta, que procurava levar ao fórum internacional as denúncias de violações de direitos humanos cometidas pela ocupação indonésia.

Enquanto a procissão seguia em direção ao cemitério, os militares, polícias e agentes de inteligência indonésios alinhavam-se na rua, observando a multidão. Estima-se que cerca de 3.500 jovens tenham participado na missa em Motael.

O que começou como uma homenagem pacífica rapidamente se transformou num protesto, onde panfletos foram lançados ao ar, clamando por liberdade. Para ‘Leki Kiik’, a manifestação foi o ponto de partida para um plano maior.

O plano era ousado: alguns dos jovens levavam granadas, esperando confiscar armas dos militares. Mas como lembra ‘Leki Kiik’, o destino não esteve do seu lado. Os militares presentes estavam desarmados. Apenas um militar estava armado, mas os jovens decidiram que não valia a pena atirar uma granada para obter apenas uma arma.

No entanto, pouco depois, chegou um carro vindo de Becora para o cemitério, transportando militares armados. Um jovem lançou uma granada ao veículo, mas esta não explodiu, perdendo-se assim uma oportunidade de confiscar armas. “Se não houvesse falhas, não teriam morrido tantos jovens”, recordou o sobrevivente.

Acrescentou que, após a granada não rebentar, os tiros ecoaram pelo cemitério. Testemunhou que os primeiros disparos não partiram dos militares indonésios, mas sim de timorenses. Enquanto isso, as milícias, relatou ‘Leki Kiik’, esfaqueavam os jovens independentistas.

De acordo com o relatório da CAVR, logo que chegaram ao cemitério, os jovens foram massacrados pelas forças indonésias, que abriram fogo durante 5 a 10 minutos com metralhadoras.

Jacinto Alves, um ativista clandestino que conseguiu escapar, testemunhou: “Depois de caminhar cerca de 200 metros, ouvi tiros rápidos durante aproximadamente cinco minutos, seguidos de disparos isolados, que continuaram por muito tempo já depois de eu ter chegado a casa”.

Simplício Celestino de Deus, um sobrevivente, relatou à CAVR que, após cerca de 10 minutos de tiroteio, viu os militares a entrar no cemitério, onde pontapeavam e agrediam os feridos com coronhadas.

Muitos jovens foram executados a sangue frio, enquanto outros, mesmo feridos, encaminhados diretamente para o mortuário, onde foram executados. Aviano Faria, um dos sobreviventes, escapou fingindo ser um informador dos militares indonésios.

O relatório indica que o número estimado de pessoas detidas após o incidente, segundo a Amnistia Internacional, foi de cerca de 300. Os testemunhos recolhidos descreveram os métodos de detenção arbitrária como brutais, envolvendo espancamentos severos tanto por parte da polícia como dos militares.

As detenções e torturas de jovens ativistas pró-independência intensificaram-se após o massacre. “Muitos foram mortos no cemitério, mas muitos mais perderam a vida fora dele, enquanto tentavam fugir ou eram retirados dos seus esconderijos em casas e em outros locais para serem assassinados”, relatou Simplício de Deus.

O documento destaca que os estudantes foram especificamente alvo das forças de segurança após o massacre em Santa Cruz. “No final, muitas crianças pagaram um preço elevado pelo seu envolvimento no massacre. Dos 271 registados como mortos no cemitério de Santa Cruz, 42 tinham menos de 17 anos, incluindo alguns com apenas dez anos de idade.”

Max Stahl: o jornalista que mudou o destino de Timor-Leste

Foi a coragem de Max Stahl que trouxe estas atrocidades à luz. Max acompanhou a procissão e capturou em vídeo a brutalidade que se desenrolou diante dos seus olhos. Sob risco de vida, escondeu a gravação num túmulo e conseguiu escapar.

Segundo ‘Leki Kiik’, que alega ter estado ao lado de Max Stahl enquanto este enterrava a gravação, o jornalista usou uma pequena faca para escavar a terra. Apesar de ter sido detido, foi posteriormente libertado por não terem encontrado qualquer gravação.

Quatro dias depois, a 16 de novembro de 1991, a filmagem foi transmitida pela televisão holandesa, provocando uma onda de indignação global. Esta exibição mudou drasticamente a perceção mundial sobre a ocupação indonésia em Timor-Leste, confirmando o que os apoiantes da sociedade civil há muito denunciavam: que “Timor-Leste era uma sociedade em grande sofrimento, onde a repressão militar era uma realidade, e que um verdadeiro ato de autodeterminação era a chave para a paz”.

Ramos-Horta afirmou à CAVR que a filmagem de Max Stahl no cemitério de Santa Cruz foi crucial para impedir que a comunidade internacional continuasse a duvidar das suas denúncias de genocídio.

A saída da filmagem do país foi orquestrada por Saskia Kouwenberg, jornalista e ativista de direitos humanos, com a ajuda do Ministro dos Negócios Estrangeiros holandês que visitava Timor-Leste em antecipação à esperada visita da delegação portuguesa. Saskia conseguiu passar pelo aeroporto sem ser revistada, tendo-se preparado para o pior: fez sangrar o nariz e espalhou o sangue nas cuecas, precisamente sobre o local onde escondeu a gravação.

Para Max Stahl, a mensagem captada pela sua câmara foi uma mensagem de dignidade. Antes, a morte de um timorense era apenas “um momento fugaz na morte de mais um ser humano, impotente perante o abuso e a crueldade da ignorância e do poder”, mas esta filmagem transformou a perceção das pessoas em todo o mundo. “Às vezes, a dignidade pode mudar o mundo. Esta foi uma mensagem que libertou uma nação e reacendeu a esperança num mundo de desespero”, afirmou Max Stahl em 2020, numa homenagem às vítimas do massacre.

“Continuemos todos a luta pela dignidade, contra todas as probabilidades, pela qual morreram aqueles jovens no dia 12 de novembro de 1991”, concluiu Max Stahl no seu discurso de 2020, um ano antes da sua morte.

A data da sua morte coincidiu com a de Sebastião Gomes, ocorrendo exatamente trinta anos depois, a 28 de outubro de 2021. “Parece demasiado forte para ser coincidência. Ele não o teria sabido conscientemente, porque estava inconsciente, mas, de alguma forma, sabia. De certa forma, o significado desse acontecimento foi muito profundo. É quase perturbador porque é tão coincidente”, lembrou a mulher de Max Stahl, Ingrid Bucens, emocionada.

O funeral do jornalista, segundo a sua mulher, não poderia ter sido noutro local. “Nunca pensou em querer morrer, mas disse-me que, se morresse, gostaria que as suas cinzas fossem espalhadas em Santa Cruz”, revelou. Uma pequena parte das suas cinzas foi espalhada na Suécia, de onde é originária a família da sua mãe.

Para Ingrid, Max Stahl era um pensador profundo, elegante, inteligente e socialmente consciente do que realmente importava. “Ele tinha grande esperança no desenvolvimento de Timor-Leste e estava orgulhoso do facto de os timorenses terem conseguido gerir a sua transição”, contou Ingrid.

“O que aconteceu em Santa Cruz não foi apenas crucial para Timor-Leste, mas também para o percurso pessoal de Max, porque, como ele próprio disse, quase morreu nesse dia”, acrescentou Ingrid.

Segundo ela, a ligação que o seu falecido marido estabeleceu com Timor-Leste e com o seu povo deu um novo rumo à vida dele, tornando-se uma força motriz para a sua existência e o seu empenho em servir a população timorense.

Isto manifestou-se no seu envolvimento com o Centro Audiovisual Max Stahl de Timor-Leste (CAMSTL). Max Stahl acreditava que a preservação desta história seria um recurso contínuo e valioso para os timorenses, académicos e jornalistas, ajudando a manter vivas as histórias, promover o orgulho nacional, a pertença e a paz. A paixão e dedicação do jornalista mantiveram-se até ao seu último suspiro. Pouco antes de morrer, escreveu à sua mulher: “Talvez eu precise de morrer para que o CAMSTL sobreviva”.

Ingrid revelou que Max Stahl lutou incansavelmente para que o CAMSTL fosse reconhecido, apoiado e transformado em propriedade do Estado. “E quando estava a morrer, pensou: isto fará com que os timorenses queiram manter o CAMSTL vivo. Era o que mais importava para ele”, afirmou Ingrid.

Agora, o legado está nas mãos dos timorenses e da família de Max Stahl: a sua mulher e filhos. Ingrid compromete-se a continuar a contribuir e a trabalhar para garantir que o arquivo seja sustentável a longo prazo. Max deixou a memória de Santa Cruz como uma herança aos seus filhos, contando-lhes a história e levando-os ao cemitério todos os anos, antes de deixar Timor-Leste em 2020.

“Max Stahl destacou que o CAMSTL defende a ideia de que as vidas das pessoas que vivem e crescem em Timor-Leste são tão valiosas quanto as de quem cresce nos Estados Unidos ou na Europa e merecem ser vistas e respeitadas da mesma forma”, afirmou Arnold S. Kohen, ativista e escritor que apoiou a causa timorense a nível internacional, numa homenagem a Max Stahl em novembro de 2021.

Arnold S. Kohen deixou um alerta: “Todas as nações têm uma história e, se não a conhecem ou compreendem, estão condenadas a repeti-la.”

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