Governo suspende financiamento do navio Haksolok após uma década sem conclusão

O Governo já pagou cerca de 19 dos 26 milhões de euros previstos no contrato e decidiu suspender o financiamento do projeto, segundo o relatório da Comissão C. /Foto: Página do Facebook Antlanticeagle Shipbuilding

Cerca de 20 milhões de euros já foram pagos desde 2014, mas o ferry continua inacabado. A empresa portuguesa responsável exige mais 8,5 milhões para concluir o navio, prometendo entregá-lo em novembro — algo que dificilmente acontecerá.

A visita da Comissão C que trata das Finanças Públicas do Parlamento Nacional a Portugal, em julho deste ano, resultou num novo pedido da empresa Atlanticeagle Shipbuilding para que o Governo timorense pagasse cerca de 8,5 milhões de euros e assim concluir o navio Haksolok.

O Ministro dos Assuntos Parlamentares, Adérito Hugo, informou no Parlamento, na semana passada, que o Governo decidiu não avançar com novos pagamentos e prefere apostar numa empresa japonesa, que planeia investir na criação e manutenção de navios em Timor-Leste, em vez de “continuar a perder tempo” com a empresa portuguesa.

Segundo o Jornal de Negócios, o Haksolok tinha atingido 85% de construção em 2023, antes de ser novamente suspenso devido à falta de comunicação entre a empresa e o Governo timorense. A empresa atribuiu o impasse ao período final do mandato do então presidente Rogério Tiago Lobato, com quem o Diligente tentou falar, mas sem sucesso.

Na semana passada, o primeiro-ministro, Kay Rala Xanana Gusmão, revelou aos media que, desde o início do atual mandato, em julho de 2023, o Governo recebeu um pedido de transferência de 10 milhões de euros, mas decidiu não autorizar o pagamento.

“Se uma ponte em construção nunca for concluída, a companhia não sabe como fazer. Então paramos. Estávamos sempre a pedir, mas nunca houve progresso”, declarou Xanana Gusmão, esta quinta-feira (23 de outubro), no Palácio Presidencial.

Durante a visita da Comissão C ao estaleiro em julho, a deputada Maria Angélica Rangel afirmou que a empresa apresentou um progresso de cerca de 90% na construção do ferry.

Recorde-se que o Governo timorense assinou, em 2014, um contrato com a Atlanticeagle Shipbuilding para a construção do navio Haksolok, no valor inicial de 13,3 milhões de euros. Porém, o custo foi aumentando ao longo dos anos, através de adendas contratuais e novos compromissos financeiros.

Um relatório da Comissão C do Parlamento aponta irregularidades no processo e o Ministério Público já investiga o caso desde 2023. De acordo com a Hatutan.com, a investigação encontra-se em 70%, devido à complexidade do processo.

O ferry, atualmente em Portugal, tem capacidade para mais de 300 passageiros e 15 automóveis, e foi projetado para ligar Díli, Ataúro e Oé-Cusse.

Irregularidades e atrasos desde o início do projeto

Os problemas começaram logo em 2014, com a compra de equipamentos e desenhos do antigo navio Anticiclone, no valor de 1,27 milhões de euros. O Anticiclone foi uma encomenda do Governo Regional dos Açores aos Estaleiros Navais de Viana do Castelo (ENVC), mas nunca chegou a ser concluído devido a falhas de estabilidade e incumprimento de normas internacionais de segurança, conforme indica o relatório do Parlamento Nacional timorense.

A compra desses equipamentos foi feita por sugestão da Atlanticeagle Shipbuilding, que os apresentou como uma “boa oportunidade”. No mesmo ano, a empresa foi contratada por Timor-Leste para desenhar, construir e entregar o Haksolok pelo valor de 13,3 milhões de euros.

Contudo, surgiram rapidamente novos problemas: parte dos materiais nunca foi entregue, e outros estavam obsoletos ou em mau estado. Para corrigir as falhas, o Governo teve de gastar mais 3,75 milhões de euros na substituição de equipamentos e na reformulação técnica do projeto.

Nos anos seguintes, adendas contratuais elevaram o valor global para 17,3 milhões de euros. Até 2016, o Governo já tinha pagado cerca de 16 milhões de euros, embora o navio estivesse apenas 70% concluído, segundo o Jornal de Negócios. O Parlamento referiu ainda que a empresa não apresentou garantias bancárias adequadas.

Em 2016, a Atlanticeagle entrou em crise financeira após a morte do seu fundador, Carlos Costa, e acabou por suspender a atividade em 2018, devido a dívidas, falta de liquidez e danos causados pelo furacão Leslie.

Depois da substituição por Bruno Costa, a empresa aderiu, em 2019, ao Processo Especial de Revitalização (PER), com Timor-Leste como principal credor, comprometendo-se a injetar mais 20 milhões de dólares e detendo, consequentemente, 95% da empresa. O PER também concedeu reduções fiscais à Atlanticeagle, para tentar garantir a continuidade das suas operações e a finalização do Haksolok.

Pagamentos retomados em 2021 e futuro incerto do Haksolok

Quando a empresa aderiu ao sistema de Processo Especial de Revitalização (PER), o Governo timorense retomou os pagamentos entre agosto de 2021 e outubro de 2023. No início, os montantes eram reduzidos — de dezenas de milhares de euros —, mas, a partir de 2022, sobretudo no final desse ano, os gastos ascenderam a milhões.

O total de dinheiro enviado nesse período foi de 12,3 milhões de euros, incluindo pagamentos relativos a gastos comuns, manutenção dos estaleiros, ao ferry Haksolok e a dois pontões. O relatório sublinha que a manutenção dos estaleiros e os gastos comuns não estavam previstos no contrato.

Além disso, a empresa gastou mais do que o montante recebido, gerando um saldo negativo superior a 3 milhões de euros. Segundo o documento, esse saldo negativo foi registado nos gastos comuns, nomeadamente fornecimentos e serviços externos, impostos, recursos humanos e outros encargos.

Para Maria Angélica Rangel, deputada da FRETILIN, estes 3 milhões registados como dívidas de Timor-Leste correspondem ao dinheiro próprio da empresa, utilizado durante o período de interrupção do investimento para manter o estaleiro e melhorar o desempenho do navio.

O relatório conclui que faltam cerca de 8 milhões de euros para concluir o ferry e os dois pontões. “A ausência de verbas levou à suspensão de contratos com fornecedores e à perda de oportunidades comerciais”, refere o documento.

Segundo Maria Angélica Rangel, a continuidade do investimento é essencial para garantir o avanço da obra, uma vez que o Governo já investiu tanto no navio como no estaleiro e detém 95% das ações da empresa.

A empresa solicitou um reforço financeiro de cerca de 8 milhões de euros para finalizar a embarcação e liquidar dívidas pendentes. “Explicaram que, se enviássemos o nosso compromisso com uma dívida de cerca de 8 milhões, o navio poderia ser concluído e entregue em novembro”, afirmou.

Maria Angélica acrescentou que este valor adicional se tornou necessário porque o orçamento previamente aprovado pelo Parlamento foi canalizado para a RAEOA, permanecendo na rubrica do Fundo Especial. “Na verdade, já pagámos, mas o então presidente da RAEOA, Rogério Tiago Lobato, cancelou de imediato o contacto com o nosso investimento no estaleiro durante um ano. As pessoas enviaram-nos documentos e relatórios, mas o proprietário não respondeu a nada”, explicou.

Por outro lado, a presidente da Comissão C, Cedelizia dos Santos, solicitou ao Governo que suspendesse novos investimentos na construção do navio até serem esclarecidas as irregularidades financeiras identificadas no projeto.

A construção do ferry Haksolok, iniciada há mais de uma década, tornou-se uma polémica recorrente em campanhas eleitorais. A opinião pública tem também questionado, nas redes sociais, a eficácia dos investimentos e a transparência do processo.

O Governo já investiu a maior parte do valor contratual e decidiu agora não continuar o financiamento. O relatório da Comissão C do Parlamento Nacional menciona um valor global de 26 milhões de euros, dos quais cerca de 19 milhões já foram pagos.

A não continuidade do investimento pode representar a perda dessas verbas ou, por outro lado, a prevenção de prejuízos ainda maiores.

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