Arquiteto timorense nascido em Portugal, Flávio Miranda acredita que a arquitetura é mais do que estética ou construção — é a forma como se molda a vida em sociedade. Com vasta experiência em urbanismo e planeamento, defende que Timor-Leste só terá cidades verdadeiramente habitáveis quando se pensar primeiro nas pessoas e depois nos edifícios. A implementação dos planos existe, mas sem técnicos formados, tudo fica no papel.
Flávio Miranda é licenciado em Arquitetura pela Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa desde 2007. Em 2004, frequentou, no âmbito do programa Erasmus, a École Nationale Supérieure d’Architecture de Montpellier (ENSAM), em França, onde se especializou em projetos de habitação coletiva para pessoas com dificuldades motoras.
Em 2009, inscreveu-se como membro da Ordem dos Arquitetos Portugueses. Como arquiteto, trabalhou em gabinetes de arquitetura em vários países, como França, Irlanda e Áustria, onde se especializou em projetos de urbanismo e arquitetura, habitação social, hospitais, museus, escolas, entre outros.
Em 2011, foi convidado a integrar a Secretaria de Estado da Arte e Cultura de Timor-Leste (SEAC), como assessor para o património arquitetónico. Nesse cargo, colaborou na criação de instrumentos legais e técnicos para proteger o património de origem portuguesa e timorense. O trabalho resultou na publicação de dois livros sobre o património arquitetónico, um dedicado ao município de Liquiçá e outro à cidade de Díli. “Acredito que qualquer pessoa que vive numa cidade deve conhecer a sua origem e o seu legado histórico”, afirma.
Depois de uma passagem pelo setor privado, regressou à administração pública, desta vez no Ministério do Plano e Ordenamento (MPO), onde se dedicou ao planeamento urbano, tanto a nível nacional como municipal. Participou e acompanhou o processo de elaboração de planos municipais de ordenamento do território e no acompanhamento do Díli Urban Master Plan. Contribuiu e participou na elaboração de leis complementares a ligadas a políticas de gestão territorial.
Apesar de ter nascido em Portugal, Flávio Miranda afirma com convicção a sua identidade timorense. Desde cedo, sentiu uma forte ligação a Timor-Leste, alimentada pelas histórias contadas pelos pais e outros familiares.
No início da vida universitária, logo após o referendo de 20 de agosto de 1999, foi convidado, juntamente com outros bolseiros timorenses, para um almoço oficial com o então Presidente da República de Portugal, Jorge Sampaio, e com o Primeiro-Ministro António Guterres, no Palácio de Belém. Recorda que, nessa ocasião, deu entrevistas em que lhe perguntaram sobre a ligação a Timor-Leste. “A resposta era sempre a mesma: nasci em Portugal, mas cresci a ouvir os meus pais falarem de Timor todos os dias. Foi uma presença constante que ganhou forma dentro de mim.”
Para Flávio, a escolha da arquitetura foi mais do que uma decisão profissional. “Estudar arquitetura foi uma forma de me preparar. Queria adquirir o máximo de conhecimento possível para um dia, ajudar a reconstruir Timor.”
Reconhece que a arquitetura é, muitas vezes, reduzida à sua vertente económica, mas defende que o seu verdadeiro papel vai muito além disso. “Muitos esquecem-se de que a arquitetura é essencial na vida das pessoas. “É ela que molda os espaços e os seres humanos, que determina o nosso dia a dia e onde guardamos as nossas memórias. Ou seja, é a arquitetura que define a mobilidade e influencia a forma como vivemos. Mais do que uma profissão, é uma forma de dar vida às comunidades.”
Com mais de duas décadas de experiência internacional e um percurso marcado pelo compromisso com o território timorense, Flávio Miranda conhece profundamente os desafios do urbanismo em Timor-Leste. Nesta entrevista, reflete sobre a história de Díli, o impacto da ausência de planeamento, os obstáculos à descentralização e o papel transformador da arquitetura.
Pode explicar-nos o contexto histórico que esteve na origem da fundação de Díli?
Díli, na verdade, surge na sequência de uma mudança de capital. Sabemos que os portugueses, quando chegaram a Timor, em 1515, instalaram-se primeiro em Lifau, embora não de forma totalmente fixa. Estavam também em Alor e vinham ocasionalmente a Timor para recolher sândalo, que na altura tinha um valor comercial elevado e era muito apreciado pela nobreza europeia.
Mais tarde, devido aos vários conflitos em Oé-Cusse e Lifau, a administração portuguesa começou a sentir a pressão de outras potências europeias, nomeadamente da Holanda, que nessa época também disputava o controlo das rotas das especiarias. O espaço em Oé-Cusse tornava-se cada vez mais limitado para os interesses portugueses. As forças portuguesas estavam a ser encurraladas e viram-se obrigadas a procurar outro local, dentro do próprio território, que fosse mais estratégico para a sua defesa.
Em 1769, deram-se as primeiras incursões: algumas caravelas saíram de Oé-Cusse à procura de um porto mais seguro na costa norte de Timor. Inicialmente, os portugueses pararam em Carabela, Baucau, mas consideraram que era um local demasiado exposto. Avançaram então um pouco mais para oeste e encontraram a baía de Díli.
Esta baía reunia várias condições favoráveis — uma planície ampla, uma localização geográfica estratégica e características naturais que permitiam a atracagem segura de embarcações. A ocupação de Díli passou por várias fases: numa primeira etapa, foram construídas estruturas básicas, como tranqueiras de madeira. Mais tarde, após um grande incêndio, a administração portuguesa procurou consolidar a sua presença em Timor e iniciou os primeiros planos urbanos para a cidade.
De que forma é que a história e a evolução política de Díli influenciaram a configuração atual da cidade?
Se observarmos com atenção, toda a história de Timor-Leste foi marcada por diversos conflitos e disputas — quer internas, entre os próprios reinos locais, quer motivadas pelos interesses da administração portuguesa. A presença portuguesa via o sândalo como uma importante fonte de riqueza, pelo que procurava um porto seguro que permitisse desenvolver atividades de extração de recursos naturais. Díli acabou por se revelar o local mais vantajoso para esse tipo de assentamento, devido à sua localização estratégica e às condições naturais favoráveis.
A história e a evolução política de Díli tiveram um impacto profundo na sua configuração urbana atual, moldando a cidade ao longo de diferentes períodos de influência: colonial, ocupação e, finalmente, independência.
Atualmente, Díli é uma cidade que exibe as cicatrizes e as camadas da sua história. Desde a sua fundação, em 1769, que foi concebida como centro administrativo e comercial, inicialmente composta por frágeis construções de madeira, mais tarde consumidas por sucessivos incêndios. Em 1834, surgiu o primeiro plano de urbanização da cidade e, em janeiro de 1864, Díli foi elevada à categoria de cidade.
Entre 1939 e 1945, durante a Segunda Guerra Mundial, Díli sofreu com a invasão japonesa e os conflitos entre as forças japonesas e australianas. A cidade foi parcialmente destruída, incluindo vários edifícios icónicos, como a Igreja Matriz, entre outros. No período pós-guerra, iniciou-se a reconstrução da cidade, sendo parte do que sobreviveu reabilitado.
Neste contexto, destaca-se o Anteplano Geral de Urbanização de Nova Díli. Entre 1951 e 1973, foram elaborados novos planos de urbanização, começando em 1951, com o objetivo de regular a reconstrução da cidade. A execução destes planos ocorreu no âmbito dos sucessivos Planos de Fomento, em vigor entre 1953 e 1973, que ainda hoje influenciam a configuração urbana de Díli.
Durante a ocupação indonésia (1975-1999), algumas áreas da cidade foram urbanizadas e a catedral de Díli, construída nesse período, continua a ser um dos seus principais ícones. Após o referendo de 30 de agosto de 1999, que resultou na independência do país, seguiram-se episódios de intensa violência, com muitos edifícios a serem incendiados ou destruídos.
O período pós-conflito centrou-se na reconstrução, enfrentando desafios contínuos. A ajuda internacional desempenhou, e continua a desempenhar, um papel crucial no desenvolvimento das infraestruturas e na reabilitação habitacional.
“Continuamos a ter esgotos a céu aberto, sistemas de drenagem que não funcionam, lixo espalhado nas ruas. Tudo isto tem implicações graves na saúde pública, provoca doenças e compromete o ambiente urbano. Não é saudável, nem sustentável”
Díli tem atualmente um plano urbanístico estruturado? Se não, por que motivo ainda não foi implementado?
De momento, não existe ainda nenhum plano aprovado, mas sim três documentos que servem como referência para o desenvolvimento de um futuro plano de urbanização de Díli.
O primeiro surgiu em 2006, elaborado pela Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa, nomeadamente pela equipa do GERTIL, e inclui propostas de planos e um regulamento.
Mais tarde, em 2016, foi desenvolvido o plano conhecido como Dili Urban Master Plan (DUMP) toward 2030 (Plano Diretor Urbano de Díli para 2030), com o apoio da JICA (Agência de Cooperação Internacional do Japão). No entanto, a sua implementação tem enfrentado obstáculos significativos, o que indica que, embora exista o plano, a sua aplicação oficial e abrangente ainda não se concretizou.
Em janeiro de 2023, o Ministério do Planeamento e Ordenamento do Território (MoPT) anunciou o lançamento de uma atualização do Dili Urban Master Plan, após a realização de consultas públicas. Este novo plano prevê a divisão da cidade de Díli em quatro zonas, o que revela um esforço contínuo para refinar e, idealmente, implementar um plano urbanístico mais eficaz para a capital timorense.
A não aprovação formal dos planos anteriores deveu-se provavelmente a vários fatores: a inexistência, à época, de uma Lei de Bases do Ordenamento do Território e de legislação complementar que conferisse legitimidade aos planos; o facto de a Lei das Terras e Propriedades ainda não estar plenamente regulamentada; os elevados custos envolvidos; a insuficiência de recursos financeiros e humanos; a limitada capacidade institucional; o crescimento urbano desordenado; os desafios associados aos desastres naturais; e a fraca coordenação e capacidade de implementação entre os vários níveis de governação.
O plano já existia desde 2006, mas foram criados outros posteriormente. Por que razão esses planos não são utilizados?
Para que qualquer plano possa ser aplicado de forma eficaz, é essencial resolver a questão da posse dos terrenos. E, até hoje, isso continua por resolver. Existe o cadastro, sim, mas o próprio Governo ainda não atribuiu os títulos definitivos de propriedade, mesmo quando os terrenos já possuem um número registado na Comissão Nacional de Cadastro (CNC).
Que consequências práticas tem tido o crescimento urbano desorganizado na qualidade de vida da população?
As consequências são visíveis no dia a dia. Basta percorrer as ruas para perceber a baixa qualidade das construções, a desorganização e as carências graves em termos de infraestruturas básicas.
Passaram quase 25 anos desde a restauração da independência e, apesar de haver obras todos os anos, continuam a ser intervenções avulsas, feitas consoante a necessidade do momento, sem um plano estruturado. Isso gera um crescimento urbano desordenado, sem visão de longo prazo.
O impacto na vida da população é direto: muitas pessoas não têm acesso aos serviços que o Governo deveria garantir. Continuamos a ter esgotos a céu aberto, sistemas de drenagem que não funcionam, lixo espalhado nas ruas. Tudo isto tem implicações graves na saúde pública, provoca doenças e compromete o ambiente urbano. Não é saudável, nem sustentável.
Como avalia a atual política de ordenamento do território em Timor-Leste?
A política de ordenamento do território começou a dar passos significativos a partir de 2017, com a aprovação da respetiva lei. No entanto, a escassez de recursos humanos continua a ser uma das maiores limitações.
Com base na minha experiência no Ministério do Plano e Ordenamento (MPO) e no Ministério do Planeamento e Investimento Estratégico (MPIE), posso dizer que iniciámos os primeiros planos estruturantes e conseguimos aprovar o Plano Nacional de Ordenamento do Território. Este plano bebe, em grande medida, das orientações do Plano Estratégico de Desenvolvimento e define as prioridades e os grandes investimentos para o país.
A entrada em vigor da Lei de Ordenamento do Território permitiu organizar o planeamento em dois níveis essenciais: nacional e municipal. No passado, trabalhava-se sem qualquer base legal estruturada. Hoje, o processo começa a ser reordenado com base nessa lei. Já temos o Plano Nacional de Ordenamento do Território (PNOT-TL) e planos municipais aprovados para os municípios de Ermera e Bobonaro. Este ano, foram ainda aprovados os planos de Baucau, Viqueque e Lautém.
É um bom começo, mas o grande desafio continua a ser a implementação. Podemos ter planos bem estruturados, mas, sem quadros técnicos capacitados, dificilmente conseguiremos pô-los em prática.
Qual é a diferença entre o plano nacional e o plano municipal?
O Plano Nacional de Ordenamento do Território define as grandes estratégias de desenvolvimento a nível nacional. Gere o território de forma integrada, atribuindo competências e recursos de forma mais equilibrada entre as regiões, com o objetivo de garantir uma gestão eficiente do território.
Já o Plano Municipal baseia-se nas diretrizes do plano nacional, mas aplica-se a uma escala municipal. Ou seja, a identificação e organização do território municipal em diferentes zonas: áreas urbanas, zonas com aptidão agrícola, zonas de risco, entre outras. O plano municipal inclui também um plano de ação, o regulamento que orienta e regula o uso do solo dentro de cada município.
Mencionou também os municípios que já aprovaram os seus planos. Porque é que, sendo Díli a capital e onde vive a maioria da população, ainda não existe um plano municipal implementado?
Desde a sua origem, Díli foi sempre o centro económico e político do país. Durante o período colonial português, foram feitas várias tentativas de planeamento urbano. No entanto, após 1975, com a ocupação indonésia, o processo sofreu um retrocesso. Muitas pessoas foram forçadas a deslocar-se para a capital e acabaram por se fixar ao longo das estradas principais, o que facilitava o controlo militar.
Após a independência, houve uma tentativa de aplicar o plano elaborado pela GERTIL, mas, por razões políticas que não consigo explicar ao certo, esse plano nunca foi executado. Se tivesse sido, a configuração da cidade hoje seria provavelmente muito diferente. Díli tornou-se um espaço desordenado, com migrações constantes de pessoas oriundas dos municípios, à procura de melhores condições de vida. Como não houve planeamento adequado, muitas pessoas ocuparam terrenos informalmente. Reordenar a cidade não é impossível, mas exigirá um esforço muito maior do que teria sido necessário no passado.
“Quanto mais informadas estiverem as pessoas, mais facilmente aceitam o plano. É essencial explicar as vantagens e desvantagens, e mostrar por que é que determinado plano é importante — não apenas para um grupo, mas para o país inteiro”
Na sua opinião, o ordenamento do território em Timor-Leste está alinhado com os princípios do desenvolvimento sustentável?
Sim, essa tem sido uma preocupação constante — não só em Timor-Leste, mas a nível global. O Plano Nacional de Ordenamento do Território de Timor-Leste, aprovado em abril de 2023, foi orientado pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).
Em particular, destacam-se os seguintes: ODS 1: erradicação da pobreza e inclusão socioeconómica; ODS 6: acesso à água potável e saneamento; ODS 8: trabalho digno e crescimento económico; ODS 9: indústria, inovação e infraestruturas; ODS 10: redução das desigualdades; ODS 11: cidades e comunidades sustentáveis — com foco na organização do espaço urbano e rural, transportes, equipamentos coletivos e recursos ambientais; ODS 16: paz, justiça e instituições eficazes; ODS 17: parcerias para a implementação, que exige boa governação institucional e participação pública.
Aliás, todos os planos atualmente elaborados em Timor-Leste incluem fases obrigatórias de consulta pública, o que tem sido uma prática recorrente na sua aprovação.
Antes de se elaborarem os planos, existe realmente consulta pública?
Antigamente, vivíamos num período em que tudo era feito de forma escondida. Sempre fui a favor da transparência e, desde o primeiro dia, questionei: por que razão não se informa o público? Quanto mais informadas estiverem as pessoas, mais facilmente aceitam o plano. É essencial explicar as vantagens e desvantagens, e mostrar por que é que determinado plano é importante — não apenas para um grupo, mas para o país inteiro.
Se for um plano de desenvolvimento industrial, por exemplo, pode ter impactos negativos. Mas cabe aos especialistas estudá-los antes da implementação. Por outro lado, esse mesmo plano pode gerar emprego e riqueza, beneficiando tanto as comunidades locais como o país a nível nacional.
Por que motivo continuam a ocorrer inundações com tanta frequência em Díli? Quais são as principais falhas na infraestrutura urbana?
A principal razão é a ausência de planeamento. A segunda prende-se com a falta de sistemas eficazes de proteção. As nossas leis proíbem a destruição dos recursos naturais, sobretudo das encostas das montanhas e leitos de ribeiras — mas, na prática, todos os anos assistimos a queimadas descontroladas.
Quando chega a estação das chuvas, a precipitação intensa transforma as encostas em verdadeiras autoestradas de água e lama. A isso junta-se a falta de manutenção das drenagens e das ribeiras. Sem limpeza regular, as ribeiras acumulam sedimentos e o seu leito fica mais elevado. A água transborda e invade a cidade.
Outro problema é a construção excessiva: o solo está coberto de cimento e asfalto, o que impede a infiltração da água no subsolo. Essa infiltração seria fundamental, por exemplo, para renovar o nível freático. A impermeabilização do território agrava os riscos e reduz a capacidade natural de absorção da água da chuva.
Qual deveria ser a medida mais urgente para mitigar os impactos das inundações e do crescimento urbano desorganizado?
A prioridade deve passar pela aplicação dos planos municipais já existentes e, em alguns casos, já aprovados. As autoridades devem cumprir o que está definido nesses documentos e evitar agir de forma isolada ou descoordenada. É fundamental haver uma execução coerente e uma coordenação interministerial eficaz.
Além disso, as zonas de risco devem ser claramente identificadas e protegidas. O risco só existe onde há população — por isso, é essencial prevenir em vez de reagir.
“Antes de remover populações de áreas perigosas, o Governo deve criar mecanismos de realojamento adequados. É preciso reforçar a fiscalização nas zonas de risco — trabalho que tem sido feito pela Secretaria de Estado da Toponímia e Organização Urbana (SEATOU) —, mas o desafio mantém-se: ao serem deslocadas, muitas famílias acabam por ocupar outras áreas igualmente perigosas, como encostas ou zonas inundáveis”
É possível reordenar os espaços urbanos ocupados informalmente? Como conduzir esse processo sem prejudicar a população mais vulnerável?
Díli está sobrelotada. Grande parte da população que vive na cidade fê-lo através de ocupações informais, motivadas pela falta de planeamento e pela migração constante de pessoas vindas dos municípios em busca de melhores condições de vida. Sem planos bem definidos, a cidade cresceu de forma desorganizada.
Neste momento, o processo que existe é o de compensação de terrenos. No entanto, a Lei das Terras e Propriedades ainda apresenta várias lacunas e não oferece garantias sólidas.
Antes de remover populações de áreas perigosas, o Governo deve criar mecanismos de realojamento adequados. É preciso reforçar a fiscalização nas zonas de risco — trabalho que tem sido feito pela Secretaria de Estado da Toponímia e Organização Urbana (SEATOU) —, mas o desafio mantém-se: ao serem deslocadas, muitas famílias acabam por ocupar outras áreas igualmente perigosas, como encostas ou zonas inundáveis.
A única solução viável passa por expandir a cidade para zonas adjacentes como Hera, Metinaro e Liquiçá, com uma perspetiva de planeamento intermunicipal. A geografia de Díli é limitada: tem o mar à frente, montanhas em redor e um espaço urbano cada vez mais congestionado. Hoje, a tendência é a expansão para as encostas, o que agrava o risco de deslizamentos e erosão.
Qual seria, então, uma solução estrutural para o futuro?
A solução duradoura seria o Governo desenvolver e implementar um Plano Nacional de Habitação, com políticas de realojamento e criação de novos centros urbanos. Isso permitiria distribuir a população de forma mais equilibrada, garantir o acesso a serviços básicos e promover emprego e dignidade para todos.
Que papel deve desempenhar a arquitetura na construção de cidades mais inclusivas, seguras e sustentáveis em Timor-Leste?
A arquitetura, desde a sua origem, tem como missão moldar a vida das pessoas. Em Timor-Leste, no entanto, grande parte do que se constrói não é pensado com base nas necessidades humanas, mas sim em respostas imediatas ou lógicas de negócio. Muitas construções são feitas sem o apoio de profissionais, o que compromete a qualidade, funcionalidade, a segurança e a sustentabilidade dos espaços.
A arquitetura deve seguir os regulamentos e códigos de construção — que, no caso timorense, ainda estão por desenvolver —, e deve assentar numa prática que compreenda a realidade local. Ter um profissional que compreenda o modo de vida da população pode fazer uma diferença significativa — desde a habitação e mobilidade até à integração das infraestruturas numa rede coerente. Por vezes, os arquitetos deixam-se guiar pela estética e esquecem-se da funcionalidade. É essencial encontrar um equilíbrio. Em Timor, seria importante recuperar as referências da arquitetura tradicional, valorizar os bons exemplos deixados no tempo da administração portuguesa e repensar, de forma integrada, o desenho urbano. Mas a arquitetura não pode agir sozinha. É preciso articular com disciplinas como a área legal, as engenharias, a educação, o setor social, entre outras, num trabalho interdisciplinar com o objetivo de servir o interesse do país, das cidades e, sobretudo, de quem ocupa esse território.
“É fundamental que os profissionais da arquitetura, do urbanismo e do planeamento adotem uma perspetiva voltada para a sociedade, garantindo que todos possam viver num ambiente harmonioso”
Que lições pode Díli aprender com outras capitais de países em desenvolvimento com desafios semelhantes?
Díli tem muito a aprender com outras cidades que enfrentaram ou enfrentam desafios semelhantes em termos de crescimento urbano descontrolado, ocupações informais e défice de serviços públicos. A prioridade deve ser a regularização fundiária e a criação de infraestruturas urbanas planeadas.
Antes de tudo, é preciso olhar para dentro, reconhecer o que está mal na cidade e, pensar numa solução responsável que beneficie a população em geral. Mas este processo exige visão coletiva. Atualmente, são poucas as pessoas a pensar a cidade — e, quando o fazem, é quase sempre apenas em termos de construção. Uma cidade não pode ser pensada apenas como um conjunto de edifícios; tem de ser pensada para as pessoas e para toda a rede urbana que a compõe. É fundamental que os profissionais da arquitetura, do urbanismo e do planeamento adotem uma perspetiva voltada para a sociedade, garantindo que todos possam viver num ambiente harmonioso. O património edificado anterior a 1975 deve ser preservado, pois conta a história da cidade e pode constituir uma fonte de aprendizagem. Díli precisa de soluções arquitetónicas e urbanísticas que tornem a cidade um lugar mais agradável, habitável e inclusivo.
Que recomendações deixaria às autoridades locais para melhorar a gestão do espaço urbano em Díli?
Antes de mais, é essencial apostar no fortalecimento institucional. Isso implica a capacitação dos técnicos locais, uma melhor coordenação entre os diferentes organismos do Governo e o desenvolvimento de um sistema de informação geográfica (SIG) digital para a gestão dos dados urbanos.
Por exemplo, enquanto arquiteto, ao submeter um projeto para licenciamento, preciso de dados fiáveis sobre o território. Se existisse um sistema digital integrado, toda a informação da cidade estaria disponível e atualizada em tempo real. Sempre que um novo projeto fosse aprovado, os dados seriam automaticamente integrados no mapa da cidade, permitindo um controlo eficaz da evolução urbana ao longo dos anos.
Outra recomendação é a aprovação urgente do Plano Municipal de Ordenamento do Território (PNOT-Dili) e do Plano de Urbanização de Díli. Estes documentos já preveem medidas de mitigação de riscos — sejam naturais, como inundações ou deslizamentos de terras, sejam tecnológicos, como a localização de infraestruturas perigosas.
Por exemplo, postos de abastecimento de combustível não devem estar demasiado próximos de zonas residenciais, devido ao risco de incêndio e explosão. Também os armazéns e outras estruturas industriais devem ser localizados fora das áreas urbanas densamente povoadas. Além disso, a escolha de materiais e técnicas de construção deve obedecer a normas de qualidade, segurança e sustentabilidade.
A mobilidade urbana precisa igualmente de ser repensada. É fundamental investir nos transportes públicos, de modo a reduzir a dependência do automóvel e a melhorar a circulação na cidade.
Por fim, é urgente criar cursos universitários nas áreas de ordenamento do território, planeamento urbano, arquitetura, engenharia e outras disciplinas que contribuam para o desenvolvimento urbano sustentável. Só com técnicos qualificados e com uma visão comum será possível responder aos desafios atuais de Díli e de todo o país.
“A descentralização só será real quando os municípios tiverem autonomia técnica e administrativa para planear o seu próprio desenvolvimento”
Já existem planos municipais aprovados, por exemplo para os municípios de Ermera, Bobonaro, Baucau, Viqueque e Lautém. Há previsão para a sua implementação?
Esses planos foram recentemente aprovados. Mas colocar um plano no papel não chega — é preciso garantir que haja técnicos locais capacitados para o implementar. Daí a importância de investir na formação universitária, criando cursos nas áreas de gestão territorial, urbanismo, arquitetura e outras formações complementares que contribuam para esta área. Ou seja, o Governo deveria trabalhar de forma mais próxima com as universidades e investir neste setor, fundamental para o desenvolvimento sustentável do território nacional.
Fala-se muito em descentralização, mas, na prática, os planos continuam a ser feitos em Díli, muitas vezes por técnicos externos. Seria muito mais eficaz se fossem os próprios técnicos dos mistérios ou dos municípios a elaborar e aplicar esses planos. Conhecem melhor o território, as necessidades locais e, por isso, teriam maior capacidade para gerir de forma equilibrada o uso do solo e os recursos disponíveis. A descentralização só será real quando os municípios tiverem autonomia técnica e administrativa para planear o seu próprio desenvolvimento.
Mas agora já estamos a sentir as consequências. Quando é que será feita a implementação?
A descentralização tem de avançar o mais rapidamente possível. Neste momento, sei que o Ministério do Planeamento Investimento Estratégico (MPIE) está a elaborar mais planos municipais de ordenamento do território. Mas é preciso perceber que as universidades são um ponto-chave para a sua execução.
Há cerca de 20 a 40 técnicos no MPIE com algum conhecimento na área, mas isso não é suficiente. Alguns têm apenas um conhecimento pontual e participam esporadicamente nos processos. Para aplicar um plano a nível nacional, municipal ou urbano, é necessária uma equipa vasta e especializada.
“E, olhando para a realidade timorense, é evidente que as pessoas com deficiência continuam a ser sistematicamente excluídas”
Foi também envolvido num projeto voltado para pessoas com deficiência. Quando confrontado com essa realidade, surgiu algum plano específico?
Sim, desenvolvi um projeto nesse âmbito durante os meus estudos. E, olhando para a realidade timorense, é evidente que as pessoas com deficiência continuam a ser sistematicamente excluídas.
Todos os dias observamos patologias na construção — falhas técnicas que resultam de uma lógica de fazer por fazer, sem pensar em quem vai realmente usar os espaços. Isso aplica-se às estradas, aos passeios, jardins aos acessos a edifícios etc. Vemos, por exemplo, rampas que não respeitam a largura e inclinação recomendada (1.5m de largura mínima e 8.33% de inclinação máxima). Este cenário deve-se, em grande parte, à falta de conhecimento técnico e à ausência de regulamentação adequada. Como não existem universidades a ensinar estas matérias de forma estruturada, e como não há leis obrigatórios que orientem o desenho urbano inclusivo, continua a fazer-se tudo de forma improvisada.
Pessoalmente, nos projetos em que estou envolvido, procuro sempre aplicar, na totalidade ou pelo menos de forma razoável, tudo o que aprendi. Tento projetar com base nas pessoas — em quem vai usar os espaços e como os vai usar — e de forma ecológica, minimizando o consumo de energia e apostando, sempre que possível, em soluções sustentáveis, como o uso de energias renováveis.
Muitos parabéns, Flávio. Uma entrevista essencial a ser lida por quem decide e por quem executa.
Defendo há algum tempo uma solução que consta do PRE aprovado pelo governo em 2020: a criação de uma “nova Dili” em Metinaro, para onde seria transferida parte importante da administração central e da população atual de Dili. Com estas nos presentes locais é IMPOSSÍVEL recuperar a “velha” Dili.
Além disso e para controlar as cheias é preciso criar “bacias de retenção” no sopé das montanhas que rondam a cidade, nomeadamente para recolher as águas das “motas” Comoro e Maloa. E, claro, “limpar” de habitações quase toda a região de Tasitolu.
Quem tem cabeça e força para o fazer?
Mais uma fez: entrevista brilhante — como seria de esperar de si —, a merecer não só os parabéns de todos como também a atenção de “todos, todos, todos”.
PS – uma pequena nota “histórica”: acompanhei de perto o período da elaboração e proposta do plano do GERTIL de 2006. Lembro-me de me ter sido dito que a orientação fundamental do então PM, Mari Alkatiri, foi a de que “o casco colonial de Dili é para manter; tudo o resto proponham o que quiserem porque se for preciso deitar abaixo e reconstruir é isso que faremos”. Infelizmente, pelo menos neste domínio, foi pena o governo não ter resistido à crise de 2006.