Falta de autonomia administrativa e conflito de competências levam à demissão de Gregório Saldanha

Gregório Saldanha foi nomeado pelo primeiro ministro, Xanana Gusmão, sob a proposta do Ministro da Administração Estatal, Tomás do Rosário Cabral/Foto: DR

O Presidente da Autoridade do Município de Díli, Gregório Saldanha, renunciou ao cargo, alegando falta de autonomia para desempenhar as suas funções administrativas e preocupações com políticas de despesas que não respeitam os princípios dos direitos humanos. Várias entidades alertaram para a necessidade de atribuir competências reais às autoridades municipais, especialmente numa altura em que o Governo timorense se prepara para a descentralização. 

Entre as razões para a demissão, Saldanha apontou irregularidades administrativas no setor financeiro, decisões unilaterais sem coordenação, conflitos de competências e preocupações éticas e sociais. Nomeado a 1 de março de 2024, o agora ex-presidente anunciou a sua saída numa conferência de imprensa, realizada hoje, 28 de janeiro, alegando falta de competências e a existência de despesas administrativas que considera desumanas.

Na sua declaração, garantiu que a decisão foi tomada de forma consciente e sem qualquer imposição externa. “Repito, esta decisão é minha, não foi uma imposição de superiores ou de outras pessoas”, afirmou.

Entre as motivações para a renúncia, destacou graves irregularidades administrativas e financeiras. “O que mais me preocupa é a situação no serviço de recolha manual de lixo, onde foi identificado, ao longo de um ano, um prejuízo de aproximadamente um milhão de dólares para o Estado”, denunciou. Alegou ter fundamentado as suas preocupações com dados de relatórios oficiais, registos do sistema automatizado de Tibar e provas fotográficas e videográficas recolhidas entre agosto de 2023 e agosto de 2024.

Saldanha referiu ainda que a falta de autonomia administrativa compromete a preparação da descentralização do poder local. “A excessiva dependência da Autoridade do Município de Díli (AMD) em relação ao Ministério da Administração Estatal prejudica a capacidade de planear e implementar medidas eficazes para a descentralização”, explicou.

Outro problema enfrentado foi a falta de apoio para auditorias aos serviços da AMD. “Em setembro de 2024, solicitei ao Ministro da Administração Estatal uma auditoria aos serviços da AMD. No entanto, essa auditoria só começou em dezembro e, até agora, não recebi qualquer informação sobre os seus resultados”, lamentou, sublinhando que esta situação dificultou a implementação de medidas corretivas urgentes.

Conflito de competências e decisões unilaterais

Saldanha criticou ainda a decisão de transferir a Unidade de Gestão de Projetos (PMU) da AMD para o Ministério da Administração Estatal, afirmando que isso comprometeu a capacidade de supervisão técnica dos serviços de limpeza urbana. “Ainda pior, o MAE renovou os contratos das empresas de limpeza sem consultar previamente a AMD. Isso prejudica os esforços de melhoria e compromete a higiene e a saúde pública dos cidadãos de Díli”, denunciou.

Em relação ao conflito de competências, apontou que a Direção de Gestão de Mercados e Turismo, que deveria estar subordinada à Autoridade do Município de Díli, está, na realidade, sob controlo da SEATOU. “Infelizmente, a SEATOU atua de forma agressiva contra vendedores ambulantes e comunidades carenciadas que ocupam espaços públicos, e a AMD acaba por ser injustamente responsabilizada”, afirmou.

Preocupações éticas e sociais 

Saldanha manifestou a sua preocupação com práticas violentas contra a população de Díli, defendendo que não se pode despejar vendedores ambulantes sem antes criar condições alternativas para a sua subsistência. “Tememos que esta situação repita práticas desumanas do passado. Durante a luta pela independência, nunca aceitámos ações irresponsáveis como estas”, declarou.

Sempre crítico das medidas do SEATOU, classificou os despejos administrativos como “desumanos” e afirmou que não poderia continuar no cargo se tivesse de compactuar com essas políticas. “Se eu aceitar despejos administrativos sem garantir condições adequadas para os cidadãos, estarei a trair o povo”, afirmou.

Apesar da sua decisão, Saldanha sublinhou que não pretende ser oposição ao Governo. “Não quero ser oposição a um governo que confiou em mim. Mas recuo para dar oportunidade a uma nova liderança que possa fazer melhor do que eu”, declarou.

Saldanha defendeu que, durante a sua gestão, trabalhou para combater a indisciplina, a corrupção, o nepotismo e o favoritismo dentro da AMD, mas disse não ter recebido o apoio institucional necessário. “A minha permanência no cargo tornou-se insustentável”, afirmou.

Antes de deixar o cargo, apelou ao próximo presidente da AMD para continuar a trabalhar com justiça e rapidez, implementando as mudanças necessárias para melhorar a gestão da cidade.

Renúncia reabre debate sobre descentralização 

Hoje, dia 28 de janeiro, às 10h, Gregório Saldanha reuniu-se com o Ministro da Administração Estatal, Tomás do Rosário Cabral, para formalizar a entrega do cargo. A imprensa não teve acesso à reunião.

O investigador da Asia Justice and Rights (AJAR) e membro do Comité 12 de Novembro, Inocêncio Xavier, defendeu que o Governo deve atribuir mais poder às autoridades municipais. “Este governo manifestou a intenção de implementar a descentralização, mas o Ministério da Administração Estatal continua a assumir todas as funções, deixando os Presidentes das Autoridades Municipais sem autonomia para tomar decisões”, afirmou.

Xavier destacou a falta de coordenação entre o Presidente da Autoridade do Município de Díli e a SEATOU, o que, na sua opinião, prejudica a implementação de políticas e programas para a cidade. “A SEATOU elabora as políticas, mas não envolve os técnicos, como o Presidente da Autoridade Municipal, que deveria ser o responsável pela sua implementação”, criticou.

Para Xavier, a renúncia de Gregório Saldanha deve servir de alerta para o Governo refletir sobre a descentralização do poder. “Se o próximo presidente da AMD também não tiver poder real, será apenas uma marioneta sem qualquer função”, alertou.

João Choque, outro jovem da resistência presente na conferência, afirmou que a demissão de Saldanha era compreensível, pois um líder não deve ser apenas um “cavalo mandado” que obedece a ordens sem poder tomar decisões. “O povo deve ser a prioridade numa nação, não os interesses de um grupo ou indivíduo”, afirmou.

Choque acredita que a decisão de Saldanha pode servir de exemplo para a nova geração de líderes, incentivando-os a continuar a defender os valores dos direitos humanos e a resistir a práticas injustas.

A renúncia de Gregório Saldanha reabre o debate sobre a descentralização do poder em Timor-Leste e expõe a necessidade urgente de clarificar as funções das Autoridades Municipais em relação ao Governo Central. Especialistas alertam que, sem autonomia real, as autoridades locais continuarão a ser limitadas nas suas decisões e incapazes de implementar mudanças eficazes.

Comente ou sugira uma correção

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Open chat
Precisa de ajuda?
Olá 👋
Podemos ajudar?