Com uma infância e juventude marcadas pelo medo e pelo trauma da invasão indonésia, Bety Reis descobriu, após a restauração da independência, que ainda era possível encontrar alegria e partilhá-la com os outros.
Nívea Elisabeth C. dos Reis, mais conhecida como Bety Reis, nasceu a 1 de março de 1983 e tornou-se a primeira cineasta de Timor-Leste. Como atriz, realizadora e produtora, desempenhou um papel fundamental no desenvolvimento do cinema timorense.
O seu primeiro filme, “A Guerra de Beatriz”, realizado em parceria com Luigi Acquisto e lançado em 2013, venceu o prestigiado Prémio Pavão de Ouro no 44.º Festival Internacional de Cinema da Índia.
Bety produziu quatro curtas-metragens na organização Dili Film Works, incluindo um documentário sobre manu futu (luta de galos) e a história fictícia “Vagabong”, em 2011, bem como o documentário “Criança Roubada”, em 2015. Além disso, produziu vídeos para organizações como fonte de rendimento. Mas antes de se tornar realizadora, Bety sonhava com uma carreira muito diferente.
Uma infância roubada pela guerra
Na infância, Bety sonhava ser advogada, movida pelas dificuldades e injustiças que marcaram a sua vida. Cresceu num ambiente difícil, onde sentiu na pele a injustiça e foi frequentemente vítima de bullying na escola. A certa altura, reagiu e bateu num colega, cujo pai, militar, apareceu na escola com uma pistola. “O diretor escondeu-me na casa de banho e disse-lhe que eu era apenas uma criança e que me ia castigar”, recorda.
Bety cresceu com a mãe adotiva, e, quando ela tinha 10 anos, voltou a viver com a mãe biológica. O pai nunca esteve presente, tudo o que sabia era que tinha desaparecido no mato. A infância foi passada entre brincadeiras com amigos, doutrina na Igreja de Motael e banhos de mar. A guerra era algo distante… até que deixou de o ser.
Na madrugada de 28 de outubro de 1991, ouviu os sinos da igreja tocarem após o assassinato de Sebastião Gomes. Foi então que percebeu que a sua vida nunca mais seria a mesma.
O massacre de Santa Cruz, a 12 de novembro de 1991, marcou a sua vida para sempre. Naquela manhã, foi à igreja assistir à missa, mas foi mandada para a escola. Depois, os estudantes foram mandados para casa, pois haveria uma procissão. Nessa noite, ninguém dormiu. Rezaram, porque alguns familiares nunca mais voltaram.
Os anos seguintes foram ainda mais difíceis. Quando saiu da escola São Pedro, em Comoro, Díli, viu os militares indonésios obrigarem pessoas a juntarem-se a milícias, incluindo idosos, vendedores ambulantes e analfabetos. Muitos juntaram-se apenas para proteger as suas famílias.
Em 1999, após o referendo, a família de Bety, que vivia na zona do Farol, celebrou. Mas a alegria rapidamente se transformou em terror. As casas começaram a ser incendiadas e as milícias entraram na sua casa, disparando tiros. Ela, a mãe biológica, a irmã mais nova e duas tias ajoelharam-se, aterrorizadas, enquanto as milícias disparavam dentro da casa.
“Isso aconteceu duas vezes. Felizmente, ninguém da minha família morreu ou foi violado, como aconteceu a algumas das minhas colegas. Eles entraram com catanas, tinham um olhar anormal, olhos vermelhos, insultos na boca… só queriam matar.”
Um membro da milícia aconselhou a sua família a esconder-se numa casa onde os militares não costumavam entrar. Passaram a noite encolhidos numa casa de banho.
No dia seguinte, os militares forçaram os timorenses a evacuar para Atambua, na Indonésia. Mas a família de Bety seguiu um grupo que ia para Baucau. Durante a viagem, foram intercetados por uma milícia armada. Um homem colocou uma catana no pescoço de Bety, obrigando-a a sair do carro. Tinha apenas 16 anos. O avô, aterrorizado, deixou cair uma estátua de Maria que segurava nas mãos. A situação poderia ter terminado em tragédia, mas a intervenção de um dos líderes da milícia permitiu que seguissem viagem.
Quando Díli acalmou, a família voltou e viveu dois meses numa tenda no Estádio Municipal. “Agradeço por estar viva para contar a história”, disse Bety, em lágrimas.
O teatro como cura para os traumas da guerra
Na juventude, encontrou refúgio no teatro, onde percebeu que fazer os outros sorrir e contar histórias era uma forma poderosa de dar voz a quem não a tinha. A sua jornada artística começou no grupo Bibi Bulak, em 2002, onde encontrou não só uma forma de escapar à miséria da guerra, mas também um novo propósito de vida: partilhar sorrisos.
Quando entrou para o grupo Bibi Bulak, Bety decidiu nunca mais olhar para trás. Algumas das suas colegas sofreram traumas irreversíveis e chegaram a desenvolver doenças mentais. Ela própria ainda carrega medos e uma baixa autoestima.
A primeira vez que sentiu um verdadeiro alívio foi quando participou numa dança cultural na comemoração do 20 de maio. “Foi ali que percebi que já tínhamos ultrapassado o pior. Desde então, só quis envolver-me em atividades que me fizessem seguir em frente.”
Foi também no Bibi Bulak que decidiu trocar o curso de Direito pelo cinema. Com o teatro, percebeu que poderia unir comunidades, promover a reconciliação e dar voz a temas difíceis.
Em 2008, foi produzido um grande filme sobre os Balibó 5, e o grupo foi convidado para participar no casting. Mesmo como extra, Bety teve a oportunidade de acompanhar de perto o processo de filmagem, o que lhe permitiu aprender como se produz uma grande obra cinematográfica. Essa experiência despertou nela o desejo de se tornar realizadora. Foi durante esta produção que conheceu Luigi Acquisto, com quem viria a trabalhar mais tarde no seu primeiro filme.
“A Guerra de Beatriz”: um filme que emocionou Timor-Leste
Em 2009, Luigi Acquisto convidou Bety Reis para o casting do filme “A Guerra de Beatriz”. No ano seguinte, juntamente com mais dois colegas, fundaram a Dili Film Works, um espaço de aprendizagem da escrita de roteiros e da produção de curtas-metragens.
A Dili Film Works tornou-se um marco na sua formação, mas enfrentou desafios ao longo dos anos: foi encerrada em 2017 e reaberta em 2021. Atualmente, encontra-se sem atividades devido à falta de financiamento. Foi nesse ambiente que Bety aprendeu a escrever histórias e a trabalhar com vídeo, até conseguir produzir as suas primeiras curtas-metragens.
A sua primeira curta, um documentário sobre manu futu (luta de galos), foi realizada em 2011. O filme explorava a tradição da luta de galos entre os homens timorenses, focando-se no papel de um tio, que trabalhava como árbitro nesses combates. A presença de Bety na arena causou espanto entre os locais, pois acreditavam que a entrada de uma mulher poderia “fechar” o espaço. No entanto, determinado a contar a sua história, o tio permitiu que a entrevista acontecesse. Curiosamente, dois meses após a produção, o local foi de facto encerrado.
Ainda em 2011, produziu “Vagabong”, uma curta-metragem sobre um jovem que abriu um negócio de carne de cão, recorrendo ao roubo desses animais. O filme inspirou-se num fenómeno real da época, em que cães eram capturados e abatidos para consumo, num prato conhecido como RW. Na história, o protagonista consegue prosperar no negócio, mas falha em encontrar uma esposa. Desesperado, consulta um matan dook (curandeiro), que lhe diz que a única solução para a sua maldição seria casar-se com uma cadela. O filme gerou controvérsia, sendo mal recebido por aqueles que participavam nesse comércio clandestino.
Em 2015, com financiamento do programa docTV da CPLP, produziu o documentário “Criança Roubada”, que retrata a história de uma criança timorense levada para a Indonésia, representando as mais de 40 mil crianças desaparecidas durante a ocupação.
O documentário foca-se em Abdul, que nasceu José, e foi sequestrado em criança, juntamente com outras dez crianças, sendo transportado numa caixa de munições. A sua família acreditava que ele tinha morrido. Quando a mãe faleceu, pediu para ser enterrada junto ao filho, e a família decidiu declará-lo morto. Anos depois, um esforço conjunto entre os governos de Timor-Leste e da Indonésia e várias organizações conseguiu reunir Abdul com a sua família. Sem recordar o nome dos pais, ele conseguiu identificá-los graças à memória do irmão mais velho e do local onde vivia. Como parte do reencontro, a família realizou um ritual simbólico de aceitação, antes de Abdul regressar à Indonésia, onde já tinha esposa e filhos.
Para Bety Reis, um dos maiores desafios na produção cinematográfica é trabalhar com atores sem experiência, que frequentemente esquecem o roteiro e ainda não estão à vontade diante das câmaras. Além disso, gerir uma equipa de filmagem requer disciplina, criatividade e foco. “A disciplina, a vontade de aprender e a dedicação total são essenciais para quem quer ser um bom ator, realizador ou produtor de cinema”, reflete.

Realizar “A Guerra de Beatriz” foi um enorme desafio. Bety Reis ficou responsável por alinhar o roteiro com a narrativa e dirigir os atores, enquanto Luigi Acquisto tratava da parte técnica. “O filme mistura ficção com realidade. A história de amor é fictícia, mas o massacre de Kraras, em 1983, foi real”, explica.
Durante as filmagens, a dor do passado ressurgiu entre os habitantes de Kraras, que reviveram memórias do massacre. Um homem, emocionado, quis que o filho participasse no filme. No início, trouxe a criança vestida normalmente. Depois, voltou com ela despida. Por fim, envolveu-a num pano e disse: “O meu filho é como eu era. Quando o meu pai foi assassinado, segurou-me assim.” Foi nesse momento que a equipa compreendeu que, além dos homens, também as crianças tinham sido alvo do massacre.
A cena do massacre foi uma das mais difíceis de filmar. Para Bety, parecia que o horror do passado se desenrolava diante dos seus olhos. Durante um dos momentos mais intensos, não conseguiu dizer “corta”. Uma das canções mais marcantes do filme, Foho Ramelau, não estava prevista no roteiro, mas foi espontaneamente cantada pelos figurantes, que recordaram que, durante os massacres, os sobreviventes foram obrigados a entoar o hino da Fretilin.
“Filmar em Maubisse e Liquiçá foi tranquilo, mas em Kraras a história ganhou vida. Sentimos que estávamos a assistir aos acontecimentos em tempo real”, recorda Bety. A comoção foi tão forte que um dos atores, que interpretava um militar, não conseguiu levantar a arma para iniciar a cena do massacre.
O clima durante as gravações também pareceu refletir a história. No primeiro dia de filmagem em Kraras, choveu. Nos dias seguintes, o tempo permaneceu nublado, recriando involuntariamente o ambiente sombrio daquele período trágico. Os sobreviventes afirmaram que a atmosfera das filmagens era incrivelmente semelhante à do massacre real.
A produção envolveu cerca de 60 pessoas e levou oito semanas para ser filmada, mas a pós-produção prolongou-se por três anos. Um dos maiores desafios foi encontrar um ator para interpretar o jovem Tomás, uma personagem introvertida. Só após inúmeras audições em universidades e escolas conseguiram encontrar o candidato ideal.
Quando o filme foi exibido nos municípios, com apoio do Governo, muitas mulheres afirmaram que a história retratava a sua própria realidade. Algumas relataram que os seus maridos desapareceram e nunca mais foram vistos. Na Austrália, uma mulher levantou-se após a sessão e disse que “A Guerra de Beatriz” contava a sua história. Ela foi torturada, violada e separada do filho, que foi levado pelos militares. Quando conseguiu recuperar-se, procurou incansavelmente o filho — e encontrou-o.
“Este filme faz com que as pessoas revelem as suas histórias, coisas que durante anos preferiram esconder. Ele representa todas as mulheres timorenses e a própria história de Timor-Leste”, observa Bety.
Apesar das dificuldades, Bety Reis nunca desistiu do seu sonho. Como mulher, foi frequentemente subestimada e enfrentou obstáculos para obter financiamento timorense para “A Guerra de Beatriz”. No entanto, a sua determinação e empenho levaram o filme ao sucesso, tornando-se uma referência no cinema timorense e uma voz poderosa na preservação da memória histórica do país.
Projetos futuros e desafios do cinema em Timor-Leste
Atualmente, Bety Reis está a trabalhar num documentário sobre proteção ambiental e num projeto pessoal intitulado “Anguene”, que explora um ritual de Maliana. Trata-se de uma cerimónia semelhante ao Sau Batar (dedicado ao milho), mas, no caso da Anguene, o ritual é dedicado ao arroz.
Além disso, Bety está envolvida na criação de uma associação de cinema, com o objetivo de fortalecer a indústria cinematográfica timorense. Tem também uma curta-metragem em desenvolvimento, cujo conteúdo mantém, por agora, em segredo.
A realizadora sublinha as dificuldades de produzir filmes em Timor-Leste, devido à inexistência de uma indústria consolidada e à falta de apoio governamental. “Sem financiamento de doadores, é praticamente impossível fazer cinema”, explica. Quando ainda era atriz, recebia 20 dólares por hora de filmagem. “Se apresentarmos uma proposta em que pretendemos pagar 100 dólares por hora a um ator, ninguém nos vai financiar”, lamenta.
Apesar dos desafios, Bety quer inspirar os timorenses a perseguirem os seus sonhos, independentemente das dificuldades. “O mais importante não é o tipo de sonho que temos, mas sim não termos medo de aprender, de nos expressarmos e de nos aproximarmos de quem detém conhecimento”, afirma. “Cada um tem a sua história. A questão é: como transformá-la numa memória viva?”
Timor-Leste pode ainda não ter uma indústria cinematográfica consolidada, mas Bety Reis já garantiu o seu lugar na história do cinema do país.
Parabens Bety.
Sugiro que o teu proximo filme seja: “Os nossos herois nao sabem governar”.