Entre a arte e a denúncia: Gaudêncio Cabral conquista prémio com retrato do trabalho infantil

“Hoje é sábado e amanhã é domingo”, obra vencedora do Prémio Fundação Oriente para as Artes Visuais 2025 /Foto: Sesco

O jovem artista timorense Gaudêncio Cabral conquistou o Prémio Fundação Oriente para as Artes Visuais 2025 com a obra “Hoje é sábado e amanhã é domingo”. Criada a partir de jornais entrelaçados e inspirada em conversas com crianças vendedoras em Díli, a peça denuncia a normalização do trabalho infantil e marca um momento decisivo no percurso do artista.

Gaudêncio Cabral, mais conhecido por Agau, é o jovem artista timorense vencedor da 2.ª edição do Prémio de Artes Visuais da Fundação Oriente. A sua obra, “Hoje é sábado e amanhã é domingo”, feita a partir de jornais entrelaçados e marcada pela imagem de uma criança a carregar produtos para venda, está atualmente em exibição na mostra coletiva Hasoru Malu 2025, na Fundação Oriente. Inspirada em conversas com crianças vendedoras na zona de Motael, a peça destaca-se pela sensibilidade, pela técnica e pelo forte compromisso social, refletindo sobre o trabalho infantil e o papel da infância na sociedade timorense.

Entre a alegria da conquista e o peso da responsabilidade, Gaudêncio vê este prémio como mais do que um reconhecimento — é também um ponto de viragem e um impulso para continuar a criar com liberdade e sentido crítico.

Nesta entrevista, o artista revela o processo criativo por detrás da obra premiada, partilha os momentos que marcaram o seu percurso artístico, as referências que o influenciam, e fala sobre os desafios de fazer arte num país onde viver da criação continua a ser difícil. Fala ainda sobre o papel social da arte e deixa uma mensagem sincera a outros jovens timorenses que sonham transformar o mundo através da arte.

O que sentiste ao saber que a tua obra foi a vencedora do Prémio de Artes Visuais da Fundação Oriente 2025?

Senti-me muito contente por ter vencido o Prémio da Fundação, mas, ao mesmo tempo, senti-me confuso. Confuso porque encarei essa conquista como uma grande responsabilidade enquanto pintor e artista. Não a encarei como um simples presente. Por isso, sinto que esta vitória exige de mim um compromisso ainda maior: o de continuar a criar obras com mais dedicação e qualidade.

A tua obra está exposta na Hasoru Malu 2025. Podes descrever a peça e explicar o que representa para ti?

A obra é feita a partir de jornais entrelaçados, sobre os quais desenhei uma menina a carregar kerupuk. O título é “Hoje é sábado e amanhã é domingo”. Foi inspirada em Quando lhes pedi que voltassem para casa para descansar, porque tinham aulas no dia seguinte, uma delas respondeu: “Hoje é sábado e amanhã é domingo, não temos aulas.”

Estas crianças trabalham até tarde para ajudar os pais, que também são vendedores. A obra fala sobre o trabalho infantil, mas também sobre os direitos das crianças, a educação e as desigualdades sociais. Mostra que, em vez de estarem a brincar ou a estudar, muitas crianças timorenses já enfrentam a dureza da vida adulta.

Para mim, o fim de semana representa uma rotina na vida destas crianças. Elas sabem que precisam de trabalhar muito, porque têm muito tempo livre e acabam por o aproveitar dessa forma. A partir daí, percebi que estas crianças já revelam uma certa maturidade para enfrentar a vida.

Muitas vezes, as pessoas criticam as crianças e até os próprios pais. Mas, na verdade, durante a noite, os pais não estão em casa porque também estão a trabalhar. Por isso, as crianças acabam por os acompanhar e também vendem. É uma forma de estarem juntos e, ao mesmo tempo, contribuírem para a sobrevivência da família.

Como decorreu o processo criativo desta obra, sobretudo a ligação entre jornais e pintura?

Como encontro jornais quase todos os dias, surgiu-me a ideia de os utilizar como base para as minhas obras. Recolhi alguns e comecei a trabalhar, mas percebi que o resultado ainda não era satisfatório, por isso pus essa tentativa de lado. Procurei novas ideias, mas não encontrava nenhuma que me motivasse.

Numa noite, sentei-me no jardim de Motael a tomar café e encontrei algumas crianças. Começámos a conversar e, desse diálogo, surgiu uma nova ideia. No entanto, hesitei em desenvolvê-la, porque envolvia crianças, e isso deixava-me receoso.

Para ganhar confiança, voltei ao jardim de Motael durante quase quatro noites seguidas. Conversei com várias pessoas e partilhei experiências. Foi assim que decidi avançar com esta ideia.

Sabemos que, em qualquer parte do mundo, as crianças não devem realizar trabalhos destinados a adultos. Mas com esta obra pretendi mostrar que, em certas situações, os pais das crianças também trabalham — por exemplo, como vendedores — e os filhos acabam por os acompanhar, muitas vezes assumindo também o papel de trabalhadores.

Antes mesmo de conhecer essas crianças, já tinha começado a trabalhar com jornais, entrelaçando-os. Esse processo durava uma ou duas horas, seguido da colagem. Depois, deixava os jornais a secar ao sol.

Após a conversa com as crianças, desenhei sobre os jornais a imagem de uma menina a carregar o seu produto, kerupuk. Utilizei tinta acrílica para finalizar a obra.

Como conseguiste apresentar a tua obra na Fundação Oriente e vencer o prémio?

Fui informado por várias pessoas acerca Prémio de Artes Visuais promovido pela Fundação Oriente. No entanto, já tinha participado na primeira edição e não fui premiado. Nessa ocasião, a minha obra abordava o tema do mar.

Não tencionava participar novamente. Contudo, fui encorajado pelos meus colegas, que me lembraram da importância de mostrar ao mundo que Timor-Leste tem muitos criadores talentosos — pintores, artistas e escultores. Foi essa motivação que me levou a aceitar o desafio mais uma vez.

Vários artistas concorreram, pelo que, sinceramente, não esperava ganhar. Comecei a obra passado cerca de um mês desde o anúncio do concurso. Esta vitória representa a minha primeira grande conquista. Antes disso, já tinha participado em várias exposições

, incluindo na Arte Moris, no Arquivo & Museu da Resistência Timorense, na própria Fundação Oriente e na Embaixada de Portugal.

Que significado tem para ti esta vitória? Acreditas que pode marcar uma viragem no teu percurso artístico?

Esta vitória tem um significado muito especial para mim. Representa uma oportunidade para aprender coisas novas e crescer enquanto artista. Abre um novo espaço de descoberta, onde posso explorar diferentes formas de ver e fazer arte. Acredito que pode, sim, marcar uma viragem no meu percurso artístico, pois dá-me mais confiança e motivação para continuar a criar com liberdade.

“A arte nasce da liberdade” /Foto: Sesco

Quando começou o teu interesse pelas artes visuais? Houve um momento decisivo?

Quando era criança, ainda não sentia uma verdadeira paixão pela arte, mas comecei a participar em algumas atividades de pintura. Lembro-me de que, quando chegaram professores portugueses às escolas, eles distribuíam lápis de cor e abriram uma ludoteca onde podíamos expressar a nossa criatividade. Foi aí que comecei a sentir alguma inspiração.

Também construíamos carrinhos com materiais da natureza, mas não sabíamos que isso também era uma forma de arte. Além disso, participei uma vez numa atividade promovida pela Igreja, relacionada com a pintura de São João Bosco. Mesmo assim, nessa altura, ainda não tinha descoberto a minha verdadeira paixão pela arte.

Quando somos crianças, tudo o que surge à nossa frente desperta curiosidade — queremos aprender muitas coisas, mas ainda não tinha sonhos ou objetivos definidos. Houve momentos em que deixei de criar completamente e sentia-me aborrecido por não ter mais ideias. Cheguei a duvidar se queria continuar a fazer arte. Mas, de vez em quando, voltava a criar.

Em 2017, comecei a pintar com os artistas seniores do grupo Arte Moris. Nessa altura, tive de frequentar aulas para desenvolver a minha criatividade. Mesmo assim, sentia que ainda me faltava experiência. Depois disso, afastei-me da arte durante dois anos. Às vezes, ainda fazia alguns desenhos a lápis.

Recentemente, voltei a dedicar-me ao mundo artístico. Sinto que foi uma força interior que me puxou novamente para a arte.

Que artistas, movimentos ou experiências influenciaram o teu caminho até agora?

Quando ainda era criança, já admirava as obras dos artistas seniores, cujos trabalhos encontrávamos em muitos locais do país, especialmente nas igrejas. Muitas vezes via-os a pintar e ficava ali, por alguns momentos, apenas a observar.

Na minha infância, não havia internet. As imagens que me fascinavam vinham de livros distribuídos pelos professores portugueses — lembro-me bem dos heróis como os do universo Marvel, os Vingadores ou o Hulk. Essas ilustrações deixavam-me maravilhado.

Recordo-me também dos pintores do grupo Arte Moris que foram a Lospalos para pintar. Eles não pintavam apenas, também cantavam e tocavam instrumentos. Fiquei dividido, porque todas essas formas de expressão me atraíam. Gostava de tudo e não sabia o que escolher.

Mais tarde, já na Arte Moris, tive acesso a muitos livros e pude conhecer outros artistas seniores. Foi aí que também descobri artistas internacionais como Michelangelo e Van Gogh, que se tornaram referências importantes para mim.

Lembras-te da tua primeira obra? Que importância teve para ti naquela altura?

Tentei pintar, mas não consegui fazer o que tinha planeado, por isso decidi cortar a tela. Tinha duas obras nessa altura, mas já não estão comigo — estão agora com um colega. Criei-as em 2019. Cortei uma das telas e limitei-me a aplicar cor, porque não consegui desenvolver a ideia, nem tinha inspiração para continuar. Ainda assim, considero que foi uma obra com muito valor, porque representava um momento muito específico e intenso da minha vida. Foi um sentimento que já não consigo reproduzir hoje.

Por vezes, queremos ser como certos artistas famosos, mas não conseguimos. Tentamos pintar aquilo que planeámos, mas o resultado acaba por ser diferente. Isso deixa-nos frustrados. No entanto, pintar não serve apenas para agradar aos outros — é, acima de tudo, uma forma de nos expressarmos.

Quando não consigo terminar uma obra ou não me sinto satisfeito com ela, prefiro deixá-la de lado. Depois de algumas pausas, volto com novas ideias e retomo a pintura.

Alguma vez pensaste em deixar de ser artista?

Eu só quero criar obras. Não tenho um plano definido para ser artista. Parece que são as outras pessoas que nos veem como artistas, mas, sinceramente, ainda não sei se já atingi esse patamar. Às vezes, é o olhar dos outros que nos atribui esse nome — artista.

Que temas gostas mais de explorar nas tuas criações? Porquê?

Gosto de explorar tanto o realismo como o surrealismo. O realismo representa as coisas reais que encontramos no nosso dia a dia. Já o surrealismo permite criar imagens imaginárias ou que não existem na realidade. Através do surrealismo, posso exprimir situações ou sentimentos de forma simbólica. Por exemplo, nas obras de Salvador Dalí, o mundo parece feito de borracha, com relógios a derreter — não é real, mas transmite ideias e emoções profundas.

Também gosto de usar a arte como forma de crítica social. Às vezes, o que acontece no Parlamento Nacional ou na sociedade em geral merece reflexão, mas não precisamos de criticar diretamente — podemos fazê-lo através da arte. Gosto muito de criar obras com um caráter crítico, especialmente sobre problemas sociais, como as crianças que são obrigadas a trabalhar ou os jovens timorenses que emigram em busca de uma vida melhor.

Já tinhas participado noutras exposições? Que experiências te marcaram mais até agora?

Sim, já participei noutras competições e exposições. Uma experiência que me marcou bastante foi uma exposição na Arte Moris, onde pude ver obras muito diferentes, sobretudo em termos de técnicas e das mensagens que transmitiam. Isso serviu de referência para eu melhorar o meu trabalho.

Há dois anos, também participei no primeiro Prémio de Artes Visuais da Fundação Oriente. Não ganhei, mas aprendi que o mais importante é continuar a criar. O verdadeiro valor está em não desistir.

Achas que, em Timor-Leste, um artista tem liberdade para expressar a sua opinião através da arte?

Isso depende de cada artista. Cada um decide se quer ou não enfrentar o medo, porque a liberdade faz parte da nossa vida. Se queremos ser livres, temos também de aceitar os riscos. Quando tentamos expressar muitas coisas através da arte, há sempre riscos envolvidos. Antes mesmo de criar uma obra, o artista sente a necessidade de ser livre para transmitir aquilo que vive, sente ou imagina. É essa liberdade que permite a inovação artística.

Achas que é possível viver da arte em Timor-Leste?

Viver da arte em Timor-Leste não é fácil. Ser artista não significa ter a vida económica assegurada. Quem escolhe esta profissão, muitas vezes, escolhe também um caminho de dificuldades, porque o faz por paixão. Ser artista não é procurar riqueza. Quanto aos rendimentos, é melhor nem falarmos, porque todos sabemos que a realidade é dura.

Que mensagem gostarias de deixar a outros jovens artistas timorenses que sonham seguir este caminho?

Aos jovens que estão indecisos, que passam o tempo a pensar se devem criar ou não, se devem continuar ou desistir, quero dizer que esse tipo de dúvidas pode gerar frustração ainda antes de começarem uma obra. O mais importante é seguirem aquilo que verdadeiramente gostam de fazer. Não devem carregar o peso da pressão. Precisam, sim, de se sentir livres para criar. A arte nasce da liberdade.

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