Neste ano, o IX Governo de Timor-Leste iniciou uma campanha de despejos e demolições de edifícios que, alegadamente, “ocupavam ilegalmente terras do Estado”. O Governo também encerrou atividades comerciais não licenciadas, confiscando mercadorias e fechando mercados informais. Em apenas alguns meses, centenas de famílias perderam casas, negócios e rendimento. Isso causou grande angústia para muitos cidadãos, enquanto gerava debate público e controvérsia. A Fundasaun Mahein (FM) está extremamente preocupada, tanto com os métodos adotados pelo Governo para implementar essa política, quanto com os motivos subjacentes à campanha de despejo.
Embora os avisos de remoção tenham sido entregues em várias áreas da capital, ao longo dos anos, a recente onda de demolições e apreensões começou, de facto, no início de 2024. A política está a ser implementada por uma “equipa conjunta”, liderada pela Secretaria de Estado para Assuntos de Toponímia e Organização Urbana (SEATOU), sob a tutela o Ministério da Administração Estatal, como parte do papel do Ministério na “promoção da higiene urbana e da ordem pública”. Até agora, a campanha tem-se concentrado em Dili, mas também há relatos de expulsões a decorrer em outras partes do país, incluindo o município de Baucau.
Os métodos e o timing do procedimento desencadearam um grande debate na sociedade timorense, com opiniões fortemente divididas entre “prós” e “contras”. Por um lado, muitos cidadãos manifestaram apoio à remoção de edifícios considerados ilegais, obstrutivos e inseguros. Por outro, uma parte significativa da população acredita que os despejos foram executados de forma desumana, sem apoio ou compensação adequados para os deslocados.
A FM já escreveu anteriormente que a má gestão urbana representa uma séria ameaça à saúde pública e à segurança neste país. Temos solicitado ao Governo que tome medidas para melhorar a adesão às regras formais, relativas ao uso de veículos, práticas de construção, gestão de resíduos e controlo de ruído. Parte disso implica identificar e remover edifícios perigosos e prevenir comportamentos como descargas inadequadas de lixo e bloqueio ilegal de vias públicas.
No entanto, também reconhecemos que os problemas que a campanha de despejo e arresto supostamente visa resolver são resultado de fatores estruturais de longo prazo, incluindo a pobreza, a falta de educação e a mínima adesão às regras formais em toda a sociedade timorense. Essas questões complexas não podem ser simplesmente resolvidas através de intervenções governamentais de curto prazo e de cima para baixo. Temos repetidamente advertido contra abordagens autoritárias para problemas sociais complexos e, em vez disso, instado o Estado a abordar esses assuntos de forma sistemática, com planeamento integrado a longo prazo, e sem recorrer à violência ou força bruta.
A FM está particularmente alarmada com as ações da SEATOU durante esta campanha. Em vez de implementar a lei, para transformar Dili numa cidade moderna, limpa e bem organizada, parecem estar a agir como se estivessem acima da lei. Vídeos mostram o secretário de Estado a ameaçar e a intimidar membros da comunidade, flanqueado por seguranças, dando-lhes ordens para bater em cidadãos que protestavam pacificamente contra a demolição das suas casas. A FM concorda com a visão de outras organizações da sociedade civil de que a SEATOU não se está a comportar como uma entidade estatal responsável, mas mais como gangsters ou bandidos, usando máquinas e forças de segurança do Estado como uma arma para ameaçar e intimidar o povo.
Segundo o Governo, os despejos justificam-se pelo facto de que as pessoas estavam a ocupar as terras ilegalmente, apesar de, alegadamente, alguns cidadãos terem acordos com o Estado para alugar os terrenos para atividades comerciais. A FM também recebeu relatos diretos de pessoas que foram expulsas, enfatizando que as suas famílias tinham estabelecido as suas casas e os seus negócios naqueles espaços há décadas, durante os tempos da ocupação Indonésia e até mesmo de Portugal, muitas vezes com permissão específica das autoridades locais. No entanto, devido à falta de documentação adequada, tem sido difícil verificar essas alegações.
O Governo afirma que os despejos fazem parte de um programa interministerial que envolve o Ministério da Administração Estatal, o Ministério da Solidariedade Social e Inclusão, o Ministério da Educação e o Ministério da Saúde. Este programa deve fornecer apoio integrado aos despejados para garantir o acesso ao bem-estar social e aos serviços básicos. No entanto, conforme depoimentos de cidadãos ouvidos pela FM, a maioria não está a receber o suporte prometido, sendo então deixada para trás. Como resultado, dezenas de famílias estão desalojadas e perderam o rendimento após o despejo, incluindo mães com crianças pequenas, idosos e doentes.
A FM está profundamente preocupada com os motivos e objetivos subjacentes tanto à campanha em si quanto ao seu timing. Um fator-chave que influencia o timing da ação é a iminente visita do Papa Francisco em setembro deste ano. De facto, funcionários do Governo admitiram abertamente que a urgência dos despejos é, em parte, para preparar o terreno para a vinda de uma figura de destaque. Embora receber o Papa seja importante, a FM acredita que isso não deve ser usado como justificação para despejos em massa. A FM concorda com o padre timorense que disse que o Papa ficaria triste ao saber que pessoas vulneráveis perderam as suas casas devido aos preparativos do Governo para a sua visita.
Outro fator que a FM suspeita estar em jogo é o aparente aumento do interesse de investidores estrangeiros no mercado imobiliário de Dili. Desocupar locais estratégicos através de remoções em massa poderia abrir caminho para investimentos privados em centros comerciais e apartamentos de luxo. Muitos apoiariam tais desenvolvimentos, pois iriam estimular o crescimento económico e fornecer comodidades melhoradas, criando alguns empregos para a população local. Contudo, se o objetivo do Governo for simplesmente atrair investimentos “de alto nível”, esses projetos não deverão produzir benefícios tangíveis para a maioria dos timorenses, pelo menos a curto prazo. Os principais beneficiários serão a classe mais rica da população, os estrangeiros que vivem em Dili e os políticos que saem beneficiados política e financeiramente com o influxo de capital estrangeiro.
A FM acredita que esta campanha reflete a falta de consistência que tem sido uma característica pervasiva da governação e administração pública de Timor-Leste desde a independência. Essa “inconsistência consistente” assume muitas formas: como a FM aponta regularmente, dentro da administração estatal e da sociedade em geral, as regras formais são rotineiramente ignoradas e o estado de direito permanece extremamente fraco. Isso inclui uma falha completa dos governos anteriores em prevenir o crescimento de assentamentos informais ao redor da capital. Agora que os políticos finalmente decidiram que querem impor a “lei e a ordem”, centenas de “pessoas pequenas” devem perder as suas casas e negócios. De facto, vemos que os políticos costumam recorrer rapidamente ao “estado de direito” para condenar as ações das “pessoas pequenas”. Enquanto isso, a impunidade das elites reina, com corrupção e nepotismo generalizados na administração estatal como norma. Os líderes de Timor-Leste dizem que querem diversificar a economia, reduzir a pobreza e aumentar as rendas. No entanto, através desses despejos, o Governo está a destruir riqueza ao demolir casas e negócios, para os quais muitos economizaram e investiram, décadas a fio, os poucos recursos que tinham.
O crescimento económico pode muito bem ser um dos objetivos – e resultados – da campanha de despejo. Porém, o custo está a ser já elevado e a FM questiona se os investimentos vindouros beneficiarão a maioria dos timorenses. Enquanto isso, as entidades estatais continuam a agir como se estivessem acima da lei, com o discurso de que estão a impor o “estado de direito”. A visita do Papa proporcionará uma vitória da propaganda do Governo, mas ninguém pode adivinhar o que acontecerá nos próximos meses. Se práticas controversas como o nepotismo flagrante, a corrupção e a incompetência prevalecerem, enquanto a maioria das pessoas não reconhecer melhorias tangíveis em suas vidas diárias, a FM prevê que o descontentamento em massa e a instabilidade política continuarão a crescer. À medida que nos aproximamos do iminente abismo fiscal, sem fim para a corrupção oficial, perguntamos: o que será necessário para convencer os líderes a tomar as ações necessárias para garantir o futuro do país?
A Fundação Mahein é uma organização apartidária que procura, desde a sua fundação em 2009, fortalecer o processo democrático e criar soluções duradouras para os desafios no setor da segurança em Timor-Leste.