Investigadores destacaram que o pensamento de Amílcar Cabral continua a ter relevância nos debates sobre a libertação dos povos, neocolonialismo e desenvolvimento social no mundo contemporâneo. As ideias do líder africano continuam a inspirar movimentos sociais e intelectuais em todo o mundo, incluindo em Timor-Leste.
Na passada terça-feira, 17 de setembro, investigadores e ativistas timorenses reuniram-se para uma reflexão no âmbito da comemoração do centenário de Amílcar Cabral, figura importante na luta pela libertação nacional da Guiné-Bissau e Cabo Verde, nascido a 12 de setembro de 1924, em Bafatá, na Guiné Portuguesa, atual Guiné-Bissau.
A reflexão, realizada na sede do Instituto de Educação Popular, no Farol, em Díli, foi conduzida pelo líder diplomático Roque Rodrigues e pelos investigadores e ativistas Nuno Rodrigues Tchailoro e Nugroho Katjasungkana.
Com o objetivo de refletir sobre a influência do pensamento político e da luta armada de Amílcar Cabral na resistência dos timorenses durante os períodos coloniais português e indonésio, o investigador Nugroho Katjasungkana observou que o intelectual africano lutou incansavelmente pela independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde. “Os colonizadores pretendiam civilizar as nações, mas os africanos consideravam que já possuíam a sua própria civilização. Amílcar Cabral foi ativo no movimento cultural que confrontou o fascismo português”.
Nugroho Katjasungkana acrescentou que o político sempre manteve uma perspetiva crítica em relação ao racismo praticado pelos colonialistas. “No terceiro mundo, Amílcar Cabral foi um intelectual único para a época, analisando o problema do colonialismo numa perspetiva de classe, com ideias mais originais do que outras existentes na época”, frisou.
Amílcar Cabral, segundo o investigador, dedicou a sua vida a atividades revolucionárias, sendo um dos fundadores do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) e do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA). “Foi muito ativo e tornou-se um mobilizador do movimento juvenil antifascista, especialmente entre os comunistas”, afirmou.
Destacou que Amílcar não era apenas um pan-africanista, mas também um internacionalista que lutou pelas causas justas, incluindo a luta contra a discriminação racial enfrentada pelos negros nos Estados Unidos. “Foi um excelente mobilizador anticolonialista e desempenhou um papel importante na luta armada pela independência da Guiné-Bissau e de Cabo Verde”.
A luta de Amílcar Cabral não se baseava apenas na questão de classe, mas via a cultura como a base para a libertação. “Não identificava a classe trabalhadora e os capitalistas no contexto do seu país natal. Usava as diferenças étnicas como base para unir o povo contra os colonialistas”, disse Nugroho.
O investigador Nuno Rodrigues Tchailoro, por sua vez, afirmou que o pensamento de Amílcar Cabral foi relevante para a luta dos timorenses durante os períodos de colonização portuguesa e indonésia em Timor-Leste.
Durante o período do Timor português, havia tropas africanas em Timor-Leste. Consta que houve interação dessas tropas com Nicolau Lobato. “No entanto, é necessário investigar mais a fundo para entender que tipo de ideias essas tropas trouxeram”, sugeriu Tchailoro.
Os timorenses que foram para Moçambique também trouxeram as ideias de Cabral para Timor. “Podemos notar a influência do pensamento de Amílcar Cabral nos timorenses que estudaram nas colónias africanas, como Hamis Basarewan, que foi estudar para Moçambique, onde recebeu treino militar em 1969, durante seis meses”.
Além disso, Mari Alkatiri também foi estudar para Angola. “Quando Mari Alkatiri regressou a Timor, trouxe livros e ideias de África, que foram partilhados com a rede clandestina anticolonial, incluindo as ideias de Amílcar Cabral”, partilhou, acrescentando que o pensamento de Amílcar Cabral se espalhou mais quando os estudantes timorenses foram para Portugal, em meados da década de 70. Entre estes estudantes estavam António Cavarinho “Mau Lear”, Abílio Araújo, Vicente Reis “Sahe”, e outros.
“As ideias de Amílcar Cabral despertaram o interesse destes estudantes através das interações que desenvolveram na época. O pensamento que os estudantes trouxeram estava relacionado com a educação popular realizada secretamente”, afirmou o investigador, acrescentando, no entanto, que esta hipótese ainda precisa de ser mais investigada.
O pesquisador destacou que a principal ideia trazida para Timor-Leste foi a do “suicídio ideológico”. O conceito surgiu quando Amílcar Cabral percebeu que a Guiné-Bissau não era como Moçambique ou Angola, onde os portugueses dominavam e havia uma classe trabalhadora definida. Na Guiné-Bissau, não havia uma classe burguesa e proletária bem definida. “O suicídio ideológico encorajou os líderes a unirem-se ao povo e a viverem como o povo”, afirmou.
Neste sentido, uma das influências que os líderes timorenses receberam de Amílcar Cabral foi a visão da cultura como uma arma para a luta pela libertação nacional, ideia que se pode observar nas práticas adotadas pelo poeta Francisco Borja da Costa, que, em colaboração com Abílio Araújo, criou a música “Foho Ramelau”, uma canção revolucionária baseada na cultura timorense e que inflamava o espírito do povo.
“Foho Ramelau era considerada a montanha mais alta do império colonial português naquela época, e por isso usámos essa montanha como símbolo da revolução. Além disso, a colaboração entre Vicente Reis ‘Sahe’, Abílio Araújo e Francisco Borja da Costa transformou a música ‘Kolele Lelemai’ numa canção de dimensão nacional”, explicou.
Antes disso, a música era conhecida apenas pela comunidade Waimua (em Baucau), que a tocava em funerais. Com o interesse destes três líderes, a música foi adaptada para se tornar uma canção revolucionária nacional. Estas transformações foram inspiradas pelas contribuições das ideias de Amílcar Cabral, que afirmava que as diferentes etnias poderiam ser a principal arma para libertar o povo.
“Segundo as ideias de Amílcar Cabral, a cultura do povo não é igual à dos imperialistas e colonialistas e as diferentes culturas e etnias podem tornar-se uma arma poderosa para enfrentar os colonialistas”, concluiu.
Por sua vez, Roque Rodrigues afirmou que Timor-Leste ainda deve muito ao povo africano. “Temos uma dívida de gratidão com África. Quando a Indonésia invadiu o nosso país, foram os africanos que nos deram abrigo para divulgar as ideias da luta. Por isso, temos uma relação forte com o continente africano”, afirmou.
“Amílcar Cabral está a ser estudado em todo o mundo e o seu centenário será celebrado em mais de 60 países. Nenhum líder é tão celebrado como Amílcar Cabral”, observou. Não era apenas um cidadão da Guiné-Bissau, não era apenas um revolucionário africano, mas também um visionário, ou seja, “um homem que olhava para o futuro, um homem original”.
O líder diplomático afirmou que é importante retirar as lições positivas de Amílcar Cabral, que não queria a guerra. Contou que o político escreveu uma carta a Salazar a propor um diálogo no sentido de encontrar uma solução para o problema da colonização, mas Salazar não respondeu. Perante a ausência de resposta por parte do poder colonial fascista, Amílcar decidiu optar pela resistência passiva.
“O mundo de hoje tem na mente a ideia de guerra, o que acaba mal. Por isso, nesta reflexão, gostaria que todos se concentrassem na construção da paz, evitando discursos que incitem ao ódio e à violência”, sugeriu aos presentes.
Roque também apelou a todos os ativistas para que, apesar de Timor já ter alcançado a sua independência, não se esqueçam de prestar atenção a outros países que ainda lutam pela autodeterminação, como o Saara Ocidental, a Palestina e a Papua.
Avaliou que a paz em Timor ainda não é plena, pois os governantes não têm capacidade de criar campo de trabalho para os jovens, que representam a maioria da população. A migração das áreas rurais para a cidade tem gerado uma grande concentração de pessoas desempregadas, o que, a certo momento, pode tornar-se numa “bomba” que destruirá a estabilidade do país. “O nosso trabalho tem de ser feito com a juventude. Se queremos ganhar o futuro, temos de trabalhar com os jovens e educá-los para a libertação do nosso povo”, disse.
Neste contexto, pediu aos jovens que não se limitem a criticar, mas que contribuam para criar oportunidades de emprego para si próprios e para os outros. “A democracia ensina que podemos contribuir para o país. Isso é cidadania. A democracia não se resume a falar de eleições, mas implica a consciência de cada cidadão em tornar o país melhor, mais pacífico, mais justo, mais estável, solidário, forte e próspero para todos, não apenas para as elites”, destacou. Estes são os legados deixados por Amílcar Cabral e pelos combatentes timorenses, segundo Roque Rodrigues.
Criticou o modelo de desenvolvimento do país, que considera estar “mal delineado”, pois as políticas estão a criar desigualdades na sociedade. “Vou citar as palavras de Lula, que disse o seguinte: o segredo para alcançar a paz é colocar a pobreza na agenda política e trabalhar para a reduzir. Se conseguirmos fazer isso, então conquistaremos o coração do povo”, concluiu.