Cândido Alves, o jornalista cuja caneta era vista como mais afiada do que um canhão

Cândido Alves, de 52 anos, jornalista da RTTL/Foto: Diligente

Um dos jornalistas mais experientes de Timor-Leste, Cândido Alves viveu os desafios da profissão durante um período de grande repressão, quando a liberdade de expressão estava severamente limitada e os jornalistas eram frequentemente alvo de ameaças e pressões.

Nascido no Suai, a 18 de maio de 1973, iniciou os seus estudos na SD Negeri 3 Kamnasa, no Suai, prosseguindo o ensino pré-secundário na SMP Negeri 1 Ladi e depois na Escola de Serviços Sociais, em Díli.  Em 1991, assim que concluiu os estudos, foi selecionado para trabalhar no Kantor Dinas Sosial Tingkat 1 Díli, atual Ministério da Solidariedade Social e Inclusão, onde permaneceu durante seis anos. Em 1999, deixou o cargo para integrar o jornal Suara Timur Timur (STT), atualmente conhecido como Suara Timor Lorosa’e (STL).

Durante o tempo que trabalhou no STL, teve a oportunidade de colaborar com correspondentes de agências estrangeiras, com autorização do proprietário do jornal. Paralelamente, escreveu para a emissora Tokyo Broadcasting System (TBS).

Em 2000, foi contratado pelo jornal Timor Post, onde trabalhou até 2002, ano em que passou a integrar a equipa da agência francesa Agence France-Presse (AFP) como fotógrafo em Timor-Leste. Em 2004, mudou-se para a Rádio e Televisão de Timor-Leste (RTTL), onde permanece até hoje.

O que o levou a tornar-se jornalista?

Quando era criança, via as notícias na televisão a preto e branco. Naquela altura, a única televisão estava na sede do suco e, à noite, tínhamos de andar muito para conseguir ver televisão. Muitas vezes, acabávamos por pernoitar lá, com medo de voltar para casa no escuro. Via os jornalistas a fazer entrevistas, a tirar fotografias e a gravar vídeos durante a guerra. Fiquei fascinado com a profissão e, quando ia para a escola, brincava com os meus amigos a imitar os jornalistas, a tirar fotos e a gravar vídeos com uma câmara improvisada de madeira.

Quem o inspirou nesta profissão?

Há um jornalista do The New York Times, chamado Jonathan, que recentemente entrevistou o presidente da República, José Ramos-Horta. Além disso, admiro o fotógrafo Kevin Carter, da AFP, que tirou a famosa fotografia de uma criança refugiada no Sudão em situação de extrema miséria. A imagem tornou-se uma das mais icónicas do mundo, mas, três meses depois da sua publicação, Carter suicidou-se após receber inúmeras críticas. Muitas pessoas acusaram-no de apenas registar o momento, em vez de ajudar a criança. No entanto, naquela época, os refugiados no Sudão não podiam ser assistidos ou retirados do local por estrangeiros.

Quando começou a trabalhar como jornalista?

Era muito difícil encontrar jornais na altura. Se via algum papel velho na estrada, apanhava-o, guardava-o e lia-o até conseguir decorar o conteúdo. Lembro-me de ter lido uma notícia sobre o então primeiro-ministro Mari Alkatiri e pensar que o nome estava errado, porque achava  que um homem não devia chamar-se Mari.

O desejo de ser jornalista levou-me a candidatar-me, em 1997, a uma vaga no jornal Suara Timor Timur (STT). Decidi demitir-me do meu antigo emprego para tentar a minha sorte na imprensa e comecei como estagiário.

Fui destacado para o Suai durante alguns meses e, em 1998, viajei para Jacarta, na Indonésia, para frequentar uma formação em jornalismo, onde permaneci algum tempo.

Além de escrever para o STT, também colaborava com a emissora japonesa Tokyo Broadcasting System (TBS), enviando notícias que eram traduzidas para japonês.

Qual foi a sua primeira reportagem?

Quando fui destacado para o Suai, escrevi sobre uma manifestação de jovens na altura contra o governo indonésio, motivada por insultos à Igreja Católica. O protesto começou durante uma cerimónia de confraternização, conhecida na altura por halal bi halal, onde as pessoas pediam perdão umas às outras e partilhavam refeições. Quando chegou a vez de um padre, deram-lhe restos de comida, incluindo espinhas de peixe. O ato foi considerado uma humilhação e um insulto, levando a uma revolta popular.

A manifestação começou em frente à casa do governador em Oé-Cusse e rapidamente alastrou a outros pontos do território, como Bobonaro e Díli. Durante os protestos dois jovens morreram e várias infraestruturas foram atacadas. Como jornalista, só consegui recolher relatos de testemunhas, pois as autoridades recusaram-se a comentar o caso.

Visitei o hospital onde estavam internados alguns feridos, mas nenhum médico ou responsável aceitou dar entrevistas sobre a situação.

Qual foi a noticia mais marcante da sua carreira?

Uma das mais marcantes foi sobre o grupo Ai-Tarak, uma milícia pró-Indonésia responsável por inúmeras destruições e mortes nos últimos anos da ocupação. A 17 de abril de 1998, entrevistei o líder do grupo, Eurico Guterres, no Palácio do Governo. O ambiente era tenso e tive de usar capacete de proteção.

Durante a cobertura do caso, dispararam sobre o jornalista Cornelis Hama, da KOMPAS, em Kulu-Hum.  Tivemos de correr para encontrar abrigo, e eu refugiei-me em Surikmas, uma área das elites, onde a segurança era mais garantida.

Já sofreu intimidações por causa do seu trabalho?

Sim. Quando publiquei uma reportagem sobre um funcionário de um banco privado que explorava mulheres para prostituição, a entidade bancária contestou a notícia porque o artigo mencionava o nome do banco, argumentando que a situação ocorrera fora do horário de trabalho.

Outra caso foi quando noticiei que a Agência Reguladora de Medicamentos e Alimentos (BPOM) declarou que a água engarrafada Aqua-Mor não tinha qualidade para consumo. A empresa acabou por ser encerrada e vários trabalhadores perderam os seus empregos. Entre os manifestantes que protestaram contra mim estava o meu próprio primo.

Um dia, recebemos uma carta da comunidade a relatar que os militares indonésios estavam a interrogar jovens timorenses em Kasa, Ainaro, usando pontas de cigarro para os queimar em várias partes do corpo. Decidi cobrir o assunto e optei pelo título “TNI [Força Nacional da Indonésia] é desumano”.

Quando eu e o meu colega Lourenço Vicente Martins estávamos à espera do coronel Tono Suratman no aeroporto de Díli, já que na altura ele se preparava para viajar para Jacarta, este chegou, abriu a porta do carro em que seguia e, dirigindo-se a mim, limitou-se a dizer: “Cândido, a tua caneta é mais afiada do que o canhão que eu uso”. Foi a sua reação à notícia que escrevi sobre os jovens de Kasa.

Durante o período pré-eleitoral do referendo, os apoiantes pró-Indonésia não gostavam do STT. Em 1998, quando participávamos numa formação em Jacarta, a minha colega Suzana Cardoso escreveu sobre Xanana Gusmão, que estava preso em Cipinang; João Barreto escreveu sobre Falur Rate-Laek em Laclubar; e eu escrevi um artigo intitulado “Xanana animou-se com as pinturas de Cipinang”. O dono do STT, que na altura era membro do DPRI (equivalente ao atual Parlamento Nacional) em Jacarta, foi pressionado pelos indonésios a escolher entre despedir os seus jornalistas e fechar o jornal ou manter o seu cargo. Optou por sacrificar a sua posição e manter o jornal.

Quais foram os principais desafios ao longo da sua carreira? 

Durante a ocupação indonésia, sempre que escrevíamos notícias sobre a independência ou as FALINTIL, não dormíamos em casa por medo de represálias.

Entre 1998 e 1999, a agência para a qual trabalhava encarregou-se do pagamento dos hotéis onde nos abrigávamos para garantir a nossa segurança, pois começámos a ser ameaçados. Os correspondentes alugaram um avião para levar os jornalistas para Jacarta, mas como não tinha recebido nenhuma informação dos meus pais no Suai, decidi ficar. Um capitão da ilha de Flores ajudou-me a chegar a Atambua, onde permaneci durante três dias, antes de seguir viagem para Kupang. Só regressei a Díli duas semanas depois.

Nessa altura, tínhamos de nos esconder e procurar locais seguros. Até comunicar com a família era difícil. Quando escrevíamos cartas, precisávamos de ter cuidado, pois até nos correios havia o risco de as nossas mensagens serem identificadas e procurarem por nós. Se descobrissem que mantínhamos contacto com as nossas famílias, a vida dos nossos parentes estaria em perigo.

Como vê os jornalistas hoje em dia? 

As mudanças foram grandes e significativas em comparação com o nosso tempo. Antigamente, usávamos gravadores manuais e tínhamos de ter cuidado, pois as pessoas suspeitavam que pertencíamos ao serviço de inteligência. Além disso, não havia internet, o que tornava tudo mais difícil, incluindo a escrita das notícias, que muitas vezes tinha de ser feita à mão ou com máquinas de escrever.

Lembro-me de quando o padre Rafael dos Santos morreu em Liquiçá, depois de ter sido atacado com golpes de catana. As pessoas desconheciam o ocorrido, e eu aluguei um táxi para ir cobrir o caso. Em Tibar, o ambiente estava tenso, pois em Maubara tinha havido um incêndio provocado por grupos de milícias. Em Aipelo, eu e os meus colegas do STT estivemos prestes a ser atacados – apontaram-nos flechas –, mas, felizmente, reconheceram-nos assim que abriram a porta do táxi. Perceberam que não éramos pró-Indonésia e deixaram-nos ir. Foi um momento em que estive à beira da morte.

Comparando com aquela época, os jornalistas de hoje têm muito mais facilidade para exercer o seu trabalho. A tecnologia tornou mais simples a gravação de vídeos e de voz, bem como a redação dos textos.

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