Pode parecer curioso começar um artigo com um título que, ele próprio, pode induzir em erro. A subtil arte do autoengano traz nas entrelinhas a ideia de que manipulamos a nós mesmos de forma intencional. Às vezes isso até acontece, mas na maior parte dos casos, o autoengano não é um ato consciente.
O autoengano a que me refiro é uma expressão genérica para descrever processos mentais involuntários que nos levam a interpretações distorcidas. Podemos entendê-lo como um recurso psicológico que nos ajuda a manter a imagem que temos de nós próprios, reduzir a ansiedade e as tensões emocionais, ou a lidar com conflitos entre as nossas crenças e os factos do mundo à nossa volta.
Um exemplo simples ocorre quando alguém que se considera honesta, ao mentir numa situação pontual, justifica-se dizendo a si mesma que o fez ‘para proteger outra pessoa’ ou porque ‘não tinha alternativa’. Essa pessoa está a usar a racionalização para explicar o seu comportamento de forma a torná-lo mais aceitável à consciência. Podemos também recorrer à negação quando nos recusamos a aceitar factos desconfortáveis ou que possam pôr em causa a nossa autoimagem ou as nossas crenças. Um exemplo comum é o de alguém que ignora sinais evidentes de problemas numa relação ou de uma doença, insistindo que ‘está tudo bem’. Outro recurso é o deslocamento de responsabilidade, que ocorre quando atribuímos os nossos erros ou fracassos a fatores externos – ‘a culpa foi do destino’, ‘ninguém me ajudou’, ‘as regras são injustas’, ‘os outros prejudicaram-me’, ou ‘a polícia usa violência porque é a única forma de fazer as pessoas respeitarem a ordem’ –, ignorando, neste último caso, as dinâmicas sociais e de poder envolvidas.
E o cérebro, o que tem a ver com isso?
O cérebro humano está programado para encontrar padrões em tudo o que percebe – uma habilidade que nos ajuda a compreender o ambiente, tomar decisões rápidas e antecipar acontecimentos. Esse mecanismo foi fundamental para a sobrevivência da nossa espécie, pois, além de poupar energia, permitiu identificar rostos, reconhecer perigos e repetir comportamentos bem-sucedidos.
No entanto, essa tendência para a organização e coerência também tem efeitos colaterais: ao procurar padrões, o cérebro pode ignorar as diferenças, as anomalias ou perceber conexões onde não existem.
Um exemplo é a pareidolia, que nos leva a ver rostos ou figuras em nuvens, pedras, fachadas de prédios ou até em alimentos. A estrutura cerebral envolvida neste fenómeno – especialmente o giro fusiforme – responde a estímulos imprecisos ou irrelevantes, formando padrões e gerando a sensação de familiaridade. Embora este tipo de ilusão visual seja facilmente identificável, os padrões mentais subjetivos – como crenças, julgamentos, sentimentos e expectativas – são mais difíceis de reconhecer.
Nesses casos, projetamos coerência onde há ambiguidade, simplicidade onde há complexidade e similaridade onde há diferença, o que pode distorcer a forma como percebemos outras pessoas, ideias ou situações. Assim, embora essencial, a nossa capacidade de reconhecer padrões pode enganar-nos. Compreender essa predisposição do cérebro ajuda-nos a ser mais críticos em relação às nossas interpretações e mais atentos às nuances que o padrão, por si só, pode esconder.
A influência dos signos e das ideologias
O autoengano não é apenas uma questão interna. Ele é também alimentado pelos códigos culturais e ideológicos. Desde cedo, aprendemos a ver o mundo através de linguagens, símbolos e valores que herdamos do meio em que vivemos. Esse sistema de signos condiciona a maneira como interpretamos as nossas experiências. Passamos a entender os outros e as dinâmicas sociais com base em filtros que aprendemos culturalmente. Por exemplo, podemos julgar alguém como preguiçoso sem perceber que estamos a utilizar uma ideia de mérito baseada numa lógica competitiva que nos foi ensinada, e que nem sempre corresponde à história de vida do outro.
As ideologias funcionam como lentes invisíveis. Muitas vezes, enganamo-nos ao pensar que somos completamente racionais ou imparciais nas nossas opiniões. Porém, estamos frequentemente a repetir narrativas ideológicas com aparência de senso comum. O autoengano entra aqui como uma forma de proteger a coerência da nossa visão de mundo: se acreditamos que vivemos numa sociedade justa, é mais fácil dizer que alguém é pobre porque não se esforça do que encarar os efeitos estruturais da desigualdade.
Este tipo de distorção cognitiva pode levar-nos a reduzir as pessoas a categorias – vencedores, fracassados, bons, maus, inteligentes, idiotas, pobres, ricos – ignorando os contextos complexos em que vivem. Essas ideias reforçam-se mutuamente e contam com o apoio dos meios de comunicação, dos algoritmos das redes sociais, dos discursos políticos e religiosos, da arte e até de alguns conteúdos escolares para se disseminarem.
Ao não questionarmos esses signos e ideologias, estamos a iludir-nos e a contribuir, ainda que sem intenção, para a manutenção do status quo, dos preconceitos e das injustiças sociais disfarçadas de normalidade.
Como evitar contradições e construir a nossa própria ‘verdade’
Além dos mecanismos, já mencionados no início deste artigo, o autoengano manifesta-se através de diversos processos psicológicos que utilizamos para reduzir conflitos internos e preservar uma visão coerente de nós próprios e do mundo.
Frequentemente utilizamos vieses cognitivos que distorcem a forma como percebemos o mundo à nossa volta. Estes vieses são como filtros que nos fazem dar mais importância a certas informações e ignorar outras. Por exemplo, ao ler uma notícia que confirma aquilo em que já acreditamos, damos-lhe mais credibilidade do que a uma que desafia as nossas crenças – este é o chamado viés de confirmação.
As heurísticas mentais, por sua vez, são atalhos cognitivos que nos permitem tomar decisões rápidas. Embora úteis no quotidiano – como quando escolhemos uma fila mais curta no supermercado, influenciados pela heurística da disponibilidade –, podem levar a erros de julgamento em situações mais complexas. Um exemplo disso ocorre quando avaliamos uma pessoa pela sua aparência ou modo de falar: sob a influência da heurística da representatividade, podemos inferir características que não passam de suposições equivocadas.
A seguir, apresento alguns mecanismos que acionamos no dia a dia:
Efeito placebo psicológico: imagine alguém que carrega consigo um amuleto acreditando que ele lhe traz sorte. Mesmo sem qualquer efeito objetivo, o simples ato de acreditar pode gerar segurança emocional, melhorar o desempenho e reduzir a ansiedade. No entanto, essa mesma crença, dependendo do contexto, também pode colocar-nos em situações de risco.
Efeito Dunning-Kruger: este efeito descreve a tendência de quanto menos uma pessoa sabe sobre um assunto, mais confiante tende a ser naquilo que pensa saber. Após assistir a um vídeo, ler um artigo, ouvir um comentário – ou mesmo sem nada disso – passamos a opinar com convicção sobre política internacional, educação infantil, finanças públicas, como pendurar um quadro ou vacinas. A superficialidade do conhecimento é disfarçada por discursos seguros e simplistas. Assim, acabamos por ter opinião sobre praticamente tudo.
Memória reconstruída: a memória não é uma gravação fiel dos factos, mas um processo dinâmico, maleável e influenciável. Com frequência, ela é editada – de forma não consciente – para se alinhar com o que acreditamos ou sentimos no presente. Por exemplo, podemos recordar uma decisão como tendo sido óbvia, mesmo que, na altura, estivéssemos inseguros, ou lembrar palavras que nunca foram ditas, mas que reforçam uma narrativa pessoal. Em contextos sociais, essa reconstrução da memória pode dar origem a versões coletivas de eventos – como greves, eleições ou tragédias – moldadas por ideologias, afetos e disputas de poder.
Dissonância cognitiva: é o desconforto psicológico que sentimos quando há uma contradição entre os nossos valores, crenças ou expectativas e as nossas ações ou perceções dos factos. Esse mecanismo atua tanto no plano individual quanto no coletivo, levando-nos a ajustar narrativas de modo a reduzir a tensão interna. Por exemplo: uma pessoa que segue uma doutrina religiosa baseada no amor ao próximo e no perdão pode sentir desconforto ao alimentar sentimentos de ódio ou desejo de vingança. Para reduzir essa dissonância, pode dizer a si mesma que ‘certas pessoas não merecem perdão’ ou que ‘Deus compreende a minha raiva’. Assim, justifica o comportamento contraditório e preserva a ideia de que continua a ser uma pessoa fiel e amorosa.
Efeito do ponto cego: temos maior facilidade em identificar os erros dos outros do que os nossos. Criticamos quem age com arrogância, mas não reconhecemos o mesmo em nós; acusamos os outros de serem influenciados por ideologias, enquanto consideramos as nossas opiniões como neutras e racionais.
Efeito de projeção: acontece quando presumimos que os outros partilham os nossos sentimentos, motivações ou pensamentos – ou seja, vemos os outros como espelhos de nós mesmos. Por exemplo, podemos desconfiar da honestidade de alguém porque projetamos as nossas próprias inseguranças, ou acreditar que somos amados apenas porque sentimos amor. Embora por vezes inofensiva, a projeção pode sustentar relações tóxicas, alimentar expectativas irreais ou justificar comportamentos agressivos.
Viés do escocês de verdade: ocorre quando, para defender uma generalização, mudamos a definição original para excluir exemplos que a contradigam, ou seja, redefinir para excluir. Por exemplo: ‘todo o timorense valoriza a sua cultura’, ao encontrar um timorense que contesta determinados aspetos da cultura, diz-se ‘esse não é timorense de verdade’. Esta lógica protege preconceitos, inviabiliza o diálogo e perpetua estereótipos.
Ilusão de controlo: ocorre quando acreditamos que temos mais controlo do que realmente temos. Repetir sempre os mesmos números na lotaria, acreditar que ser simpático garante o respeito alheio, ou tentar mudar alguém com amor e persistência são exemplos desta ilusão. Em relações de poder, é comum alguém acreditar que comanda uma situação, quando, na prática, está sujeito a dinâmicas que desconhece ou não controla.
Efeito do falso consenso: este é um tipo de viés que nos leva a sobrestimar o número de pessoas que partilham as nossas opiniões, reforçando a sensação de que estamos certos. Frases como ‘isso é o que toda a gente pensa’, ‘somos todos da mesma religião’, ‘todos respeitamos a tradição’ são usadas para legitimar posições pessoais, ignorando a diversidade de perspetivas existentes.
Falácias lógicas são erros de raciocínio que parecem convincentes, mas que não têm consistência lógica. Apesar de comuns em discussões e debates, também as usamos para nos convencermos daquilo em que queremos acreditar. O apelo à emoção, por exemplo, substitui argumentos por sentimentos: ‘se não votar neste candidato, haverá conflito’ (medo); ‘uma pessoa de bem sentiria vergonha por desafiar a autoridade dos mais velhos’ (culpa, vergonha, moral), ‘estes estrangeiros estão a roubar o meu trabalho’ (indignação), ou ainda, ‘fumar é o meu único prazer’ (indulgência, perda). Outro tipo comum é a falsa dicotomia, que reduz opções complexas a escolhas extremas, como em ‘ou aceito tudo ou abandono tudo’. Esta simplificação ocorre tanto em decisões pessoais – como num relacionamento desgastado – quanto no ambiente de trabalho e em discursos políticos que opõem ‘nós’ e ‘eles’, eliminando nuances e bloqueando o diálogo. A falácia ad hominem, por sua vez, ataca a pessoa e não os seus argumentos: ‘ela só defende essas ideias feministas porque é feia e odeia os homens’. Na falácia do espantalho, distorcemos a posição do outro para a tornar mais fácil de atacar. Isso acontece, por exemplo, quando alguém que se sente criticado pela parceira por passar muito tempo no trabalho reage dizendo: ‘Ah, então agora queres que eu largue tudo e fique em casa o dia inteiro?’, mesmo que isso nunca tenha sido sugerido. Assim, evitamos o desconforto, protegemos a autoimagem e mantemos, por mais algum tempo, tudo como está.
Reconhecer os mecanismos do autoengano não nos torna imunes a eles, mas amplia a nossa consciência sobre como construímos a nossa visão do mundo – e de nós mesmos. Não se trata de viver num estado de alerta permanente, mas de cultivar uma postura mais atenta, aberta, flexível e empática. Quando compreendemos melhor os filtros que distorcem a nossa perceção, a subtil arte do autoengano pode transformar-se na arte do autoconhecimento.
Alessandro Boarccaech é psicólogo, especialista em psicologia clínica, psicoterapeuta, semiótico e Ph.D. em antropologia.