Reparação para as vítimas-sobreviventes e as crianças da guerra no suco Bibileo: uma perspetiva situacional e condicional Elsa Bina Pinto da Costa

“Numa guerra, não há apenas heróis e heroínas; se só existissem heróis e heroínas, não precisaríamos de lutar, porque já teríamos vencido.”/foto: criada por ChatGPT

“Esta luta não tem apenas vítimas, mas também heróis e heroínas; se houvesse apenas heróis e heroínas, então não poderíamos chamar-lhe luta — porque já a teríamos vencido.”

— Manuela Leong Pereira

O principal objetivo desta reflexão é aprofundar a realidade das vítimas que sofreram violações durante a ocupação indonésia em Timor-Leste. A valorização da justiça legal e da reparação não pode — nem deve — ser a única preocupação quando se fala das sobreviventes.

Este texto procura articular uma perspetiva que dê voz à realidade das mães sobreviventes e das crianças da guerra no suco Bibileo, refletindo sobre formas de alcançar uma reparação que inclua responsabilização, reconhecimento, dignidade e valorização do seu inestimável papel humano. Pretende-se também promover um diálogo entre a justiça legal, assente em modelos normativos, e a justiça consuetudinária, de modo a que todos possam viver com segurança e exercer plenamente os seus direitos, num caminho de verdadeira justiça.

Com base em observações no terreno, constata-se que as vítimas-sobreviventes e as crianças da guerra enfrentam obstáculos que vão muito além do quadro legal. Verificam-se impactos diretos na documentação civil, na economia familiar, nas condições de exclusão social e no acesso a serviços essenciais, agravados pela precariedade das infraestruturas rodoviárias.

O termo “vítima-sobrevivente” refere-se às mulheres submetidas a violação sexual, que foram forçadas a tornar-se esposas temporárias de militares indonésios e de membros de grupos de milícias.

O termo “crianças da guerra” refere-se a crianças nascidas de violação sexual durante a ocupação indonésia em Timor-Leste, constando, em muitos casos, que o pai é desconhecido ou não reconhecido.

A subsistência destas famílias depende sobretudo da agricultura e da criatividade individual. Cultivam arroz, milho, mandioca e hortícolas; produzem vinho de palma (tua); tecem esteiras; preparam massa artesanal e fabricam tecidos tradicionais (biti), entre outras atividades. Contudo, a fragilidade das infraestruturas dificulta o transporte e a venda destes produtos nos mercados, comprometendo a sustentabilidade económica e familiar.

Apesar de a Constituição da República garantir e proteger os direitos fundamentais de todos os cidadãos, a realidade demonstra profundas desigualdades. A igualdade formal não tem correspondência com a igualdade vivida no quotidiano.

Existe uma clara discrepância entre os princípios do Estado de direito democrático e a prática social concreta. Estas mulheres e crianças vivem uma situação de ostracismo social — no seio familiar, na comunidade e inclusive perante instituições estatais. A negligência mais grave reside na ausência de ações estruturadas do próprio Estado, que não tem assumido, de forma efetiva, o seu papel e responsabilidade institucional.

Assim, este artigo não se limita a uma leitura jurídico-normativa, pois procura também enfatizar a dimensão social e humana da justiça, alicerçada em valores fundamentais. Defende o reconhecimento do sofrimento e da contribuição das mulheres sobreviventes, assim como das gerações que, mesmo após a independência, continuam a viver em privação. O objetivo é garantir uma vida digna, livre de discriminação e estigmatização, através de uma política de reparação verdadeiramente humana e justa.

A luta do povo timorense pela independência — do período colonial à ocupação — foi marcada por conflitos, perseguições, violações, homicídios, tortura e intimidação. Neste percurso, o povo maubere e buibere resistiu com coragem, lutando pela libertação da sua terra e da sua existência enquanto povo, até alcançar a independência nacional.

As violações em massa deixaram marcas profundas e traumas coletivos, cujas consequências continuam a afetar as vítimas-sobreviventes e as crianças da guerra. A história reflete um país onde alguns tiveram acesso a privilégios, enquanto outros permanecem esquecidos, marginalizados e silenciados.

É urgente reconhecer e dar visibilidade a estas pessoas, através de apoio psicossocial, assistência emergencial e mecanismos de reparação que devolvam dignidade e promovam a inclusão.

Num conflito, existem vítimas e heróis ou heroínas. Timor-Leste conquistou a independência há mais de duas décadas, mas a narrativa nacional ainda privilegia apenas a voz dos heróis e heroínas, deixando no silêncio as vítimas de violência sexual. Essas mulheres continuam a viver vulneráveis, preocupadas sobretudo com o reconhecimento civil dos seus filhos.

A independência, embora plena no plano formal, perde significado quando a justiça continua inacessível para vítimas-sobreviventes e crianças da guerra. Durante a ocupação, perderam a dignidade, os bens, os lares e quase tudo o que tinham.

No suco Bibileo, enquanto estudo de caso, é possível observar como o trauma permanece enraizado na vida quotidiana destas mulheres e crianças, especialmente daquelas que nunca receberam reconhecimento oficial.

Durante três dias de convivência e observação direta, a autora contactou e acompanhou 22 pessoas — entre as quais 7 mães sobreviventes — recolhendo testemunhos que revelam lacunas profundas não só ao nível judicial, mas também social, cultural, económico e político.

Verificou-se que estas mães vivem em condições vulneráveis: habitação precária e insegura; dificuldades económicas extremas; longas distâncias até serviços básicos, como hospitais e mercados; traumas físicos e psicológicos persistentes e exclusão social e invisibilidade pública.

Muitas sobrevivem exclusivamente do trabalho manual — na agricultura, no artesanato ou na produção de alimentos — garantindo a subsistência com o mínimo possível, frequentemente com a venda dos seus bens a preços baixos para assegurar necessidades básicas.

Diante desta realidade, a reparação não pode limitar-se a uma compensação financeira, devendo sim garantir reconhecimento pleno, direitos iguais, dignidade e inclusão — tal como a qualquer cidadão da República Democrática de Timor-Leste.

Torna-se imprescindível assegurar um reconhecimento oficial da violência sofrida, valorizando a dignidade destas mulheres e destas crianças, e oferecendo condições para a reconstrução das suas vidas.

A reparação exige mais do que intenção: exige legislação específica, políticas públicas eficazes, mecanismos judiciais acessíveis, e um processo de justiça transicional que produza efeitos concretos.

As mães-sobreviventes e as crianças da guerra merecem dignidade e respeito — não apenas como vítimas, mas como heroínas da nação. Como afirmou a diretora da ACbit. “Numa guerra, não há apenas heróis e heroínas; se só existissem heróis e heroínas, não precisaríamos de lutar, porque já teríamos vencido.”

É crucial que o Estado e a sociedade assumam um compromisso profundo com a reparação, reconhecendo que estas mulheres e crianças foram despojadas da sua dignidade no processo que conduziu à independência.

A solidariedade social deve traduzir-se em ações concretas. É igualmente essencial responsabilizar os crimes cometidos durante a ocupação indonésia, incluindo a violação sistemática dos direitos humanos, permitindo a sua devida inscrição na memória histórica e na justiça internacional.

A reparação deve ser múltipla, integrada e sustentável — atuando no plano normativo, social e humano. Deve enfrentar desafios como: habitação precária, trauma, doença mental, dificuldades económicas e isolamento territorial.

Para tal, é indispensável a criação de políticas sólidas e mecanismos de reparação a curto, médio e longo prazo, desenvolvidos em cooperação entre o Estado, a sociedade civil e parceiros internacionais, incluindo ações emergenciais diretas e indiretas.

A reparação para as vítimas-sobreviventes e o reconhecimento das crianças da guerra — em Bibileo e em todo o país — não é apenas uma questão de justiça: é uma questão de direitos humanos e dignidade.

Construir um país verdadeiramente justo, fraterno e transparente exige reconhecer todas as histórias, incluindo a daqueles e daquelas que sofreram violência extrema durante a ocupação. Só assim Timor-Leste poderá honrar a sua memória, a sua coragem e a sua humanidade.

Elsa Bina Pinto da Costa é uma estudante dedicada e ativista em Timor-Leste. Participa ativamente na AJAR e é membro do grupo Jovem Defensor de Direitos Humanos (JDDU), bem como do movimento feminista FERA, contribuindo para a promoção dos direitos humanos e da participação juvenil na sociedade. O artigo de opinião foi editado por Maunelson Amay.

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