Sociedade civil pede reestruturação orçamental do OGE 2026 e alerta para despesas desnecessárias e investimento nos setores-chave

Orçamento de 2026 avança, mas as críticas ficam: sociedade civil denuncia prioridades desalinhadas, dependência das importações, falta de apoio à agricultura e risco de endividamento/Foto: DR

Com uma proposta orçamental de 2,3 mil milhões de dólares para 2026, organizações da sociedade civil apelam à eliminação de despesas não essenciais e defendem maior investimento em setores prioritários, como educação, saúde, agricultura, saneamento e água, alertando para o agravamento da dependência do Fundo Petrolífero.

A proposta do Orçamento Geral do Estado (OGE) para 2026 está a ser debatida no Parlamento Nacional e levanta preocupações significativas entre organizações da sociedade civil, que alertam para despesas excessivas e riscos para a sustentabilidade económica de Timor-Leste, sobretudo perante o cenário de precipício fiscal.

De acordo com a ONG La’o Hamutuk, é urgente reestruturar o orçamento e reformar o sistema fiscal, dado o risco — apontado pelo Banco Mundial — de o país enfrentar um precipício fiscal na próxima década.

“Mesmo que o Governo reconheça a urgência de uma reforma fiscal para evitar o precipício fiscal, as despesas anuais, incluindo a proposta para 2026, continuam a aumentar e a depender do Fundo Petrolífero em 85%”, lamenta a La’o Hamutuk.

Embora o teto orçamental inicial, definido pelo Ministério das Finanças, fosse de 1,8 mil milhões de dólares, a soma das propostas setoriais dos ministérios elevou o valor para 2,29 mil milhões. Com a receita doméstica a rondar os 200 milhões de dólares, a La’o Hamutuk salienta que o Fundo Petrolífero poderá esgotar-se mais cedo do que o previsto, apelando ao Parlamento Nacional para que use as suas competências para reduzir ou eliminar gastos desnecessários.

“Há grandes projetos com custos de manutenção elevados, sem garantia de retorno, como o Greater Sunrise. Há mais de 10 anos que são investidos recursos em autoestradas que rapidamente ficam danificadas”, afirmou Marta da Silva, investigadora da La’o Hamutuk.

A investigadora defendeu que, enquanto não houver garantias sobre grandes projetos, o país deveria concentrar-se na melhoria das estradas nacionais, sugerindo ainda que, quando as indústrias extrativas entrarem em operação, seja estipulado um calendário específico para a circulação de viaturas pesadas, a fim de reduzir o desgaste das vias.

Outro exemplo de despesa considerada desnecessária é o arrendamento de edifícios para entidades públicas. Para Marta da Silva, seria mais sustentável investir na construção de infraestruturas próprias, concentrando os custos apenas nos primeiros anos.

A investigadora chamou também a atenção para o aumento anual do capital menor no OGE, defendendo o registo e inventariação de todos os bens do Estado, para que o orçamento contemple apenas as reparações ou substituições estritamente necessárias.

Por sua vez, Celestino Gusmão destacou a elevada verba destinada às transferências públicas, nomeadamente para serviços e benefícios sociais, como subsídios para veteranos e idosos. Um dos setores que mais absorve recursos públicos é o da eletricidade.

“A eletricidade que usamos é subsidiada em 100 milhões de dólares pelo Governo. Não temos financiamento público suficiente para manter serviços desta dimensão. É preciso procurar soluções mais sustentáveis”, alertou o investigador.

Marta da Silva reforçou a posição do colega, sugerindo que institutos e empresas públicas que não geram receita sejam integrados nos respetivos ministérios de tutela, como forma de reduzir custos.

“O Governo já começou a trabalhar nesta direção. Se houver seriedade, este esforço deve continuar, para reduzir as transferências públicas”, referiu.

Relativamente aos subsídios pessoais, a investigadora salientou o peso financeiro das pensões dos veteranos, que, por serem vitalícias, se tornam difíceis de sustentar a longo prazo. Como alternativa, sugeriu a criação de um fundo único, com um valor equilibrado e sustentável, que reconheça os combatentes sem comprometer a estabilidade financeira do país.

Já Mariano Ferreira, também investigador da La’o Hamutuk, apontou para os custos das viagens oficiais do Estado. “Quando um ministro viaja ao estrangeiro com uma comitiva numerosa, quanto dinheiro é gasto em alojamento e logística? E quando visitam os municípios com caravanas extensas, que impacto real isso tem na vida da população?”, questionou.

Investimento em setores essenciais não reflete prioridades da população, alertam organizações

A La’o Hamutuk critica a distribuição orçamental para setores estratégicos como educação, saúde, agricultura, água e saneamento, que, em conjunto, representam apenas 18% do orçamento, uma média que nunca ultrapassou os 20%. Em contraste, cerca de 31% do OGE é destinado à administração pública. Para a ONG, esta discrepância demonstra falta de compromisso político na melhoria das condições de vida da população.

De acordo com o Censo de 2022, 66% da população depende da agricultura e 95% depende da criação de gado, embora a maior parte dos bens consumidos no dia a dia seja importada.

“Temos dinheiro para importar, então não damos importância aos setores produtivos. Ao entrar na ASEAN, temos de pensar não necessariamente em competir, mas pelo menos em alcançar autossuficiência”, defendeu Mariano Ferreira, investigador da La’o Hamutuk.

A organização sublinha ainda que as políticas fiscais do Governo continuam a não contribuir para o aumento da receita doméstica, defendendo, por isso, o reforço do investimento na indústria transformadora, com enfoque na agricultura, pecuária, pescas, florestas e artesanato, além da promoção da agrofloresta e do turismo comunitário.

Também o Instituto Mata Dalan (MDI) considerou que o OGE 2026 mantém o foco em grandes projetos de infraestruturas, petróleo e recursos minerais, em detrimento de uma estratégia centrada nas pessoas, nomeadamente na agricultura, setor que sustenta a maioria da população.

As preocupações não partem apenas da sociedade civil. Estes temas foram também apresentados pela população ao Governo durante a consulta pública de cidadania, mas a proposta orçamental para 2026 não refletiu essas prioridades.

“O MDI recomenda uma mudança de prioridade de investimento para os setores produtivos, de forma a gerar receitas internas, emprego e crescimento sustentável”, afirmou Noé Gaspar Tilman, porta-voz da organização.

A La’o Hamutuk acrescenta que não basta aumentar a dotação orçamental para os setores-chave. É também crucial garantir lideranças com capacidade de execução e de desenho de programas eficazes. Por isso, a organização defende que o Governo avalie as chefias responsáveis por esses setores.

Celestino Gusmão sublinhou ainda que, mesmo sendo reduzido, grande parte do orçamento destinado a esses setores tem sido absorvido por salários e remunerações, deixando pouco espaço para a melhoria dos serviços.

“Isso não significa que não seja importante, porque assegura os trabalhadores, mas é preciso fazer mais para garantir um serviço público de qualidade”, observou, referindo a persistente falta de médicos, professores, medicamentos e infraestruturas adequadas.

Mariano Ferreira reforçou a ideia comparando a realidade timorense com a de outros países da região. “No Sudeste Asiático, países como Vietname, Malásia e Tailândia apostaram na agricultura como setor estratégico. Timor-Leste tem enorme potencial na agricultura e na pecuária, mas praticamente não tem investido”, lamentou.

O MDI apontou ainda para a falta de descentralização orçamental, desequilíbrios setoriais e ausência de investimentos com enfoque inclusivo, resiliente às alterações climáticas e com impacto local. Segundo comunicado da organização, divulgado na quinta-feira (6/11), o OGE 2026 prevê 57 milhões de dólares para a descentralização, mas não discrimina quanto será destinado aos municípios e comunidades.

“As autoridades locais continuam muito dependentes de programas centrais, como o PNDS, o PDIM e projetos do Ministério das Obras Públicas, o que limita a capacidade de planear, executar e monitorizar iniciativas com base nas necessidades locais”, afirmou o porta-voz do MDI.

O instituto alertou ainda para a fragmentação e fraca coordenação na execução de programas de desenvolvimento rural, problemáticas que têm provocado duplicação de esforços e ineficiência no uso de recursos. As mesmas falhas já tinham sido assinaladas pelo Banco Mundial e pelo Banco Asiático de Desenvolvimento, que apelaram a uma coordenação institucional mais eficaz. O MDI defende, igualmente, um reforço do investimento na capacitação de jovens empreendedores e na inovação.

A La’o Hamutuk expressou também preocupação com a autorização de um empréstimo de cerca de 850 milhões de dólares previsto para 2026, destinado ao setor extrativo, pedindo esclarecimentos ao Governo sobre a capacidade de reembolso, para prevenir riscos de endividamento excessivo.

Estas questões foram mencionadas pelos deputados durante os três dias de debate na generalidade do OGE 2026, no Parlamento Nacional. No encerramento da sessão, na sexta-feira (7/11), o primeiro-ministro respondeu às críticas e sugestões, mas pediu a manutenção da proposta apresentada.

“Por falta de tempo para reformular o orçamento de acordo com as perspetivas, programas e estratégias aqui apresentados, pedimos compreensão. Deixem-nos continuar. Deixem-nos avançar até que o povo nos julgue”, declarou Kay Rala Xanana Gusmão no encerramento do debate.

A proposta foi aprovada na votação na generalidade, com 42 votos a favor, 23 abstenções e nenhum voto contra.

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