Lotaria: o sonho de enriquecer que pode transformar-se em pesadelo familiar

As lotarias são vistas como uma forma de enriquecer rapidamente, mas nem todas as histórias têm um final feliz/Foto: Diligente

Muitos timorenses jogam todas as semanas na esperança de mudar de vida de um dia para o outro. Para alguns, a sorte traz alívio financeiro temporário; para outros, abre caminho ao vício, ao endividamento e até à destruição da vida familiar.

Em Timor-Leste, a lotaria particularmente popular é a SDSB (em indonésio, Sumbangan Dermawan Sosial Berhadiah, embora nem sempre seja fácil falar dela abertamente. Os jogos estão a ganhar cada vez mais adeptos, sobretudo através de serviços digitais e promoções online.

Perante dificuldades económicas, muitas famílias encaram a lotaria como uma solução rápida para escapar à pobreza. No entanto, a realidade nem sempre corresponde às expectativas: em vez de riqueza, muitas vezes surgem dívidas,  conflitos familiares e violência doméstica. Por detrás do sonho de “ficar rico de um dia para o outro” impõe-se a questão: será que a lotaria ajuda ou agrava o peso financeiro das famílias?

Quando as necessidades básicas se tornam urgentes e os rendimentos escassos, alguns recorrem a atalhos – muitas vezes ilegais – para sobreviver. É o caso de Luciana (nome fictício), de Baucau, cuja família vive da agricultura.

“O meu marido costuma jogar a lotaria SDSB. O dinheiro da venda da colheita desaparece. Muitas vezes, não temos nada em casa e, quando o dinheiro acaba, começa a violência”, contou. Luciana explicou que o rendimento da família depende exclusivamente das colheitas, mas este é quase sempre insuficiente.

“Por vezes, sobrevivemos apenas com o que temos. Não somos uma família que tem tudo. Mas não posso negar que o meu marido ganhou uma vez 200 dólares em SDSB. Infelizmente, isso só o deixou ainda mais viciado”, lamentou.

A história de Anacleto da Silva, do município de Viqueque, mostra até que ponto o vício pode levar à ruína. Jogador habitual e vendedor de bilhetes, recorreu à fraude para manter o hábito.

“Uma vez, alguém comprou um cupão comigo e, quando os resultados saíram e os números coincidiam, combinei com um amigo falsificar o cupão, alegando que os números não coincidiam. Assim, conseguimos tirar 2.000 dólares do prémio que aquela pessoa deveria receber. Ficámos com o dinheiro sem que o verdadeiro proprietário soubesse. Quando finalmente se aperceberam da mentira, o dinheiro já tinha sido gasto.”

Quando o lesado exigiu a devolução, Anacleto viu-se obrigado a vender um pedaço de terra avaliado entre 2.000 e 3.000 dólares por apenas 800. Para completar o valor, ainda pediu um empréstimo de 200 dólares ao irmão.

Apesar dos riscos, a lotaria também é fonte de sustento para alguns. Julião da Costa, de Baucau, vende bilhetes há mais de 10 anos e conseguiu transformar o negócio num apoio para a sua família.

“O nosso rendimento diário depende muito da percentagem que recebemos pelas vendas. Pode dizer-se que somos migrantes, porque aqui, a minha pequena família e eu alugamos uma casa para viver. Uso esse rendimento para cobrir as nossas despesas diárias e sustentar as minhas duas filhas”, explicou.

Julião reconhece, no entanto, que o jogo pode ser destrutivo, mas acredita que, com disciplina, pode ter efeitos positivos. “Não ficaremos ricos apenas com o jogo, mas se jogarmos por diversão e soubermos controlar-nos, pode ser benéfico. Mas tudo depende de cada pessoa.”

O jogo como ameaça social e cultural em Timor-Leste

Num artigo publicado pelo Diligente, o psicólogo e antropólogo Alesandro Boarccaech analisou como o jogo se transformou num problema grave que ameaça a saúde financeira, social e mental das comunidades, incluindo em Timor-Leste.

O psicólogo sublinha que, embora o jogo muitas vezes comece como simples entretenimento, pode rapidamente tornar-se numa armadilha viciante devido a distorções cognitivas, à ilusão de controlo e à forte influência das plataformas digitais. Explica que o jogo ativa o sistema de recompensa do cérebro, libertando dopamina — um químico associado ao prazer, especialmente quando há vitórias. Essa euforia leva a pessoa a continuar a jogar, mesmo depois de repetidas perdas.

No contexto timorense, Boarccaech identifica várias formas de taru-osan, como a bola guling (bola a rolar), jogos de cartas, kuru-kuru, apostas de futebol, futu manu (luta de galos), casinos e SDSB. Destaca ainda que muitos destes jogos são influenciados por crenças místicas, como a interpretação de sonhos ou a leitura de presságios sobrenaturais.

Um exemplo é o fenómeno das lutas de galos, que chegam a reunir centenas de pessoas. Alguns apostadores preferem galos pretos que lutam à tarde, acreditando que ganham com mais frequência. Trata-se, no entanto, de uma generalização precipitada, sem base científica, construída apenas a partir de experiências pessoais insuficientes para tirar conclusões fiáveis.

Boarccaech enfatiza que o distúrbio do jogo — ou ludopatia — é uma condição grave, em que a pessoa não consegue parar de jogar, mesmo perante consequências negativas como perda de bens, conflitos familiares e problemas de saúde mental.

A ativista Nélia Prisca, da organização Rosas Mean, também denuncia o hábito enraizado do jogo na sociedade timorense como um problema grave, com impactos profundos na vida social, económica e educativa das famílias.

Segundo Nélia, práticas como o jogo de cartas, o SDSB e outras formas de apostas tornaram-se rotinas comuns em muitas comunidades. Por proporcionarem prazer momentâneo, são difíceis de abandonar, mesmo quando os riscos são bem conhecidos.

“A maioria considera o jogo uma atividade que lhes pode trazer prazer, mas é aí que surgem vários outros problemas”, afirmou.

Um desses problemas é a violência doméstica, muitas vezes provocada pelo dinheiro gasto em jogos de azar. Não é incomum os jogadores pedirem dinheiro emprestado a amigos ou vizinhos para continuar a apostar.

Mais preocupante ainda, segundo a ativista, é o impacto na educação das crianças. “Os pais dizem muitas vezes que não têm dinheiro para as propinas escolares, porque gastaram tudo em jogos de azar. Este é um problema grave que pode comprometer o futuro da nossa geração mais jovem”, alertou.

Nélia incentiva a população a olhar para o jogo com mais clareza e consciência crítica. “Vivemos numa sociedade marcada pelo stress e pela pobreza. Nessas condições, instala-se um pensamento hegemónico, uma mentalidade que nos leva, inconscientemente, a aceitar o negativo como normal.”

Esse pensamento, observa, é frequente em comunidades de baixos rendimentos, fomentando hábitos sem reflexão crítica e levando as pessoas a usar o jogo como fuga à realidade. Muitos casais continuam a apostar, apesar das consequências, o que perpetua conflitos e instabilidade familiar.

Perante este cenário, a ativista defende que o problema do jogo não pode ser tratado de forma trivial e requer a atenção de múltiplas partes. Defende campanhas públicas de sensibilização e sugere até o restabelecimento do tara bandu (regras consuetudinárias tradicionais) em cada aldeia, como forma de controlar e limitar as práticas de jogo.

Contudo, sublinha que isto não pode ser feito isoladamente. É necessária uma ação coordenada entre autoridades governamentais, líderes comunitários e a população. Só com o envolvimento de todos será possível reduzir os casos de violência contra mulheres e crianças associados ao vício.

“O melhor passo que podemos dar é acabar com o vício do jogo, porque ele pode abrir a porta a muitos outros problemas dentro das famílias e da comunidade”, concluiu Nélia.

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