Tráfico de seres humanos: timorenses continuam a cair em redes de exploração entre promessas falsas e impunidade

"O país continua fraco na luta contra este tipo de crime", Sérgio Quintas/Foto: ONU

Neste Dia Mundial contra o Tráfico de Seres Humanos, o alerta da ONU ganha eco em Timor-Leste, onde centenas de cidadãos foram já identificados como vítimas de exploração laboral no estrangeiro. Apesar dos apelos à prevenção, a pobreza, o desemprego e a falta de informação continuam a alimentar o ciclo de abuso.

Hoje, dia 30 de julho, assinala-se o Dia Mundial contra o Tráfico de Seres Humanos, uma data instituída pelas Nações Unidas para alertar para um crime transnacional que continua a crescer e a vitimar milhões de pessoas em todo o mundo, sobretudo mulheres e crianças em situações de vulnerabilidade social, económica ou migratória. Entre 2020 e 2023, mais de 200 mil vítimas foram identificadas globalmente — um número que representa apenas uma pequena parte da realidade, segundo a ONU. A organização alerta que o tráfico é impulsionado por redes criminosas organizadas que se aproveitam de lacunas legais, fluxos migratórios e plataformas digitais para explorar seres humanos através de trabalho forçado, exploração sexual, tráfico de órgãos e outras formas de abuso. Apesar de alguns avanços, a resposta da justiça criminal continua aquém do necessário. Por isso, a ONU reforça os apelos a uma atuação mais eficaz por parte das autoridades, com leis rigorosas, cooperação internacional e apoio centrado nas vítimas.

Em Timor-Leste, este fenómeno global ganha contornos particularmente graves quando os seus efeitos se projetam além-fronteiras. Em 2022, as autoridades portuguesas identificaram mais de 800 cidadãos timorenses como potenciais vítimas de uma rede de tráfico humano e auxílio à imigração ilegal. Muitos foram encontrados em condições degradantes, em habitações sobrelotadas nas zonas agrícolas de Beja, Serpa e Fundão, sujeitos a exploração laboral em campos de maçãs e olivais. A situação motivou investigações do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), que recolheu indícios de tráfico humano e iniciou articulação com o Ministério Público. Em Timor-Leste, foi efetuada a primeira detenção relacionada com o caso, e a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa comprometeu-se a apoiar o regresso dos mais vulneráveis.

Na altura, o Presidente da República de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, classificou a situação como “intolerável” e defendeu intervenção judicial. Ao seu lado, o Presidente de Timor-Leste, José Ramos-Horta, denunciou o papel de “pessoas sem escrúpulos” que fazem promessas enganosas a jovens timorenses, num fenómeno que, segundo afirmou, é antigo e comum em muitos países em desenvolvimento. Apesar de ter admitido a necessidade de repatriar cidadãos em situação vulnerável, Ramos-Horta referiu que muitos recusam regressar, mesmo perante condições difíceis.

Os casos de 2022 levantaram um alerta nacional e internacional sobre o risco de tráfico humano envolvendo migrantes timorenses, e continuam hoje a suscitar questões prementes: que proteção está a ser oferecida? Que mecanismos existem para prevenir que estas redes prosperem? E o que leva tantos jovens timorenses a arriscar tudo, mesmo sabendo que podem ser explorados?

Da promessa ao engano: testemunhos de jovens timorenses vítimas de agências falsas

Uma notícia publicada pelo Diligente, em fevereiro de 2024, deu conta de vários casos de jovens timorenses que emigraram para Portugal em busca de melhores condições de vida, mas que, à chegada, enfrentaram situações extremamente difíceis, como a falta de alojamento e de emprego, tendo alguns dormido nas ruas. Eduardo Macedo e Francisco Soares, por exemplo, relataram que vaguearam pelas cidades portuguesas sem saber a língua e sem contratos de trabalho, até conseguirem ajuda de compatriotas ou da assistência social.

Já Mariano Martins (nome fictício) denunciou ter pago 2700 dólares a uma suposta agência de recrutamento que prometeu apoio à chegada, mas que o deixou entregue à própria sorte. De acordo com o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), só em 2022 chegaram a Portugal 6814 timorenses, e embora o número tenha diminuído desde meados de 2023, continua elevado.

A ONG La’o Hamutuk estima que o desemprego atinja 27% dos timorenses em idade ativa, e o salário mínimo de 115 dólares não é revisto desde 2012. Perante este cenário, muitos jovens continuam dispostos a arriscar tudo para sair do país, mesmo sem garantias. A Embaixada de Timor-Leste em Lisboa tem vindo a alertar para o perigo de redes organizadas que fazem promessas enganosas de trabalho.

Prevenção falha, responsabilização difícil: o Estado timorense perante o tráfico humano

No âmbito do talk show “Hamutuk Kontra Trafiku Umanu Hametin Asaun Koletiva Iha Prevensaun No Kombate”, transmitido ontem, 29 de julho, na TVE, as autoridades timorenses alertaram para o crescimento preocupante do crime de tráfico humano no país, sublinhando a vulnerabilidade dos cidadãos e a necessidade urgente de reforçar os mecanismos de prevenção e proteção das vítimas.

A Procuradora Lídia Soares afirmou que “o autor do crime de tráfico humano aproveita-se da situação de vulnerabilidade e da fraca capacidade de controlo. Devido a essas circunstâncias, muitos cidadãos e jovens acabam por cair nas redes cujo destino é o tráfico humano”.

Também o Presidente da Comissão Luta Anti-Tráfico Humano (KLATU), Honório Aureliano Soares Magalhães, identificou como principais causas o “desemprego, a falta de conhecimento e a ausência de acesso à informação, sobretudo nas comunidades das zonas rurais”, destacando que estes fatores contribuem para a rápida propagação do crime nas comunidades menos informadas.

Segundo o Chefe da Operação da Direção de Investigação Criminal da PNTL, Superintendente Assistente Mouzinho Coreia, “o tráfico humano é considerado um crime organizado, pois é praticado por grupos organizados. É também uma violação dos direitos humanos, uma vez que as vítimas são tratadas como mercadorias que podem ser compradas e vendidas, sendo exploradas de várias formas, como a exploração sexual e o trabalho forçado”.

Em Timor-Leste, o crime de tráfico de pessoas está previsto no artigo 163 do Código Penal e pode ser punido com penas de prisão que vão dos 8 aos 20 anos. A lei considera crime qualquer forma de recrutamento, transporte, alojamento ou acolhimento de pessoas com o objetivo de as explorar, sobretudo quando se recorre à força, ameaças, engano, abuso de poder ou aproveitamento de situações de vulnerabilidade. No caso de menores de 17 anos, o crime é automaticamente aplicável, mesmo que não tenha havido coação. Entre as formas de exploração previstas pela lei estão o trabalho forçado, a escravidão, a exploração sexual, a servidão ou a extração de órgãos. Mesmo que a vítima dê o seu consentimento, este não tem validade se tiver havido algum tipo de coação ou manipulação.

A Procuradora acrescentou que muitos dos timorenses identificados em Portugal “entraram com visto de turista e sem experiência de trabalho, o que os torna vulneráveis a redes de tráfico humano. Frequentemente, partem com a ajuda de alguém que explora a sua situação económica precária”.

A situação é agravada pela falta de estruturas de acolhimento adequadas. A diretora executiva do Programa de Monitorização do Sistema Judicial (JSMP, na sigla inglesa), Ana Marçal sublinhou que “as instituições enfrentam dificuldades ao acolher vítimas estrangeiras, especialmente devido à ausência de tradutores e à complexidade das condições de alimentação e alojamento”. Além disso, não existe em Timor-Leste uma casa de acolhimento específica para vítimas de tráfico humano. Nestes casos, a PNTL coopera com o Ministério da Solidariedade Social e Inclusão (MSSI) para garantir o encaminhamento das vítimas para locais considerados seguros.

A Procuradora destacou ainda que “nos processos registados sobre tráfico humano, o Ministério Público enfrenta o problema da ausência dos autores do crime, o que faz com que os processos fiquem pendentes, já que os autores fugiram ou estão no estrangeiro”.

O JSMP chama também a atenção para casos de casamento forçado, considerando que se enquadram no crime de tráfico humano, especialmente quando os pais recebem o chamado barlaque (dote). A procuradora manifestou concordância com esta interpretação.

Por fim, o Superintendente Assistente Mouzinho Coreia alertou que a maioria dos casos de recrutamento para tráfico humano ocorre atualmente através de plataformas online, o que dificulta o controlo e a prevenção por parte das autoridades.

O Ministro dos Negócios Estrangeiros e Cooperação, Bendito Freitas, foi entrevistado pelo Diligente, mas recusou prestar declarações sobre o assunto.

Lusitânia da Costa, de 28 anos, funcionária de uma organização não-governamental em Díli, afirmou que a falta de emprego e os salários insuficientes estão entre as principais razões que levam muitos jovens timorenses a buscar oportunidades de trabalho no exterior, frequentemente tornando-se potenciais vítimas de tráfico humano. “A falta de oportunidades de trabalho dentro do país e os rendimentos baixos fazem com que muitos jovens considerem a migração como a única alternativa para sustentar as suas famílias”, afirmou.

Acrescentou que muitos jovens timorenses já construíram as suas famílias e têm grandes responsabilidades, mas com um salário mínimo de apenas 115 dólares americanos, não conseguem cobrir as necessidades básicas. Lusitânia acredita que, para conter a saída desordenada de jovens para o exterior, o Governo deve dar prioridade à criação de empregos no país.

Lusitânia cita relatos de familiares que pagaram altas quantias a supostas agências de recrutamento para trabalhar em países como Portugal ou Polónia, mas acabaram por ser enganados. Acrescentou que há jovens que pagaram até 200 dólares para participar em formações organizadas por essas entidades em Hudi Laran, Díli, onde eram preparados para serem motoristas ou soldadores. No entanto, no final, foram enganados. “Tenho irmãos que foram vítimas, porque não conseguiram ir trabalhar para a Polónia. Era tudo mentira. Então, alguns dos meus familiares acabaram por seguir para Portugal e Inglaterra”, contou.

Lusitânia alerta para os perigos de confiar em pessoas desconhecidas e encoraja os jovens a aproveitarem os programas oferecidos pela Secretaria de Estado da Formação Profissional e Emprego (SEFOPE), como cursos de língua coreana e inglesa, destinados à preparação para o trabalho legal em países parceiros. “É melhor seguir um processo legal, controlado pelo Governo, para evitar problemas futuros. Não se deve confiar em qualquer entidade que apareça a pedir dinheiro em troca de vagas no estrangeiro”, apelou.

Em busca de uma vida melhor para si e para a família, Marcelino da Costa, de 22 anos, decidiu investir na aprendizagem da língua coreana como preparação para trabalhar legalmente na Coreia do Sul. Inspirado por familiares que já conseguiram melhorar as suas condições de vida através do trabalho no estrangeiro, Marcelino vê nessa oportunidade uma alternativa concreta para o seu futuro. “Estou a seguir cursos de língua coreana, com o objetivo de ir trabalhar para a Coreia. Já concorri a vagas para a Austrália e para a Coreia do Sul, e seguirei aquela que me for concedida. Aqui, há trabalho, mas os salários são muito baixos e não permitem melhorar verdadeiramente a vida da nossa família”, explicou.

Marcelino também mostrou preocupação com o número crescente de jovens timorenses que se tornaram vítimas de tráfico humano e enganados por promessas falsas feitas por entidades que dizem facilitar empregos no exterior. “Muitos jovens são enganados por falta de informação sobre os processos legais para emigrar. Por exemplo, há casos de jovens que foram para Portugal com promessas de salários altos e boas condições de trabalho, mas acabaram abandonados, sem proteção, alguns ficaram a dormir na rua”, relatou.

Para o jovem, a raiz do problema está na falta de emprego e de trabalho bem remunerado em Timor-Leste, o que leva os jovens a procurar alternativas fora do país, muitas vezes sem o conhecimento adequado dos riscos envolvidos. Marcelino apela aos jovens para que procurem informações e tenham cuidado antes de confiar em propostas que envolvam trabalho no estrangeiro. “Quem quiser ir trabalhar fora, é melhor seguir os cursos e formações oferecidos pelo Governo, porque assim o processo é seguro. Seguir entidades desconhecidas pode colocar-nos em situação de exploração”, alertou.

O que falta fazer?

O jurista Sérgio Quintas afirmou que a aplicação da lei de combate ao tráfico humano continua deficiente em Timor-Leste, uma vez que a Polícia Científica de Investigação Criminal (PCIC), o Serviço de Investigação Criminal e o Serviço de Migração não estão devidamente preparados para exercer um controlo eficaz.
“Isso facilita que Timor-Leste se torne apenas um ponto de trânsito para o tráfico humano e de drogas”, destacou.

Disse que o tráfico humano faz parte da criminalidade organizada transnacional e que as normas internacionais sobre esta matéria foram ratificadas por Timor-Leste há mais de uma década. No entanto, “o país continua fraco na luta contra este tipo de crime, porque a implementação das leis ainda é insuficiente”, referiu.

Questionado sobre como responsabilizar os autores estrangeiros desses crimes, Sérgio destacou que a PCIC e a Alfândega, entidades responsáveis pelas fronteiras, “devem ter conhecimento específico sobre o tráfico humano, uma vez que muitas vezes não compreendem bem o problema”.

“As autoridades precisam de entender a natureza do crime e saber como identificá-lo. Quando o crime for detetado, não pode haver impunidade — os responsáveis devem ser levados à justiça”, afirmou.

Quintas observou que apenas alguns casos chegam aos tribunais, enquanto outros continuam a ocorrer no país sem qualquer ação da PCIC ou da Alfândega. “Por vezes, até há entidades que detetam indícios deste tipo de crime, mas acabam por facilitar o seu prosseguimento — e isso é um problema grave”, acrescentou.

Sérgio recordou que o Parlamento Nacional já ratificou a Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional, conhecida como Convenção de Palermo, o que significa que o país faz parte deste acordo para unir esforços no combate ao crime, seja ele cometido por timorenses ou estrangeiros, e esteja relacionado com branqueamento de capitais ou tráfico humano. “Temos de trabalhar juntos para levar os autores à justiça. Mesmo os timorenses que participam nestas práticas devem ser punidos”, declarou.

Questionado sobre a eficácia da cooperação de Timor-Leste com países parceiros no combate ao tráfico humano, Sérgio afirmou que autoridades como a PCIC e os serviços de Migração devem estar devidamente equipadas, preparadas e treinadas para lidar com esses cenários.

“Temos de ser sensíveis a este crime, porque afeta profundamente a vida dos países. Por isso, as autoridades de investigação devem estar bem preparadas para enfrentar este desafio”, afirmou. Acrescentou ainda que Timor-Leste ainda não está suficientemente preparado para conseguir detetar crimes desta natureza e complexidade.

Sérgio também concordou que os timorenses abandonados em Portugal, encontrados a dormir nas ruas e jardins, são vítimas de tráfico humano e exploração. “Algumas pessoas viajam para o estrangeiro sem passar por meios legais reconhecidos por Timor-Leste e utilizam caminhos ilícitos. Isso configura crime de tráfico humano”, explicou.

O jurista acrescentou que, quando uma agência sem estatuto legal e sem registo notarial recruta timorenses para trabalhar no estrangeiro, isso constitui uma prática de tráfico humano. “Não tenho informações específicas sobre as acusações contra as agências que levam timorenses a trabalhar no exterior, mas o Governo deve investigar para apurar se essas agências têm ou não responsabilidade nestas práticas”, concluiu.

Segundo Sérgio Quintas, o Governo tem o dever de proteger as vítimas do tráfico humano e garantir os seus direitos. Para atuar nos casos de tráfico humano, nomeadamente no que aconteceu com os timorenses em Portugal, em 2022, o jurista referiu que o Ministério Público não pode atuar sozinho — precisa de receber uma queixa para abrir investigação, e qualquer cidadão tem o dever de denunciar este tipo de crime, por se tratar de um crime público.

Sérgio Quintas considerou ainda que o casamento barlaquado não deve ser considerado tráfico humano, pois não apresenta elementos que possam ser classificados como tal. “O Estado ainda não demonstra a seriedade necessária para combater este crime, por não dotar as entidades competentes dos meios adequados. E, por isso, o crime continuará a acontecer.”

Para o jurista Armindo Amaral, o tráfico humano em Timor-Leste resulta, em grande parte, da falta de consciência e de conhecimento sobre o que este crime realmente envolve. “Há pessoas que são recrutadas com promessas de um trabalho bem remunerado, mas a realidade é outra. Muitas vezes, os recrutadores ficam com os passaportes das vítimas, que acabam por ser deportadas. Felizmente, o Estado timorense tem conseguido repatriar algumas dessas pessoas”, observou.

O jurista defende que qualquer trabalho que reduza os direitos e a dignidade de uma pessoa pode também ser considerado uma forma de tráfico humano — mesmo que envolva um salário mínimo, se implicar jornadas de trabalho normais mas com remuneração inferior ao legalmente exigido.

Armindo recorda que o tráfico humano tem ocorrido em Timor desde há muito tempo, mencionando o comércio de escravos que existiu na ilha. “O relatório Sidley — Escravidão Sexual e Outras Formas de Violência Sexual durante a Ocupação Indonésia de Timor-Leste (1975–1999) — refere que, desde 1887, ainda existia um mercado de escravos em Kupang, com cerca de 1200 pessoas escravizadas”, afirmou, acrescentando que isso demonstra como os tempos mudam, mas as práticas continuam — apenas mudam de forma.

Para Armindo Moniz, a seriedade no combate ao tráfico humano não deve ser apenas discurso de campanha eleitoral, mas sim traduzir-se na criação de um sistema eficaz de prevenção real e estruturada.

“É um privilégio que os jovens possam ter oportunidades de trabalho na Coreia do Sul, na Austrália ou em Inglaterra. Caso contrário, Timor-Leste — com uma das maiores taxas de desemprego da Ásia — torna-se um alvo fácil para as redes de tráfico. Pensamos que tudo está a correr bem, mas quem pode garantir que as fronteiras estão verdadeiramente seguras?”

Armindo conclui que é essencial olhar para a raiz do problema. “Não basta verificar se a lei está a ser aplicada ou se o traficante é punido — o mais importante é perceber que continuam a existir condições que permitem que o tráfico humano aconteça.”

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