Futebol feminino em Timor-Leste: paixão, desafios e desigualdade

O futebol atrai mulheres em Timor-Leste, mas enfrenta a falta de equipamentos, de infraestruturas e barreiras culturais que dificultam a evolução das jogadoras/Foto: DR

Apesar da dedicação das jogadoras, o futebol feminino em Timor-Leste enfrenta graves limitações: falta de campos, equipamentos, apoio institucional e barreiras culturais. As seleções sub-16, sub-20 e sénior lutam para competir internacionalmente, refletindo desigualdade em relação ao futebol masculino e a outros países da ASEAN.

Nos últimos anos, o futebol começou a conquistar cada vez mais mulheres em Timor-Leste. No entanto, a realidade dentro e fora do campo continua marcada por enormes desafios: ausência de equipamentos adequados, escassez de infraestruturas desportivas e barreiras culturais que limitam os treinos e a evolução das atletas.

Dirigentes, treinadores e jogadoras são unânimes: o futebol feminino precisa de um apoio consistente e estruturado para que as seleções nacionais possam competir em condições de igualdade com os restantes países da ASEAN.

Em 2025, a Federação de Futebol da ASEAN (AFF) e a Confederação Asiática de Futebol (AFC) organizaram competições femininas nos escalões sub-16, sub-20 e sénior, envolvendo as nações do Sudeste Asiático e a Austrália, em articulação com as federações nacionais. As seleções femininas timorenses marcaram presença, mas, segundo dirigentes, treinadores e atletas, o resultado foi quase sempre o mesmo: derrotas pesadas, com diferenças significativas no marcador. Uma realidade que reflete os inúmeros obstáculos enfrentados pelas jogadoras timorenses, dentro e fora das quatro linhas.

 Entre orgulho, paixão e desafios: a experiência das jogadoras

Nívia da Silva Ximenes, jogadora da seleção nacional sub-16, mostrou-se orgulhosa por vestir a camisola do país em competições internacionais, mas reconheceu que a preparação e as condições não são comparáveis às dos restantes países da ASEAN. Nívia começou a treinar aos 13 anos, na academia da Koika. “Eu gosto mesmo de treinar futebol. É o meu sonho”, contou.

Sobre as derrotas recentes frente à Indonésia e à Malásia, a jovem admitiu que a falta de tempo e recursos prejudicou os resultados da seleção. “Na véspera de ir competir, começamos a treinar em equipa. Porém, as jogadoras de outros países já estavam preparadas há muito tempo. Nota-se logo na tática e na forma como jogam em campo. Por isso, perdemos nos jogos”, explicou.

Valéria Imaculada de Jesus, da equipa sub-20, afirmou que o futebol é, ao mesmo tempo, um passatempo e uma forma de disciplina e crescimento pessoal. “Jogar à bola ajuda-me a manter o corpo ativo, a melhorar o trabalho em equipa e a desenvolver a disciplina e a concentração”, acrescentou. A jovem reconheceu que, nos últimos anos, o futebol feminino em Timor-Leste registou alguns progressos, mas ainda há falhas a corrigir. “Felizmente, a nossa nação fez algumas melhorias para apoiar a equipa feminina, mas as falhas também fazem parte do processo para melhorar no futuro”, disse.

Na seleção sénior, Godelivia Martins, de 26 anos, recordou que começou a treinar em 2010. A atleta confessou que o gosto pelo futebol surgiu por influência do pai, que foi treinador da seleção masculina, e do irmão. “Ambos foram uma inspiração para mim. Por isso, quero muito ser treinadora de futebol no futuro”, revelou.

As três jogadoras, apesar de pertencerem a diferentes categorias, apontam desafios semelhantes. Godelivia referiu que as atletas têm empenho, mas falta atenção aos aspetos técnicos e mentais. Além disso, sublinhou a falta de material adequado: “Muitas vezes treinamos com bolas em mau estado e chuteiras desconfortáveis. Precisamos de melhores treinos, equipamentos de qualidade e de uma alimentação mais nutritiva para conseguirmos atingir o nosso objetivo”, concluiu.

 Aprender com as derrotas: infraestruturas, tempo e experiência internacional

Além da preparação tardia, Nívia destacou também as dificuldades de infraestrutura. “Um dos maiores obstáculos para nós é o campo de treino. Muitas vezes, não temos espaço ou as condições não são boas. Isso atrapalha muito a evolução da nossa equipa”, lamentou.

Entre os vários problemas, Godelivia apontou a falta de experiência internacional e o pouco tempo de preparação antes das competições. Fora de campo, existe também falta de apoio financeiro e logístico.

Outro tema preocupante, segundo Godelivia, são as barreiras culturais que muitas raparigas ainda enfrentam em Timor-Leste. “Normas sociais e valores tradicionais fazem acreditar que o lugar das mulheres é na cozinha, a lavar roupa, e não nos campos de futebol. Alguns consideram que jogar à bola é uma atividade apenas para homens”, descreveu.

Nívia lembrou que a participação da equipa feminina sub-16 no torneio da ASEAN foi histórica, já que foi a primeira vez que Timor-Leste competiu nesta categoria. “Neste momento, estamos a perder. Mas se houver mais investimento, mais tempo de trabalho e melhores condições, podemos mostrar o nosso verdadeiro valor”, afirmou.

Nos jogos recentes, a equipa sub-16 perdeu frente à Coreia do Sul (0-9), Bangladesh (0-7) e Laos (0-6). Para Nívia, estes resultados refletem o facto de Timor-Leste ser um país ainda jovem e o baixo investimento no futebol feminino. “Perder faz parte do percurso, porque o nosso país é jovem e com pouca experiência, ao contrário de outras nações da ASEAN. Mas pouco a pouco podemos conquistar. Para vencer, é necessário ultrapassar muitos obstáculos”, explicou.

 Desigualdade entre futebol masculino e feminino e evolução social

Godelivia destacou que a diferença de tratamento entre as seleções masculina e feminina continua evidente. “Apesar do progresso, ainda sentimos que a equipa feminina é muitas vezes vista como a segunda opção. Por isso, precisamos de melhorar para que possamos mostrar o nosso melhor lá fora”, defendeu.

Valéria destacou que houve mudanças significativas. Recordou que, antes, as mulheres nem sequer tinham oportunidade de tocar numa bola em campo. “Muitas vezes, as pessoas associavam, de forma errada, o desporto apenas aos homens. Tanto homens como mulheres podem praticar desporto e merecem receber o mesmo tratamento. Hoje em dia, já existem algumas melhorias, e em certos aspetos começamos a ter um tratamento semelhante ao dos homens”, explicou.

Godelivia apelou ao Governo e à FFTL para investir com seriedade no futebol feminino. “Queremos mostrar que as mulheres também podem. As mulheres têm talento e paixão, mas precisam de apoio para evoluir. Não é apenas uma questão desportiva, mas também de desenvolvimento nacional inclusivo e sustentável”, afirmou.

Entre as medidas necessárias, Godelivia defendeu a criação de programas de formação de base para raparigas; contratação de treinadores qualificados; lançamento de uma liga nacional feminina e campanhas públicas para combater preconceitos, incluindo ações de sensibilização em escolas, vídeos motivadores e maior visibilidade nos media, com iniciativas como “Mulheres em Campo” e “Igualdade no Desporto”.

 Infraestruturas, treino e academias

António Moreira da Silva, treinador da seleção sub-16, explicou que a equipa feminina participou este ano, pela primeira vez, na competição da AFF, que contou também com a presença da Austrália.

De acordo com o técnico, a seleção timorense integrou o Grupo A e sofreu duas derrotas pesadas: 0-6 frente à Indonésia e 1-6 contra a Malásia. Para António, apesar dos resultados, a participação representou um passo importante, embora a preparação tenha ficado muito aquém do necessário. “No nosso país, ainda não existe uma academia própria preparada pelo Governo ou pela FFTL, tanto para equipas masculinas como femininas”, afirmou.

O treinador explicou que as seleções partilham os mesmos campos de treino e que, muitas vezes, a escolha das jogadoras recai sobre pequenos grupos particulares. “Por exemplo, a equipa do Mister King ou atletas com talento natural. Chamamo-las para integrar a seleção nacional”, explicou.

António destacou a diferença em relação a outras seleções da ASEAN, cujas atletas são recrutadas em academias bem estruturadas, apoiadas pelas federações nacionais ou por patrocinadores. “As nossas academias ainda são muito limitadas. Temos, por exemplo, a academia de Becora e a do Mister King, em Lecidere. É a partir dessas academias que selecionamos jogadoras. Recentemente, a FFTL organizou uma competição juvenil, tanto feminina como masculina, entre municípios para escolher os melhores jogadores. O problema é que o torneio decorreu ao mesmo tempo que a competição da AFF, o que dificultou ainda mais a preparação da seleção”, acrescentou.

Depois de acompanhar as atletas no estrangeiro, António confessou que as jogadoras timorenses ficaram surpreendidas com o nível das adversárias. “As nossas atletas ficaram admiradas ao ver a forma como as jogadoras de outros países atuam. Jogam com intensidade, força e técnica, quase semelhantes aos homens. Nós ainda estamos numa fase inicial, a aprender coisas básicas como passar a bola”, afirmou.

Questionado sobre o desenvolvimento do futebol no país, o treinador reconheceu que, durante muito tempo, o masculino foi prioritário. “Hoje em dia, já notamos que as mulheres começam a ter oportunidades de participar em competições internacionais, mas ainda há muitas falhas. Acredito, no entanto, que existe um longo caminho pela frente para tornar a seleção competitiva no Sudeste Asiático”, confiou António Moreira da Silva.

 Formação limitada e desafios da seleção sub-20

O treinador da seleção sub-20, Eduardo Pereira, explicou que a organização das equipas nacionais depende dos critérios da AFC e da AFF. “A diferença entre as seleções sub-16, sub-20 e sénior está definida nos regulamentos das duas organizações. Por isso, a Federação timorense segue essas orientações e nomeia treinadores para cada escalão”, afirmou.

Jogadoras entre os 17 e os 19 anos que demonstrem bom desempenho podem ser promovidas à seleção sub-20. No entanto, a maioria das jovens timorenses prefere futsal, voleibol ou basquetebol, e apenas algumas se interessam pelo futebol de onze. Para formar a equipa sub-20, muitas vezes é necessário recorrer a atletas do futsal. “Nos jogos da AFC, no Vietname, tivemos poucas jogadoras disponíveis. Por isso, tivemos de completar a equipa com atletas que inicialmente não estavam selecionadas”, contou.

Eduardo destacou a necessidade de criar uma base sólida para desenvolver o futebol feminino, sobretudo através da criação de academias, quer pelo Governo, quer pela FFTL. “Se tivermos academias, será mais fácil para os treinadores escolherem jogadoras e formarem equipas fortes”, defendeu.

O treinador revelou ainda que a Federação tinha reunido com equipas da primeira e segunda divisão para preparar uma liga feminina em 2025, mas a iniciativa não avançou devido à falta de campos. “Até agora, ainda não conseguiram realizar esses jogos”, lamentou.

Em relação às derrotas nos jogos da ASEAN, Eduardo apontou a falta de infraestruturas como uma das principais razões. “As nossas falhas vêm da inexistência de academias. Muitas vezes, só começamos a treinar um mês antes de um torneio. Além disso, treinamos em campos de terra batida, cheios de pó, o que dificulta muito o rendimento das nossas jogadoras”, explicou.

Apesar das dificuldades, o treinador destacou que as atletas timorenses têm potencial técnico. “Mas, fisicamente e em termos de resistência, ainda não conseguimos superar as seleções das outras nações. Para mostrar bons resultados, Timor-Leste precisa de uma liga nacional permanente e de jogos de preparação com seleções estrangeiras, para treinar e preparar melhor as jogadoras. Sem isso, é muito difícil para nós”, lamentou.

A visão da Federação: reconhecimento das desigualdades e compromissos futuros

O diretor do Serviço da Seleção Nacional da FFTL, João Maneco Amaral, reconheceu que a falta de equipamentos continua a ser um dos maiores obstáculos. “Não há campos suficientes para todas as equipas poderem treinar. Por exemplo, o campo da Federação ainda está em fase de construção. Por isso, as consequências refletem-se diretamente no desempenho das seleções femininas, como a sub-16, sub-20 ou sénior, incluindo também a masculina”, afirmou.

Além disso, João Maneco apontou a inexistência de locais adequados para treinos específicos, como ginásios, e o fraco apoio nutricional às atletas. Segundo o dirigente, as limitações estruturais afetam inevitavelmente a preparação das jogadoras. “As seleções timorenses perdem quase sempre os jogos porque faltam suplentes para substituir outras jogadoras”, acrescentou.

O diretor reconheceu ainda que existe uma diferença orçamental entre as seleções masculinas e femininas. “Não sei exatamente qual é a diferença, porque só a direção da Federação conhece os orçamentos. Mas sim, existe uma diferença: a verba da seleção masculina é um pouco superior à da feminina, porque a intensidade do treino da equipa masculina é maior. Por isso, a FFTL, em conjunto com o Governo, está a tomar nota e a procurar dar mais atenção a estas áreas para melhorar no futuro”, explicou.

Apesar das dificuldades, o dirigente defendeu que a Federação já deu passos para elevar a qualidade do futebol nacional. “Criámos uma liga juvenil feminina e masculina. Se quisermos preparar boas equipas, precisamos de uma liga regular entre equipas diferentes. Foi assim que já conseguimos identificar alguns jogadores com potencial”, sublinhou.

Em resposta às críticas públicas sobre os maus resultados da seleção feminina, João Maneco Amaral relativizou. “É normal que o público critique. Para nós, o importante é participar nos torneios. A AFC exige a participação, caso contrário temos de pagar multa. Ganhar ou perder é outra questão. Através das derrotas, aprendemos e podemos melhorar para os jogos seguintes”, concluiu.

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